terça-feira , 19 março 2024
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Inconstitucionalidade da lei que disciplina a a extração, industrialização, utilização, comercialização e transporte do amianto crisotila

Na sessão do dia 24/08/2017, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos,   julgou improcedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3937, ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria (CNTI) contra a Lei 12.687/2007, do Estado de São Paulo, que proíbe o uso de produtos, materiais ou artefatos que contenham quaisquer tipos de amianto no território estadual.

Os ministros também declararam, incidentalmente, a inconstitucionalidade do artigo 2º da Lei Federal 9.055/1995, que permitia a extração, industrialização, comercialização e a distribuição do uso do amianto na variedade crisotila no País. Assim, com o julgamento da ADI 3937, o Supremo julgou inconstitucional o dispositivo da norma federal que autoriza o uso dessa modalidade de amianto e assentou a validade da norma estadual que proíbe o uso de qualquer tipo.

Fonte: STF.

Direito Ambiental

– Confira a íntegra do voto do Min. Celso de Mello:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 4.066 DISTRITO FEDERAL

V O T O

O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO:

1. A pretensão de inconstitucionalidade: a questão do amianto em face de princípios constitucionais e de direitos fundamentais

Rememoro, no início deste voto, a grave advertência do saudoso Ministro LUIZ GALLOTTI sobre o alto significado das decisões a serem tomadas por esta Corte, enfatizando que este processo, no qual se busca a preservação de direitos fundamentais da coletividade e da classe trabalhadora, refere-se a um daqueles casos emblemáticos em que o Supremo Tribunal Federal, ao proferir o seu julgamento, poderá ser, ele próprio, “julgado pela Nação” (RTJ 63/299, 312) e, em particular, pelos cidadãos e trabalhadores desta República.

A pretensão de inconstitucionalidade, ora submetida ao julgamento desta Corte, busca a declaração de invalidade jurídico-constitucional do art. 2º da Lei nº 9.055, de 01/06/1995 – que permite a exploração, bem assim a utilização industrial e a comercialização do amianto crisotila (asbesto branco) –, em razão de as fibras de amianto, independentemente de seu tipo ou origem geológica, serem cancerígenas e causadoras de outras graves patologias, algumas das quais caracterizadas por sua letalidade.

Sustenta-se, por tal motivo, que a regra legal em questão transgrediria princípios estruturantes que dão suporte ao Estado Democrático de Direito (CF, art. 1º), como o valor social do trabalho (inciso IV) e a dignidade da pessoa humana (inciso III), além de ofender – segundo se alega – direitos impregnados de caráter fundamental, como a defesa do meio ambiente (CF, art. 225) e a proteção à saúde (CF, art. 196).

É importante destacar que o projeto de lei que se converteu na Lei nº 9.055/95 determinava, em sua formulação original, a substituição progressiva da produção e da comercialização dos produtos que continham amianto, além de proibir, sem qualquer exceção, a extração dessa substância mineral em todo o território brasileiro, valendo reproduzir, por relevante, fragmento da justificativa de referida proposição legislativa:

“O asbesto/amianto provoca uma fibrose pulmonar irreversível e progressiva conhecida como asbestose, além de ser responsável por provocar câncer de pulmão e do trato gastrointestinal, bem como um tumor específico chamado mesotelioma, que pode atacar tanto a pleura como o peritônio, membranas que recobrem o pulmão e intestino, respectivamente, tanto de trabalhadores expostos, como de seus familiares e de moradores vizinhos às fábricas, que utilizam esta fibra

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Pelas razões expostas apresentamos este projeto de lei com o objetivo de proteger a saúde da população, em particular a dos trabalhadores e de suas famílias, uma vez que as fibras de asbesto/amianto que aderem às vestimentas dos trabalhadores aumentam os riscos para o seus familiares.

Já o prazo de quatro anos possibilitará a substituição do asbesto/amianto por fibras alternativas, como vem ocorrendo em outros países, garantindo assim o desenvolvimento da atividade econômica, bem como mantendo os postos de trabalho.

