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O rodízio de Carros em São Paulo – A Política de Mobilidade Urbana fracassou no combate ao Corona Vírus

por Leandro Eustáquio.

 

O surgimento de um novo vírus identificado em Wuhan, na China, em dezembro de 2019 é o responsável pela disseminação da doença denominada Covid-19. Inicialmente declarada como Emergência de Preocupação Internacional  em 30/01/20, foi posteriormente reconhecida como pandemia pela Organização Mundial de Saúde[1] em 11/03/2020.

A pandemia atingiu o Brasil em diversos aspectos. Enquanto este artigo estava sendo redigido, 241.080  brasileiros já tinham sido contaminados e outros 16.118 levados a óbito[2]. Para o mesmo caminho, seguiu a economia brasileira que padece de números negativos, como a produção de automóveis no país, que caiu 99,3% em abril e é a pior desde 1957[3]. Sobre o desemprego, melhor nem falar.  Fato é que depois da publicação deste texto os números serão piores.

Face à inexistência de vacina ou de qualquer medicação para combater o vírus, o caminho recomendado é do isolamento social para evitar que o pico de contágio sobrecarregue e colapse o sistema de saúde. Diante disso, o Poder Executivo de quase todos os entes federados têm tomado medidas para combater o alastramento do coronavírus, sendo uma delas a restrição à liberdade de locomoção.

Basta lembrar uma das primeiras medidas restritivas tomadas no Brasil, qual seja o Decreto n. 46.980[4], publicado em 19 de março de 2020 pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro. Esse dispositivo restringiu a circulação por transporte intermunicipal e interestadual rodoviário em território fluminense.

O Executivo Federal reagiu em sentido contrário, publicando a Medida Provisória (MP) 926[5], de 20 de março de 2020. Nessa MP, a União deixou expresso que apenas ato do Executivo Federal é que teria atribuição para restringir a locomoção interestadual e intermunicipal pelas rodovias.

Contra a Medida Provisória, foi ajuizada, em 23 de março de 2020, a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6341[6], a primeira ação que chegou ao Supremo Tribunal Federal sobre o conflito de competências entre os entes Federativos. Nessa ADI, levantaram-se vícios de inconstitucionalidade sob diversos aspectos formais e materiais. Em caráter liminar, no dia 24 de março de 2020, o Relator Ministro Marco Aurélio decidiu que as providências listadas na MP não poderiam afastar atos praticados pelos Estados, Distrito Federal e Municípios, decisão que foi referendada pelo Plenário da Corte em 15 de abril.

No julgamento, o Tribunal decidiu pela preservação da competência e autonomia de estados, Distrito Federal e municípios, em detrimento da União. Assim, seriam os entes da federação que deveriam definir o que seriam serviços essenciais, bem como as medidas necessárias para o enfrentamento da Covid-19. Desta maneira, o teor dessa decisão passou a pautar a postura da Corte nos julgamentos que ocorreriam[7], embora o próprio STF não tenha dado aos municípios a livre e absoluta permissão para agir, exigindo-se o respeito às normas editadas pelos respectivos governos estaduais[8].

Depois que o STF reconheceu a autonomia dos estados, Distrito Federal e Municípios, era esperado que aumentasse o número de medidas restritivas e não foi diferente no Município de São Paulo. Em uma tentativa de aumentar o isolamento social, a capital mais populosa do país (re)implantou o Rodízio suspenso no início da pandemia.

Importante lembrar que o objetivo do Rodízio é fazer  com que os cidadãos usem o transporte público coletivo, deixando de lado o transporte individual motorizado, uma diretriz da Política Nacional de Mobilidade Urbana[9].

A situação de emergência e o estado de calamidade pública no Município de São Paulo, reconhecidos pelos Decretos Municipais nº 59.283[10] de 16 de março de 2020nº 59.291[11] de 20 de março de 2020, assim como a necessidade de medidas de vigilância epidemiológica, fundamentados na Lei Federal nº 13.979[12] de 6 de fevereiro de 2020, fizeram  o Poder Executivo do Município de São Paulo publicar o Decreto 59.403[13] de 7 de maio de 2020. Com essa medida, o Prefeito Covas fez retornar o rodízio que tinha sido suspenso no início da Pandemia.

Tal norma ampliou os locais, dias e horários para a restrição de veículos, dessa maneira, todo o perímetro da cidade de São Paulo estaria alcançado pela restrição, que vale para todos os dias da semana, vinte e quatro horas do dia, dividindo-se os veículos em placas com final par e ímpar. Ademais, estabeleceu-se um rol de situações excluídas da restrição.

