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Proteção da Mata Atlântica em Minas Gerais: peculiaridades e desafios

por Paula Angélica Reis Carneiro, Micheli Costa e Milla Silva.

 

O bioma Mata Atlântica é considerado um dos mais ricos do globo em biodiversidade e endemismo e tem irrefutável valor ambiental, endossado mundialmente. Com cerca de 20 mil espécies vegetais e mais de duas mil espécies animais, a biodiversidade da Mata Atlântica é maior do que a de alguns continentes, como a América do Norte e Europa. Por esta razão, é reconhecida pela UNESCO[1] como Patrimônio Mundial e como Hotspot, ou seja, uma área de alta biodiversidade, prioritária para conservação (SANQUETTA, 2008[2]; MMA, 2019[3]).

A magnitude deste bioma vai além do tema ambiental, ganhando notoriedade também na esfera socioeconômica, uma vez que seu território abrange 17 estados brasileiros e concentra a arrecadação de 70% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional. Aproximadamente 175 milhões de habitantes (incluindo comunidades indígenas, caiçaras, ribeirinhas e quilombolas) usufruem dos benefícios, diretos e indiretos, que a Mata Atlântica proporciona, como o fornecimento de matéria-prima para os mais diversos setores industriais, além da regulação do clima e do fluxo de mananciais hídricos, que abastecem as principais metrópoles e cidades brasileiras2.

Dada sua importância, a Constituição Federal de 1988 em seu artigo 225, § 4°, expressamente assegurou a tutela do bioma como bem jurídico ambiental prioritário para preservação, ao categorizá-lo como Patrimônio Nacional.

§ 4º A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais. (grifos nossos)

Além da Carta Magna, os diversos esforços e políticas para conservação da Mata Atlântica culminaram em uma legislação própria para sua defesa. O bioma é protegido pela lei nº 11.428/2006, conhecida como lei da Mata Atlântica, e regulamentada pelo Decreto nº 6.660/2008. Obviamente, que outros diplomas, a exemplo do Código Florestal e da Política Nacional do Meio Ambiente devem ser sempre considerados, a depender da situação envolvendo o bioma.

No tocante a Mata Atlântica, uma das dificuldades do empreendedor no Brasil é entender as diversas especificidades relacionadas a este bioma. Aspectos como as características das fitofisionomias (ou formações vegetais) que compõem o bioma, a identificação do estágio sucessional de sua vegetação e o âmbito de incidência e a interpretação da legislação que o regulamenta, são exemplos da complexidade do tema.

Nessa perspectiva, impossível avançarmos na discussão dos aspectos da vegetação da Mata Atlântica sem previamente enfrentarmos, ainda que de forma sucinta, o conceito de bioma. Sob a perspectiva ecológica, existem diversas definições na literatura, destacamos a utilizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2019)[4]:

um conjunto de vida vegetal e animal, constituído pelo agrupamento de tipos de vegetação que são próximos e que podem ser identificados em nível regional, com condições de geologia e clima semelhantes e que, historicamente, sofreram os mesmos processos de formação da paisagem, resultando em uma diversidade de flora e fauna própria.

Segundo Milaré citando SCHERER[5], “trata-se de um ambiente da natureza que ostenta um conjunto de características próprias e que hospeda diversas espécies vivas bem harmonizadas com esse ambiente, gerando uma estreita interdependência, que condiciona a própria sobrevivência delas”.

Ao contrário do senso comum, há no bioma uma mistura de fitofisionomias, muitas vezes, impossível de se delimitar e que em algumas situações, ultrapassam os limites geográficos estabelecidos em mapas avançando para outro bioma, podendo alcançar as fronteiras de outro País.

Assim, os biomas podem apresentar diversas delimitações espaciais, as quais variam conforme a perspectiva abordada, a exemplo da ecológica, socioambiental, geopolítica dentre outras. Não obstante o mesmo bioma possa apresentar diferentes configurações para atender diversos fins, resta claro que, a uniformização da delimitação geográfica da vegetação que o define é imprescindível para minimizar divergências interpretativas, a exemplo do que ocorre com o bioma Mata Atlântica.