Pela relevância da matéria, oferecemos este projeto de lei para a apreciação dos nobres deputados, para que possamos melhorar as condições de saúde dos trabalhadores, de suas famílias e da população como decorrência.” (grifei)

Esse projeto de lei, no entanto, em sua tramitação, veio a sofrer substancial alteração, que o afastou, por completo, da generosa ideia inicial que lhe inspirara a formulação, resultando em diploma legislativo – a Lei nº 9.055/95 – totalmente divorciado das diretrizes que refletiam, no plano interno, as preocupações da comunidade internacional provocadas pelo alto grau de nocividade do uso, ainda que controlado, do amianto.

2. A utilização ou exposição ao amianto, inclusive do tipo crisotila, como fator de vulneração ao direito fundamental do trabalhador à preservação de sua saúde

O fato indiscutível é que a exposição ao amianto crisotila provoca riscos elevados que dão causa à asbestose, ao câncer pulmonar e ao mesotelioma da pleura, do peritônio e do pericárdio, tornando evidente, em face de sua lesividade, o descumprimento, pelo Estado brasileiro, dos deveres que a Constituição da República lhe impõe, notadamente quando estabelece a necessidade de adoção de programas destinados à redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança (CF, art. 7º, XXII), que se têm revelado, no entanto, insuficientes à consecução dos fins definidos em referido texto constitucional, além de resultar desse inaceitável inadimplemento estatal o comprometimento dos direitos fundamentais à proteção da saúde e à defesa do meio ambiente.

A Constituição da República, ao dispor sobre o amparo e a tutela da saúde, erigindo-a à condição de direito social básico, impõe ao Poder Público o dever de protegê-la, garantindo ao trabalhador, no âmbito de um efetivo programa social, a redução dos riscos inerentes ao trabalho.

O direito à saúde, nesse particular contexto, representa consequência constitucional indissociável do direito à vida. É que o direito público subjetivo à saúde qualifica-se como prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular – e implementar – políticas sociais e econômicas idôneas que visem não só a garantir aos cidadãos (e aos trabalhadores em geral) o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar, como, também, a assegurar-lhes a redução do risco de doenças e de outros agravos, tal como proclama, em tom imperativo, a Lei Fundamental do País.

Cabe enfatizar que o Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional.

A interpretação dos direitos fundamentais, especialmente daqueles de índole social, não pode transformá-los em promessas constitucionais inconsequentes, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado.

O diploma legislativo ora em análise, ao não viabilizar a concretização dos direitos fundamentais a que anteriormente me referi, claramente incide em transgressão ao princípio que veda a proteção jurídico-social deficiente ou insuficiente, assim descumprindo valores constitucionais que não podem deixar de ser observados, seja no plano do respeito à dignidade humana, seja no âmbito da defesa da saúde, seja, ainda, na esfera da proteção ao meio ambiente, cuja noção conceitual, por ser ampla, abrange, inclusive, o meio ambiente laboral ou do trabalho.

A eminente Senhora Ministra ROSA WEBER, no primoroso voto que proferiu, destacou que “A posição oficial inequívoca da Organização Mundial da Saúde – OMS, a autoridade em saúde no âmbito do sistema das Nações Unidas, externada em 1998 no Critério de Saúde Ambiental nº 203 – Amianto Crisotila –, em 2006 no documento ‘Elimination of asbestos-related diseases’ (‘Eliminação de doenças relacionadas ao asbesto’), bem assim em Resoluções da Assembleia Geral de 2005, 2007 e 2013, é a de que: (a) todos os tipos de amianto causam câncer no ser humano, não tendo sido identificado nenhum limite para o risco carcinogênico do crisotila; (b) o aumento do risco de desenvolvimento de câncer tem sido observado mesmo em populações submetidas a níveis muito baixos de exposição; (c) o meio mais eficiente de eliminar as doenças relacionadas ao mineral é eliminar o uso de todos os tipos de asbesto” (grifei).