Mal foi publicado o Decreto, o mesmo passou a ser bastante criticado. Especialistas consultados por UOL Carros[14] destacam que a Prefeitura de São Paulo até agora não apresentou nenhum estudo científico para balizar o “super-rodízio”, que não tem data para terminar. “Novo rodízio de carros enche o Transporte Público e pode facilitar contaminação”, diseram alguns médicos em reportagem veiculada pela Folha de São Paulo[15]. Os motoristas de aplicativo, já prejudicados pela queda de suas corridas, bradaram aos montes. Por fim, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo encaminhou ofícios[16] a órgãos municipais da capital, pois demonstrou preocupação com o  “aparente aumento de passageiros nos ônibus de São Paulo desde que o rodízio foi implementado.”

Sob o prisma jurídico, a compreensão é que o rol de situações excluídas do rodízio é taxativo, já que em matéria de saúde pública a interpretação deve ser restritiva, de maneira que as situações não listadas ali só poderão circular se houver ordem judicial para tanto. Nesse sentido, a judicialização do Decreto que (re) implantou o Rodízio vinha aumentando em ritmo parecido ao apontado no segundo parágrafo deste texto.

Em uma das primeiras ações propostas[17], um médico, que atua diretamente no tratamento da Covid-19, obteve tutela para cadastrar o veículo que usa para trabalhar. Entretanto, o automóvel está em nome da esposa, que, obviamente, não está listada no rol de exclusão da restrição. Pela decisão judicial, o autor dessa ação não poderá sofrer qualquer sanção decorrente do Decreto Municipal e que diga respeito à restrição no uso de seu veículo quanto a locais, horários e dias de semana fixados pela administração municipal.

Tal como o médico, uma grávida também teve sucesso em seu pleito. O Desembargador Malheiros[18], do Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo a isentou de cumprir o rodízio nas datas de internação (12-5) e previsão de alta (14-5), já que o carro da gestante não tem autorização para circular nos dias em que ela irá se deslocar. Espera-se que tudo tenha saído bem com ela, já que a publicação desse artigo deve ter se dado depois do parto.

Em sentido contrário as duas decisões anteriores, o juízo da 4ª Vara da Fazenda Pública da Capital[19] negou pedido liminar para a suspensão da medida tomada pelo prefeito Covas. Nessa ação, decidiu-se que “não há, em princípio, vício formal na edição do Decreto nº 59.402/2020, não cabendo ao Poder Judiciário se imiscuir nas diversas medidas que estão sendo adotadas pelo poder público para contenção do alastramento da pandemia mundial do novo coronavírus (Covid-19). Essas medidas têm sido baseadas nas orientações proferidas pelos órgãos sanitários, Ministério da Saúde e Organização Mundial da Saúde”.

Depois de vários pedidos individuais concedidos e/ou negados, foi publicada a primeira decisão envolvendo uma associação. O desembargador Jacob Valente[20], do Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo, concedeu liminar que permite que os filiados da Abrava (Associação Brasileira de Refrigeração, Ar-Condicionado, Ventilação e Aquecimento) não sejam submetidos ao rodízio especial.

Nessa decisão, o Desembargador determinou que “o Município de São Paulo disponibilize meios para que os associados da Abrava cadastrem seus veículos para garantir a não incidência de multas ou bloqueio em blitz, “o que não impede a fiscalização de requerer do respectivo condutor, se for o caso, comprovação de que se encontra em serviço ou retornando deste”..

O Magistrado Valente usou do fundamento de que “se determinada atividade é declarada como ‘essencial’ pelos órgãos gestores, e se para sua fiel execução há dependência da locomoção dos respectivos técnicos, em veículos próprios ou da empresa, é dever da Administração garantir o seu livre trânsito pelas vias públicas”.

Mas e qual o efeito prático de tanta norma restritiva, de tamanha judicialização, de tantas decisões judiciais em um sentido ou em outro? Parece ter (re) aquecido o mercado jurídico durante uma semana, tão apenas isso.

E o Trânsito em São Paulo, o isolamento social e a aglomeração, como ficam? E a Poluição Atmosférica, o consumo de energia elétrica dentro de casa e o consumo de Streaming? E o Ministro de Ciência e Tecnologia que desapareceu?

Onde estão os investimentos, as pesquisas, tão necessários para qualquer país que se julgue minimamente desenvolvido? Talvez esteja aí a válvula para desempatar a polarização entre a Economia e a saúde.

O Rodízio inicialmente implantado nos anos 90 na cidade mais populosa do Brasil foi sendo “flexibilizado” pela própria população paulistana ao longo do tempo. Quem pode andar de carro em São Paulo sai mais cedo para trabalhar e volta mais tarde para casa, fugindo do rodízio, simples assim. Quem não tem tal opção, usa do transporte público, que funciona em São Paulo melhor que na maioria do país. Isso não vai mudar com o novo Decreto do Prefeito Covas.