O artigo 2º da lei nº 11.428/06 traz, de forma expressa, que as delimitações do bioma Mata Atlântica seriam estabelecidas em mapa do IBGE, do mesmo modo, o Decreto nº 6.660/08 denomina referido mapa como “Mapa da Área de Aplicação da Lei no 11.428/2006” e estabelece que este será disponibilizado de forma impressa e nos sites do IBGE e Ministério do Meio Ambiente. Percebe-se que o critério locacional ou geográfico foi o adotado pelo legislador para delimitar as áreas tuteladas pela lei, atribuindo ao IBGE a função de elaborar o mapa com a definição do território de abrangência da norma.

O citado mapa tem como objetivo projetar a cobertura vegetal deste bioma e suas distintas tipologias conforme sua configuração original, para fins de aplicação da lei. Foi elaborado em escala 1:5.000.000, tendo como base técnica o Mapa de Vegetação do Brasil (2004) e o Mapa de Biomas (2004), e atualizado em 2009 com escala 1:50.000[6]. O mapa apresenta de forma clara as áreas de tensão ecológica[7] e as diferentes fitofisionomias deste bioma, contudo, sua última versão carece de atualização.

Avançando na discussão, o Decreto n° 6.660/08, art. 1º, também define as áreas que seriam delimitadas no mapa e, estabelece os limites de aplicação da norma, que se restringe às formações florestais denominadas Floresta Ombrófila (Densa, Mista e Aberta), Floresta Estacional Semidecidual e Decidual, campos de altitude, áreas das formações pioneiras, refúgios vegetacionais, áreas de tensão ecológica, brejos interioranos e encraves florestais, áreas de estepe, savana e savana-estépica, e vegetação nativa das ilhas costeiras e oceânicas.

A lei ainda determina que “somente os remanescentes de vegetação nativa primária e vegetação nativa secundária nos estágios inicial, médio e avançado de regeneração na área de abrangência do mapa” terão seu uso e conservação protegidos pela lei em tela. Resta claro, portanto, que o alcance de proteção da Lei da Mata Atlântica e do seu Decreto regulamentador se limita exclusivamente às formações florestais nativas e ecossistemas associados bem como aos estágios sucessionais citados na norma, observando os limites de abrangência estabelecidos pelo Mapa de Aplicação da Lei da Mata Atlântica (MILARÉ, 2019[8]).

No estado de Minas Gerais a ambiguidade surge, sobretudo, das dificuldades interpretativas das legislações específicas de proteção à Mata Atlântica e da confusão entre a utilização do Mapa de Biomas (IBGE) e do Mapa de Aplicação da Lei nº 14.428/06, resultando, assim, em inúmeros prejuízos aos empreendedores e ao equilíbrio do meio ambiente.

O Mapa de Biomas (IBGE) teve como objetivo delimitar geograficamente os biomas brasileiros, com sua primeira aproximação em 2004 (escala 1:5.000.000) e a segunda em 2019 (escala 1:250.000[9]). Esta última versão apresentou avanços metodológicos e adoção de ferramentas, com destaque para o aumento da resolução das imagens orbitais (espacial, espectral e temporal) e trabalhos de campo que possibilitaram a delimitação dos limites dos biomas de forma mais precisa4. Contudo, a abordagem metodológica anexou as áreas de contato ao bioma confrontante, tendo como critério a tipologia dominante de cada um deles. Assim, ao suprimir as áreas de tensão ecológica, esse mapa desconsiderou a complexa e extensa vegetação existente na área de transição entre os biomas.

Por seu turno, o Mapa da Área de Aplicação da Lei nº11.428/06, apesar de não ter sido atualizado recentemente, e diferentemente do Mapa de Biomas, identifica as áreas de aplicação da Lei da Mata Atlântica (inclusive nas áreas de tensão ecológica) e não necessariamente a delimitação do bioma Mata Atlântica em si. Dessa forma, com objetivos e recursos distintos, tais mapeamentos adotaram metodologias e escalas variadas, resultando, muitas vezes, na representação de diferentes limites geográficos para a localização da vegetação de Mata Atlântica.

