por Andre Garcia Alves Cunha.
A teoria do fato consumado pode ser definia como aquela que reconhece a existência de uma situação fática, absolutamente sedimentada pelo transcurso do tempo, seja em decorrência de incidência legal, de uma decisão judicial ou, até mesmo (e talvez seja esta a hipótese mais comum), da morosidade do poder administrativo em agir com a finalidade de constituir ou desconstituir determinada realidade material. Em suma, “[…] seria uma espécie de convalidação da situação pelo decurso de longo prazo”[1].
Com efeito, em artigo publicado no portal <direito ambiental.com>, o advogado Antônio Fernando Pinheiro Pedro, comentando a Súmula 613 do Colendo Superior Tribunal de Justiça, aprovada no ano de 2018, a qual contempla o entendimento pela inaplicabilidade da teoria do fato consumado em temas de Direito Ambiental[2], descreve a fundamentação pela qual a adoção da teoria do fato consumado, em determinadas hipóteses, é não apenas desejável, como também, do ponto de vista sócio ambiental, indispensável. Perceba-se:
“Desconstituí-lo implicaria circunstancialmente na fragilização de valores protegidos pelo Estado de Direito, tais como a segurança jurídica, a estabilidade das relações sociais e, por conseguinte, o bem comum”[3]. (PINHEIRO PEDRO, 2019)
Por outro lado, lembrando que o presente artigo limita a análise da teoria do fato consumado ao ramo jurídico ambiental, há respeitabilíssimo posicionamento doutrinário discorrendo que aquela teoria “[…] sempre foi articulada na defesa dos poluidores para justificar a manutenção de uma situação de dano ecológico já concretizada e consolidada ao longo do tempo”[4] (SARLET; FENSTERSEIFER. 2020).
Pois bem, para não apenas compreender, como, também, apontar eventual direcionamento pela aplicação ou não da teoria do fato consumado à seara ecológica há que se investigar a proporcionalidade da adoção desta teoria de forma casuística, a qual encontra fundamento técnico, albergado pela vigente Lei Federal n. 14.285 de 2021 (BRASIL, 2021), sob pena de supervalorização de direitos consagrados constitucionalmente, em detrimento absoluto de outros.
Antes, porém, é fundamental delinear o princípio da proporcionalidade, aplicável ao Direito Ambiental, como corolário não apenas da aplicação da norma, mas, sobretudo, na medida em que concilia a necessária defesa do direito fundamental ao meio ambiente ecológico, consagrado no artigo 225 da Constituição Federal, sem que se ignorem outros direitos de igual importância constitucional, como o direito à moradia (artigo 6º), a propriedade aliada à sua função social (artigo 5º, incisos XXII e XXIII), dentre outros.
Com efeito, é impossível deixar de reconhecer que, nos conflitos gerados a partir de interesses correlatos ao meio ambiente, destaca-se:
“[…] a conflituositá massima inerente aos interesses metaindividuais, traduzida na facilidade com que se contrapõem uns aos outros no caso concreto, bem como a outros interesses individuais, de igual importância, gerando, por consequência, verdadeira colisão entre os princípios constitucionais que tutelam bens jurídicos igualmente relevantes”[5]. (OLIVEIRA, 2009)
Consequentemente, é possível asseverar que invariavelmente questões conflituosas originadas a partir de problemas ambientais revelam verdadeira colisão entre direitos (ou princípios) de ordem constitucional com idêntica hierarquia e peso, sendo que prevalecerá o direito a partir de um exercício de ponderação que é regido e/ou disciplinado pelo princípio da proporcionalidade (OLIVEIRA, 2009).
Princípio que, por sua vez, pode ser compreendido como aquele que determina a relação de causa e efeito entre o fim que se almeja atingir e os meios utilizados, respeitando-se o trinômio da a) adequação; b) necessidade e c) proporcionalidade em sentido estrito. A propósito, se manifesta Beatriz Lopes de Oliveira:
“A primeira das sub-regras da proporcionalidade é a adequação, pelaqual deve-se verificar no caso concreto se a decisão normativa restritiva, isto é, se o meio ou ato que restringe o direito fundamental, oportuniza o alcance da finalidade perseguida. O meio (decisão normativa restritiva) será adequado a limitar um direito fundamental quando se mostre apto a alcançar o resultado pretendido ou, ao menos, a fomentá-lo. Não se trata de escolher o meio, mas tão somente verificar se a escolha feita pelo administrador se liga logicamente e de forma apropriada ao fim almejado.