São tão graves as consequências, quando não letais, provocadas pelo uso, ainda que controlado, do amianto, inclusive o crisotila, que a exploração econômica desse mineral, tal como revelado pela eminente Relatora, “(…) já foi proibida em mais de 50 países, incluindo todos os Estados-membros da União Europeia, que o fez em 1999, mediante a Diretiva 1999/77/CE, com efeitos a partir de 2005. Aquele bloco econômico hoje se ocupa em delinear estratégias de erradicação do amianto que está presente nas construções, bem assim do amianto que entra no espaço europeu incorporado, como impureza, a produtos e materiais” (grifei).

Vale registrar, neste ponto, que o Canadá fez instaurar contra a República Francesa, por suposta transgressão às regras do “fair trade practice”, processo perante a Organização Mundial do Comércio (OMC), pelo fato de a França haver editado legislação vedando a importação, a comercialização e a utilização de amianto, bem assim de produtos que o contêm.

Ao relembrar esse episódio, a eminente Ministra ROSA WEBER, em seu brilhante voto, assinalou que “(…) o Órgão de Apelação da OMC decidiu que a proibição implementada pela França não é inconsistente com nenhuma obrigação assumida pela Comunidade Europeia em acordos celebrados no âmbito da OMC. Na sua visão, a medida proibitiva em questão, não configurando discriminação arbitrária ou injustificada, tampouco restrição disfarçada ao comércio internacional, está amparada pelo Artigo XX do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio – GATT, que autoriza medidas restritivas ao comércio que sejam ‘necessárias para proteger a vida ou a saúde humana’. A medida tampouco foi tida como inconsistente com o Acordo sobre a Aplicação de Medidas Sanitárias e Fitossanitárias e o Acordo Sobre Barreiras Técnicas ao Comércio” (grifei).

O Brasil, no entanto, é lamentável dizê-lo, parece não querer cumprir, no plano interno, os seus deveres constitucionais em tema de proteção à saúde e de defesa do meio ambiente, revelando, ainda, aparente desinteresse em conferir efetividade aos compromissos que assumiu perante a comunidade internacional quando subscreveu importantes convenções, como a Convenção de Basiléia (que dispõe sobre o controle de movimentos transfronteiriços de resíduos perigosos e seu depósito), além daqueles atos celebrados no âmbito da Organização Internacional do Trabalho (OIT), como a Convenção 139 (sobre prevenção e controle de riscos profissionais causados por substâncias ou agentes cancerígenos) e a Convenção 162 (sobre a utilização do amianto com segurança).

3. A exposição às fibras de amianto em face do direito subjetivo do trabalhador à efetiva proteção de sua saúde

Vê-se, portanto, que incide sobre o Poder Público, quer em função de seus encargos constitucionais, quer em razão de seus compromissos internacionais, a gravíssima obrigação de tornar efetivas as prestações de saúde, incumbindo-lhe promover, em favor das pessoas e das comunidades, medidas – preventivas e de recuperação – que, fundadas em políticas públicas idôneas, tenham por finalidade viabilizar e dar concreção ao que prescreve, em seu art. 196, a Constituição da República e, também, ao que estabelecem as convenções internacionais de que o Brasil é signatário.

O sentido de fundamentalidade do direito à saúde – que representa, no contexto da evolução histórica dos direitos básicos da pessoa humana, uma das expressões mais relevantes das liberdades reais ou concretas – impõe ao Poder Público um dever de prestação positiva que somente se terá por cumprido, pelas instâncias governamentais, quando estas adotarem providências destinadas a promover, em plenitude, a satisfação efetiva da determinação ordenada pelo texto constitucional.

Constata-se, desse modo, que, mais do que a simples positivação dos direitos sociais – que traduz estágio necessário ao processo de sua afirmação constitucional e que atua como pressuposto indispensável à sua eficácia jurídica (JOSÉ AFONSO DA SILVA, “Poder Constituinte e Poder Popular”, p. 199, itens ns. 20/21, 2000, Malheiros) –, recai sobre o Estado um inafastável vínculo institucional consistente em atribuir real efetividade a tais prerrogativas básicas, em ordem a permitir às pessoas, inclusive aos trabalhadores, que tenham acesso a um sistema organizado de garantias instrumentalmente associado à realização, por parte das entidades governamentais, da tarefa que lhes impôs a própria Constituição.