Ainda quanto ao transporte público, as medidas relacionadas “devem estar coordenadas com outras ações do poder público para evitar o deslocamento de pessoas e aumentar o patamar de isolamento social, inclusive com apoio a grupos e parcelas vulneráveis da população”, alertou a Defensoria Pública nos ofícios acima mencionados.

Há também os efeitos colaterais que passam desapercebidos. E os malfeitores que vendem placas com “números avulsos” para que sejam colocadas acima dos números que são impedidos de circular em um dia ou em outro? Isso vai mudar?

Fato é que o rodízio ampliado fracassou, pois a medida mais restritiva não surtiu o efeito desejado para aumentar o isolamento social na capital paulista. O Prefeito de São Paulo anunciou[21] que o rodízio tradicional volta a vigorar no dia 18 de maio, com a restrição da circulação de automóveis conforme o número final de placa e dia de semana, tão somente no chamado centro expandido e nos horários de pico, como era antes da Pandemia.

Quais outras medidas estão por vir? Continua o jogo de tentativa e erro? Quem viver, verá!

Notas:

[1]https://www.who.int/dg/speeches/detail/who-director-general-s-opening-remarks-at-the-media-briefing-on-covid-19—11-march-2020. Acesso em 07/05/2020.

[2]https://covid.saude.gov.br/ – Acesso em 18/05/2020

[3]https://www.otempo.com.br/super-noticia/%C3%BAltimas/producao-de-veiculos-cai-99-3-e-abril-e-pior-mes-desde-1957-diz-anfavea-1.2334768 – Acesso em 09/05/20

[4]https://pge.rj.gov.br/comum/code/MostrarArquivo.php?C=MTAyMjQ%2C – Acesso em 12/05/2020

[5]http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/Mpv/mpv926.htm – Acesso em 12/05/2020

[6]http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5880765 – Acesso em 12/05/2020

[7] Rcl 39.790/ES, Rcl 39.884/MT, Rcl 39.887, Rcl 40.035/SP, e SS 5.369.

[8]https://www.conjur.com.br/2020-mai-13/stf-determina-marilia-sp-siga-decreto-estadual-isolamento – acesso em 13/05/2020

[9] LEI Nº 12.587, DE 3 DE JANEIRO DE 2012. Art. 6º A Política Nacional de Mobilidade Urbana é orientada pelas seguintes diretrizes:II – prioridade dos modos de transportes não motorizados sobre os motorizados e dos serviços de transporte público coletivo sobre o transporte individual motorizado;

[10]http://legislacao.prefeitura.sp.gov.br/leis/decreto-59283-de-16-de-marco-de-2020 – Acesso em 12/05/2020

[11]http://legislacao.prefeitura.sp.gov.br/leis/decreto-59291-de-20-de-marco-de-2020 – Acesso em 13/05/2020

[12]http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/L13979.htm – Acesso em 13/05/2020

[13]http://legislacao.prefeitura.sp.gov.br/leis/decreto-59403-de-7-de-maio-de-2020 – Acesso em 12/05/2020

[14]https://www.uol.com.br/carros/noticias/redacao/2020/05/12/rodizio-ampliado-em-sao-paulo-e-ineficaz-e-ilegal-dizem-especialistas.htm – Acesso em 12/05/2020

[15]https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/05/novo-rodizio-de-carros-em-sp-enche-transporte-e-pode-facilitar-contaminacao-dizem-medicos.shtml – Acesso em 13/05/2020

[16]https://www.conjur.com.br/2020-mai-14/defensoria-sp-solicita-informacoes-impacto-rodizio – acesso em 14/05/2020

[17]https://www.migalhas.com.br/arquivos/2020/5/99F12ECE35AC08_medicocarro.pdf – Acesso em 12/05/2020

[18]https://www.conjur.com.br/2020-mai-12/desembargador-isenta-gravida-cumprir-rodizio-emergencial – acesso em 13/05/2020

[19]https://www.conjur.com.br/2020-mai-12/juiza-nega-liminar-suspensao-rodizio-ampliado-sao-paulo – Acesso em 13/05/2020

[20]https://www.conjur.com.br/dl/liminar-rodizio.pdf – Acesso em 13/05/2020

[21] https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/05/18/rodizio-de-carros-tradicional-volta-a-vigorar-nesta-segunda-em-sao-paulo-veja-placas-que-podem-circular.ghtml – Acesso em 18/05/20

Leandro Eustaquio – Advogado e Professor Especialista em Direito Ambiental. Membro da Comissão de Direito Ambiental da OAB/MG. Membro do Conselho Estadual de Meio Ambiente de Minas Gerais na Unidade Regional Colegiada do Alto São Francisco e na Câmara de Proteção à Biodiversidade e de Áreas Protegidas.

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