Do ponto de vista jurídico, os mapas em tela incorporam o ordenamento jurídico de forma diferente e possuem aplicação diversa, não devendo, portanto, ser analisados de forma excludente e, sim, de forma complementar. Nessa linha, um mapa delimita as áreas com vegetação remanescente de Mata Atlântica e suas fitofisionomias, vinculando-se à Lei da Mata Atlântica, e, outro, identifica e define os Biomas de maneira geral, vinculando-se às legislações que abordam o tema de forma ampla.

Ampliando a problemática no estado de Minas Gerais, a Instrução de Serviço (IS) SISEMA n° 02 de 2017[10], que dispõe sobre os procedimentos administrativos para fixação, análise e deliberação de compensação de vegetação primária ou secundária em estágio médio ou avançado de regeneração no Bioma Mata Atlântica, se embasando na nota explicativa do Mapa da Área de Aplicação da Lei no 11.428/2006, extrapola a tutela até aqui conferida e estende o limite de proteção da vegetação de Mata Atlântica para além da área de aplicação do mapa. Conforme redação da IS:

Assim, dentro do polígono, definido pelo mapa do IBGE como Mata Atlântica, serão considerados no âmbito dessa IS, todas as fitofisionomias típicas do Bioma, bem como aqueles referentes aos ecossistemas associados, mesmo que características do bioma Cerrado e Caatinga.

De acordo com a nota explicativa que acompanha o mapa em referência, fora da sua área de aplicação, ainda recebem o mesmo tratamento jurídico dado à Mata Atlântica pela Lei Federal nº 11.428/2006 as seguintes disjunções nos Biomas que ocorrem em Minas Gerais:

No Bioma Caatinga as seguintes formações florestais nativas (disjunções): Floresta Ombrófila Densa, Floresta Ombrófila Aberta, Floresta Estacional Semidecidual e Floresta Estacional Decidual, referidas na Lei como brejos interioranos e encraves florestais do Nordeste, Refúgios Vegetacionais e Áreas das Formações Pioneiras, referidos na Lei como ecossistemas associados, assim como as áreas constituídas por estas tipologias, presentes nos Contatos entre Tipos de Vegetação.

No Bioma Cerrado as seguintes formações florestais nativas (disjunções): Floresta Estacional Semidecidual, Floresta Estacional Decidual e Refúgios Vegetacionais.

Ora, sob a ótica dos fundamentos e princípios que norteiam o direito ambiental brasileiro, a Nota de Explicação que acompanha o Mapa de Aplicação da Lei da Mata Atlântica, não tem o peso legal da Lei, tampouco do Decreto, não podendo modificar, portanto, o que está definido por elas, nem acrescentar ou retirar exigência ou configuração legal, conforme bem esclarece o Parecer Técnico n° 2 de 2014 do Ministério do Meio Ambiente.

Cumpre destacar que, atualmente a Instrução de Serviço vem sendo parcialmente aplicada no estado de Minas Gerias. Desde o final do ano de 2019 o entendimento sobre a possibilidade de extensão da proteção da Lei 11.428/06 para além das áreas definidas no mapa de aplicação da Mata Atlântica nos parece permanecer também por meio do Decreto 47.749 de 2019.

Não é o objetivo desse artigo adentrar a discussão sobre a validade, eficácia e legitimidade dessas normas ao alterar os limites de aplicação do mapa vinculado a uma norma federal (Lei 11.428/06). Entretanto, percebam a complexa situação enfrentada pelo empreendedor. As questões relacionadas à supressão e/ou regularização de áreas de Mata Atlântica são, de certa forma, relativizadas na interpretação das normas, resultando em inúmeros prejuízos e baixa segurança jurídica.

Para ilustrar, cabe citar as não raras propriedades com fragmentos de vegetação nativa que excedem o percentual exigido em lei, normalmente passíveis de supressão, localizadas nas complexas áreas de tensão entre os biomas Mata Atlântica e Cerrado. Ou, ainda, aquelas situações de propriedades cujo perímetro encontra-se, em dois biomas, normalmente no Cerrado e Mata Atlântica. Nesses casos, apesar da aplicação e do entendimento não serem uniformes, podemos perceber que algumas Superintendências Regionais de Meio Ambiente (Suprams) de Minas Gerais, utilizam os mapas da seguinte forma: se a situação for análise de pedido de supressão será realizada utilizando o Mapa da Área de Aplicação da Mata Atlântica, se a situação contemplar a regularização, por exemplo, de déficit de reserva legal, a análise utilizará o mapa de biomas. Ora, se os mapas apresentam as áreas com limites geográficos distintos para a vegetação no estado, os resultados possivelmente não se converterão em situações justas.