Não basta, portanto, que o Estado meramente proclame o reconhecimento formal de um direito. Torna-se essencial que, para além da simples declaração constitucional desse direito, seja ele integralmente respeitado e plenamente garantido, especialmente naqueles casos em que o direito – como o direito à saúde – qualifique-se como prerrogativa jurídica que legitima o cidadão (e o trabalhador) a exigir do Estado a implementação de prestações positivas impostas pelo próprio ordenamento constitucional.

Cumpre também assinalar que a essencialidade do direito à saúde fez com que o legislador constituinte qualificasse, como prestações de relevância pública , as ações e serviços de saúde (CF , art. 197), em ordem a legitimar a atuação do Ministério Público e do Poder Judiciário naquelas hipóteses em que os órgãos estatais, anomalamente, deixassem de respeitar o mandamento constitucional, frustrando-lhe , arbitrariamente, a eficácia jurídico-social, seja por intolerável omissão, seja por qualquer outra inaceitável modalidade de comportamento governamental desviante.

Em uma palavra : a legislação federal ora em exame mostra-se incompatível com valores básicos e direitos fundamentais consagrados por nossa ordem constitucional, pois não dispensa tutela adequada e proteção suficiente ao direito à saúde, entre outras prerrogativas essenciais titularizadas pela coletividade e pela generalidade das pessoas e trabalhadores, a revelar situação configuradora de inconstitucionalidade por omissão , resultante da falta ou da realização incompleta e imperfeita de um programa social que deveria ter sido efetivamente assumido (e implementado) pelo Estado .

Cabe não desconhecer , no ponto, a própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que, por mais de uma vez, já censurou a inércia governamental na implementação de cláusulas fundadas no texto da Constituição, notadamente quando se tratava do descumprimento, por inatividade do Estado, de direitos fundamentais de índole social:

“(…) A omissão do Estado – que deixa de cumprir, em maior ou em menor extensão, a imposição ditada pelo texto constitucional – qualifica-se como comportamento revestido da maior gravidade político-jurídica, eis que, mediante inércia, o Poder Público também desrespeita a Constituição, também compromete a eficácia da declaração constitucional de direitos e também impede, por ausência de medidas concretizadoras, a própria aplicabilidade dos postulados e princípios da Lei Fundamental.

– As situações configuradoras de omissão inconstitucional, ainda que se cuide de omissão parcial, refletem comportamento estatal que deve ser repelido, pois a inércia do Estado – além de gerar a erosão da própria consciência constitucional – qualifica-se, perigosamente, como um dos processos informais de mudança ilegítima da Constituição, expondo-se, por isso mesmo, à censura do Poder Judiciário. Precedentes: RTJ 162/877-879, Rel. Min. CELSO DE MELLO – RTJ 185/794-796, Rel. Min. CELSO DE MELLO.

O DESPREZO ESTATAL POR UMA CONSTITUIÇÃO DEMOCRÁTICA REVELA-SE INCOMPATÍVEL COM O SENTIMENTO CONSTITUCIONAL RESULTANTE DA VOLUNTÁRIA ADESÃO POPULAR À AUTORIDADE NORMATIVA DA LEI FUNDAMENTAL.

– A violação negativa do texto constitucional, resultante da situação de inatividade do Poder Público – que deixa de cumprir ou se abstém de prestar o que lhe ordena a Lei Fundamental – representa, notadamente em tema de direitos e liberdades de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais), um inaceitável processo de desrespeito à Constituição, o que deforma a vontade soberana do poder constituinte e que traduz conduta estatal incompatível com o valor ético-jurídico do sentimento constitucional, cuja prevalência, no âmbito da coletividade, revela-se fator capaz de atribuir, ao Estatuto Político, o necessário e indispensável coeficiente de legitimidade social. (…).” (ADI 1.442/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno)