Na sub-regra da necessidade, deve-se examinar se dentre os meios de restrição disponíveis e igualmente eficazes para atingir o fim pretendido, foi escolhido aquele menos gravoso ao direito fundamental em questão. O meio será considerado necessário para limitar um direito fundamental, quando a realização do objetivo perseguido não possa ser promovida, com a mesma intensidade, por meio de outro ato que limite, em menor medida, o direito fundamental atingido.
Por fim, pela sub-regra da proporcionalidade em sentido estrito, os meios eleitos a restringir o direito fundamental devem se manter em uma relação razoável com o resultado perseguido”.(OLIVEIRA, 2009).
Então, uma vez delineados os conceitos relativos à teoria do fato consumado e ao princípio da proporcionalidade, passa-se, agora, a detalhar o dispositivo legal da lei 14.285 de 2021, que introduziu o conceito de área urbana consolidada à Lei Florestal n. 12.651 de 2012, o qual, aliás, possibilita ao intérprete fazer uso dos dois institutos jurídicos acima mencionados para, em situações concretas que envolvam um litígio ambiental, evitar a demolição de patrimônio localizado em área de preservação permanente que, se por um lado não trará qualquer ganho ambiental, por outro, trará enorme impacto sócio econômico na realidade de vidas humanas.
Neste aspecto, o conceito normativo de “área urbana consolidada” se encontra atualmente previsto no artigo 3º, inciso XXVI da Lei Florestal n. 12.651 de 2012, ou seja, a área que atende os seguintes critérios: a) estar incluída no perímetro urbano ou em zona urbana pelo plano diretor ou por lei municipal específica; b) dispor de sistema viário implantado;c) estar organizada em quadras e lotes predominantemente edificados; d) apresentar uso predominantemente urbano, caracterizado pela existência de edificações residenciais, comerciais, industriais, institucionais, mistas ou direcionadas à prestação de serviços; e) dispor de, no mínimo, 2 (dois) dos seguintes equipamentos de infraestrutura urbana implantados: 1) drenagem de águas pluviais; 2) esgotamento sanitário; 3) abastecimento de água potável; 4) distribuição de energia elétrica e iluminação pública; e 5) limpeza urbana, coleta e manejo de resíduos sólidos. (BRASIL, 2021).
Nota-se do dispositivo que regulamentou o conceito de área urbana consolidada um caráter tecnicista capaz de nortear a ação municipal na definição de APP´s. Recorde-se, neste momento, que por força da mesma Lei n. 14.285 de 2021 foi acrescentado o parágrafo 10º ao artigo 4º, caput e inciso I, da Lei Florestal n. 12.651 de 2012, o qual assenta a competência dos municípios em, ouvidos os conselhos estaduais e municipais de meio ambiente[6] definir a metragem das faixas marginais de preservação em “ qualquer curso d’água natural perene e intermitente, excluídos os efêmeros, desde a borda da calha do leito regular” (BRASIL, 2012).
Referida norma, conforme defendido no presente artigo, veio em boa hora na medida em que o Superior Tribunal de Justiça, no ano de 2018, através da Súmula n. 613, afastou a aplicação do fato consumado em matéria ambiental[7].
Ainda, no ano de 2021, o mesmo tribunal superior firmou a tese, por intermédio da edição do Tema Repetitivo 1010[8], da aplicação do artigo 4º, caput, inciso I, alíneas “a”, “b”, “c”, “d” e “e” da Lei Florestal n. 12.651 de 2012 (BRASIL, 2012), inclusive em áreas urbanas consolidadas, desprezando-se, portanto, toda uma realidade fática e notória, visto que sequer houve a modulação dos efeitos daquela decisão.
A propósito, o entendimento externado pelo Superior Tribunal de Justiça não restou imune a crítica da doutrina especializada:
“[…] com todo o respeito, a Corte deixou de modular os efeitos da decisão não estipulando a partir de quando seus efeitos passam a valer, tampouco considerando o caso de obras licenciadas e com medidas compensatórias, desperdiçando, ainda, a oportunidade de repensar a extensão das faixas não edificáveis em contextos de APP em áreas urbanas sob a luz da segurança jurídica e do direito adquirido, desconsiderando o problema da majoração retroativa das faixas e de proteção, fazendo dos empreendimentos licenciados antes do Código Florestal os mais impactados (construções onde os cursos d´água estão integralizados, há muito tempo, à realidade urbana”. (EL HORR; DOMBROSKI; CARNEIRO, 2022).