Ainda, dada a complexidade do tema e as diversas formas de aplicação dos mapas – embora acreditemos, com base nos argumentos legais e técnicos expostos, que para fins de aplicação da Lei 11.428/06 cabe a utilização do “Mapa de Aplicação da Lei da Mata Atlântica”, defendemos a tese de que, para afastar a relativização da interpretação das normas e desequilíbrio na sua aplicação é urgente uma padronização e harmonização dos procedimentos e instrumentos inerentes ao bioma em tela, sob pena de comprometer-se a proteção do bem jurídico em destaque, qual seja a biodiversidade da Mata Atlântica.

Por fim, a segurança jurídica e a equidade (seja ela socioeconômica, jurídica e/ou ambiental) somente existirão se presentes a habilidade em compatibilizar a análise sistemática da legislação pertinente com a uniformização dos critérios técnicos de proteção e identificação das áreas de vegetação da Mata Atlântica, possibilitando, assim o cumprimento do desenvolvimento sustentável, objetivo geral da Lei da Mata Atlântica.

Notas:

 [1] Unesco: Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura.

[2] SANQUETTA, Carlos Roberto. Experiências de monitoramento no bioma Mata Atlântica com uso de parcelas permanentes. Curitiba: Funpar/RedeMaf, 2008. Disponível em: <https://www2.ib.unicamp.br/profs/cjoly/0%20-

[3] MMA – MINISTÉRIO DE MEIO AMBIENTE. Mata Atlântica. Brasília: MMA, 2019. Disponível em: <https://www.mma.gov.br/biomas/mata-atl%C3%A2ntica_emdesenvolvimento>. Acesso em maio de 2020.

[4] IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Biomas brasileiros. Rio de Janeiro: IBGE, 2020.

[5] SCHERER, Odilo P. Biomas Brasileiros – cultivar e cuidar. O Estado de S. Paulo, 11.02.2017. p.A2.

[6] Disponível em: https://www.mma.gov.br/biomas/mata-atl%C3%A2ntica_emdesenvolvimento/mapas-da-mata-atl%C3%A2ntica.

[7] Áreas entre duas ou mais regiões ecológicas que “apresentam comunidades indiferenciadas onde as floras se interpenetram constituindo as transições florísticas ou contatos edáficos. O primeiro caso se refere ao ‘mosaico específico’ ou ao próprio ecótonos de Clements (1949). O segundo caso se refere ao ‘mosaico de áreas edáficas’, onde cada encrave guarda sua identidade ecológica, sem se misturar (Veloso et al, 1973)” (IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Manual técnico da vegetação brasileira. Manuais Técnicos de Geociência. 2ª ed.  Rio de Janeiro: IBGE, 2012.

[8] MILARÉ, Édis. Direito do ambiente, 11 Ed., São Paulo: Thomson Reuters, 2018.

[9] Disponível em: https://www.ibge.gov.br/geociencias/informacoes-ambientais/15842-biomas.html?=&t=o-que-e.

[10] Disponível em: http://www.meioambiente.mg.gov.br/component/content/article/13-informativo/3016-instrucao-de-servico-sisema.

Paula Angélica Reis Carneiro – Advogada. Formada em Direito pela Uniube e em Biologia pela UFU. Especialista em Direito Ambiental e Gestão da Sustentabilidade pela PUC/SP. Especialista em Governança Corporativa pelo IBGC. Membro da UBAA.

Micheli Pereira Costa: Geógrafa, mestre em Planejamento, Gestão e Análise Ambiental pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU).

 Milla Christi Pereira da Silva: Advogada, pós-graduanda em Direito Ambiental e Urbanístico pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas) e mestranda em Direitos e Garantias Fundamentais pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU).

Direito Ambiental

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