4. A questão da proteção insuficiente e o descumprimento, por inércia legiferante, da Constituição

O fato indiscutível, Senhora Presidente, claramente perceptível em nossa experiência institucional, reside na circunstância de que – não obstante a existência de comandos constitucionais veiculando ordens de legislar para efeito de viabilizar o exercício e a fruição de direitos pelo cidadão, inclusive pelo próprio trabalhador, como o direito à saúde (CF, art. 196) e o direito à redução dos riscos de doenças e de outros agravos inerentes ao trabalho (CF, art. 7º, inciso XXII, c/c o art. 196) –, o Poder Público tem se mantido inerte na formulação de legislação necessária à aplicabilidade de certas cláusulas constitucionais cuja executoriedade depende, essencialmente, da “interpositio legislatoris”, assim obstando, de modo ilegítimo e por inércia legiferante, o acesso das pessoas às prerrogativas de ordem jurídico-social.

E é, precisamente, o que ocorre na espécie ora em exame, pois a União Federal deixou de editar legislação que conferisse proteção suficiente e adequada à saúde do trabalhador exposto às fibras de amianto, transgredindo, gravemente, ao proceder de modo incompleto e imperfeito no plano legislativo, os direitos fundamentais que a ordem constitucional reconhece e estende às pessoas em geral, inclusive à classe trabalhadora, como o direito à preservação da integridade da saúde e da incolumidade do meio ambiente.

Impende enfatizar, desde logo, bem por isso, que as omissões inconstitucionais dos Poderes do Estado não podem ser toleradas, eis que o desprestígio da Constituição – resultante da inércia de órgãos meramente constituídos – representa um dos mais tormentosos aspectos do processo de desvalorização funcional da Lei Fundamental da República, ao mesmo tempo em que estimula, gravemente, a erosão da consciência constitucional, evidenciando, desse modo, o inaceitável desprezo dos direitos básicos e das liberdades públicas pelo aparelho estatal.

Essa repulsa à inércia governamental no adimplemento de imposições legiferantes estabelecidas no texto constitucional tem sido posta em destaque pelo magistério da doutrina (ANNA CÂNDIDA DA CUNHA FERRAZ, “Processos Informais de Mudança da Constituição”, p. 217/218, 1986, Max Limonad), eis que – como bem adverte o eminente Professor JOSÉ AFONSO DA SILVA (“Aplicabilidade das Normas Constitucionais”, p. 226, item I, nº 4, 6ª ed., 2002, Malheiros) – não basta “ter uma Constituição promulgada e formalmente vigente; impende atuá-la, completando-lhe a eficácia para que seja totalmente cumprida” (grifei).

Nem se diga que o Supremo Tribunal Federal, ao neutralizar, em sede jurisdicional, situações lesivas aos cidadãos, como sucede na espécie, geradas pela omissão do poder estatal no desempenho de atividade concretizadora de normas constitucionais instituidoras de direitos e prerrogativas fundamentais, estaria interferindo em domínio estranho à sua atuação. Na realidade, esta Corte Suprema, ao assim agir, desempenha função que a Constituição lhe cometeu, em ordem a impedir, mediante resposta jurisdicional que traduz ato de legítima e significativa reação jurídico- -institucional autorizada pela própria Carta Política, o desprestígio da Lei Fundamental da República.

A omissão normativa da União Federal, no caso, ainda que parcial, deixando de editar legislação que efetivamente dispense, de modo amplo e adequado, amparo ao trabalhador, caracteriza típica (e anômala) hipótese reveladora de um incompreensível estado de mora do legislador, não obstante os princípios constitucionais atingidos pela inércia estatal, provocando prejuízos evidentes ao trabalhador exposto às fibras de amianto e vulnerando, com esse comportamento negativo, o princípio que veda a proteção insuficiente.

Vê-se, a partir dos fundamentos que venho de expor, que a ilegitimidade constitucional do art. 2º da Lei nº 9.055/95 também pode ser examinada sob a perspectiva da inconstitucionalidade por omissão, embora suficientemente demonstrado pela eminente Relatora que referida norma legal incide em violação positiva da Constituição.