No entanto, no final do ano de 2022, foi publicado acórdão pelo Superior Tribunal de Justiça, em julgamento do Recurso Especial 1.483.187 referendou decisão que aplica, de maneira indireta, a teoria do fato consumado em tema ambiental. Inclusive, a revista eletrônica Consultor Jurídico já vem detectando essa tendência, conforme se verifica de artigo publicado naquele site especializado[9].
A propósito, no julgamento do Resp acima mencionado restou ratificado o entendimento da Justiça Federal de que o direito à propriedade e o direito ao meio ambiente equilibrado “[…] são, ambos, assegurados pela Constituição Federal. Havendo conflito entre os dois, se faz necessária uma solução que evite sacrificar totalmente um em prol do outro”[10].
A partir desta compreensão o poder judiciário da esfera federal (TRF 3ª Região) autorizou que ranchos construídos à beira do rio Pardo, na região de Ribeirão Preto (SP), sejam mantidos. Cita-se abaixo o entendimento que restou prestigiado pelo STJ, não obstante divergência aberta pelo Ministro Herman Benjamin:
Como bem destacou o MM. Juiz “a quo”, “os ‘ranchos’ ocupam terreno marginal e área de preservação permanente, de modo que procedem em parte as alegações no sentido de que a ocupação dos ‘ranchos’ impede e dificultam a regeneração da vegetação natural. No entanto, isso somente ocorre nas áreas edificadas, já que a prova dos autos demonstra a utilização racional dos ‘ranchos’ pelos réus, de forma equilibrada com o meio ambiente, exclusivamente dedicada ao lazer”. De fato, a parte autora não demonstrou o uso abusivo das áreas objeto de discussão, sendo que as provas testemunhais apresentadas pela parte ré comprovam a utilização ordenada racional e o cuidado com a vegetação, na medida em que ficou esclarecido que as edificações já existiam quando da ocupação da maioria dos réus, que não houve derrubada de vegetação por parte deles, mas, ao contrário, houve plantio de árvores, e que a destruição parcial de vegetação se deu em virtude de enchentes no local. Aliás, cumpre ser destacado que os laudos constantes dos procedimentos administrativos instaurados em face dos réus observam os danos ambientais existentes em cada caso, afirmando que os réus procederam ao plantio de árvores nativas (procs. em apenso).
Portanto, não há provas nos respectivos autos no sentido de que os réus devastaram a vegetação nativa, da mesma forma que não há comprovação de que a ocupação tenha dado origem à poluição ambiental.
Desta feita, verifica-se de um lado a ocupação de área protegida por longo tempo, contudo, não resta provado o nexo causal entre a ocupação e eventual dano ocorrido na região, já que os próprios laudos apresentados pelo Poder Público atribuem às edificações o dano ambiental.
Decisões desta natureza, alicerçadas em situações de fato, amparadas por provas técnicas necessárias ao convencimento do julgador no sentido de apontarem que a atividade humana não vem causando danos ambientais e, pelo contrário, possibilita a recuperação e/ou manutenção do meio ecológico, devem, respeitados os posicionamentos em sentido contrário, ganharem destaque nos tribunais pátrios na medida em que conciliam direitos fundamentais constitucionalmente consagrados (propriedade x meio ambiente ou vida x desenvolvimento econômico).
Desta feita, repise-se que a lei 14.285 de 2021, ao introduzir o conceito de área urbana consolidada à Lei Florestal n. 12.651 de 2012, confere mecanismo objetivo ao intérprete para, no espaço urbano, compatibilizar os interesses envolvidos em determinada situação concreta com fundamento em estudos técnicos capazes de suprir lacunas muitas vezes não preenchidas pela simples interpretação jurídica.
Ganha relevo, portanto, o chamado diagnóstico socioambiental[11], documento técnico que traduz a relação da sociedade com o meio ambiente, levando em consideração inúmeros aspectos, por exemplo, para a definição das áreas de preservação permanente em área urbana consolidada e, consequentemente, integrando à esfera normativa a teoria do fato consumado, a qual parece, felizmente, estar ganhando força na aplicação do plexo normativo ambiental brasileiro, gerando maior segurança jurídica aos jurisdicionados.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
https://www.dizerodireito.com.br/2012/11/teoria-do-fato-consumado.html. Acesso em 29.08.2022.
https://scon.stj.jus.br/SCON/pesquisar.jsp. Acesso em 29.08.2022.
https://direitoambiental.com/a-sumula-613-de-stj-e-a-negacao-do-fato-consumado/. Acesso em 29.08.2022.
http://genjuridico.com.br/2020/09/02/teoria-do-fato-consumado-materia-ambiental/ Acesso em 30.08.2022.
OLIVEIRA, BL. Proporcionalidade no direito ambiental. In LIVIANU, R., cood. Justiça, cidadania e democracia [online]. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisa Social, 2009. pp. 61-73. ISBN 97885-7982-013-7. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>.
https://scon.stj.jus.br/SCON/pesquisar.jsp?b=SUMU&sumula=613. Acesso em 15.09.2022.
https://processo.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/pesquisa.jsp?novaConsulta=true&tipo_pesquisa=T&cod_tema_inicial=1010&cod_tema_final=1010. Acesso em 15.09.2022.
https://www.conjur.com.br/2022-dez-24/trf-analisar-possibilidade-demolir-imovel-construido-app
https://www.conjur.com.br/2023-jan-16/area-protegida-ocupada-uso-racional Acesso em 16.01.2023.
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Notas:
[1] Disponível em: https://www.dizerodireito.com.br/2012/11/teoria-do-fato-consumado.html. Acesso em 29.08.2022.
[2] Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/pesquisar.jsp. Acesso em 29.08.2022.
[3] Disponível em: https://direitoambiental.com/a-sumula-613-de-stj-e-a-negacao-do-fato-consumado/. Acesso em 29.08.2022.
[4] Disponível em: http://genjuridico.com.br/2020/09/02/teoria-do-fato-consumado-materia-ambiental/ Acesso em 30.08.2022.
[5] OLIVEIRA, BL. Proporcionalidade no direito ambiental. In LIVIANU, R., cood. Justiça, cidadania e democracia [online]. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisa Social, 2009. pp. 61-73. ISBN 97885-7982-013-7. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>.
[6] Neste ponto, a norma é controversa na medida em que não está claro se a oitiva do conselho estadual de meio ambiente será consultiva ou deliberativa e, ainda, se em caráter supletivo.
[7] Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/pesquisar.jsp?b=SUMU&sumula=613. Acesso em 15.09.2022.
[8] Disponível em: https://processo.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/pesquisa.jsp?novaConsulta=true&tipo_pesquisa=T&cod_tema_inicial=1010&cod_tema_final=1010. Acesso em 15.09.2022.
[9]A exemplo: https://www.conjur.com.br/2022-dez-24/trf-analisar-possibilidade-demolir-imovel-construido-app
[10] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-jan-16/area-protegida-ocupada-uso-racional Acesso em 16.01.2023.
[11] […] instrumento que permite conhecer o patrimônio ambiental de uma comunidade (atributos materiais e imateriais). É um instrumento de informações, de caráter quantitativo e qualitativo específico para uma dada realidade (não devem ser generalizados) que revela sua especificidade histórica e que reflete a relação da sociedade com o meio ambiente. Devem ser construídos de uma maneira sistêmica, ou seja, considerando as interações entre os elementos (sociais, econômicos, ambientais, culturais, espirituais) da realidade. Este mapeamento permite avaliar sua qualidade ambiental e sua qualidade de vida, e o estabelecimento de indicadores de sustentabilidade. O conhecimento da realidade além de ensejar a afirmação da identidade local (conhecimento do patrimônio ambiental) é fundamental no processo de construção da cidadania ambiental, uma vez que seus elementos são fundamentais para a tomada de decisão por atores públicos e privados na elaboração de alternativas de transformação no sentido de harmonizar a relação entre as pessoas e destas com a biosfera. MARTINS, S. R. Critérios básicos para o Diagnóstico Socioambiental. Texto base para os Núcleos de Educação Ambiental da Agenda 21 de Pelotas: “Formação de coordenadores e multiplicadores socioambientais” (2004).