Não se pode desconhecer que o Poder Público também transgride a autoridade superior da Constituição quando deixa de fazer aquilo que ela determina (omissão total) ou quando realiza, de maneira incompleta, o que estabelece o texto constitucional (omissão parcial).

A omissão do Estado – que deixa de cumprir, em maior ou em menor extensão, a imposição ditada pelo texto constitucional – qualifica-se como comportamento revestido da maior gravidade político-jurídica, eis que, mediante inércia, o Poder Público também desrespeita a Constituição, também ofende direitos que nela se fundam e também impede, por ausência (ou insuficiência) de medidas concretizadoras, a própria aplicabilidade dos postulados da Lei Fundamental, tal como tem advertido o Supremo Tribunal Federal:

“DESRESPEITO À CONSTITUIÇÃO – MODALIDADES DE COMPORTAMENTOS INCONSTITUCIONAIS DO PODER PÚBLICO.

– O desrespeito à Constituição tanto pode ocorrer mediante ação estatal quanto mediante inércia governamental. A situação de inconstitucionalidade pode derivar de um comportamento ativo do Poder Público, que age ou edita normas em desacordo com o que dispõe a Constituição, ofendendo-lhe, assim, os preceitos e os princípios que nela se acham consignados. Essa conduta estatal, que importa em um ‘facere’ (atuação positiva), gera a inconstitucionalidade por ação.

– Se o Estado deixar de adotar as medidas necessárias à realização concreta dos preceitos da Constituição, em ordem a torná-los efetivos, operantes e exeqüíveis, abstendo-se, em conseqüência, de cumprir o dever de prestação que a Constituição lhe impôs, incidirá em violação negativa do texto constitucional. Desse ‘non facere’ ou ‘non praestare’, resultará a inconstitucionalidade por omissão, que pode ser total, quando é nenhuma a providência adotada, ou parcial, quando é insuficiente a medida efetivada pelo Poder Público. (…).” (ADI 1.458-MC/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

Vê-se, pois, que, na tipologia das situações inconstitucionais, inclui-se, também, aquela que deriva do descumprimento, por inércia estatal, de norma impositiva de determinado comportamento atribuído ao Poder Público pela própria Constituição.

As situações configuradoras de omissão inconstitucional – ainda que se cuide de omissão parcial derivada da insuficiente concretização, pelo Poder Público, do conteúdo material da norma impositiva fundada na Carta Política – refletem comportamento estatal que deve ser repelido, pois a inércia do Estado qualifica-se, perigosamente, como um dos processos deformadores da Constituição, expondo-se, por isso mesmo, à censura do magistério doutrinário (ANNA CÂNDIDA DA CUNHA FERRAZ, “Processos Informais de Mudança da Constituição”, p. 230/232, item n. 5, 1986, Max Limonad; JORGE MIRANDA, “Manual de Direito Constitucional”, tomo II/406 e 409, 2ª ed., 1988, Coimbra Editora; J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, “Fundamentos da Constituição”, p. 46, item n. 2.3.4, 1991, Coimbra Editora).

O fato inquestionável é um só: a inércia estatal em tornar efetivas as imposições constitucionais traduz inaceitável gesto de desprezo pela Constituição e configura comportamento que revela um incompreensível sentimento de desapreço pela autoridade, pelo valor e pelo alto significado de que se reveste a Constituição da República.

Nada mais nocivo, perigoso e ilegítimo do que elaborar uma Constituição sem a vontade de fazê-la cumprir integralmente ou, então, com o intuito de apenas executá-la com o propósito subalterno de torná-la aplicável somente nos pontos que se mostrarem convenientes aos desígnios dos governantes, em detrimento dos interesses maiores dos cidadãos.

A percepção da gravidade e das consequências lesivas derivadas do gesto infiel do Poder Público que transgride, por omissão ou por insatisfatória concretização, os encargos de que se tornou depositário por efeito de expressa determinação constitucional foi revelada, entre nós, já no período monárquico, em lúcido magistério, por PIMENTA BUENO (“Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império”, p. 45, reedição do Ministério da Justiça, 1958) e reafirmada por eminentes autores contemporâneos, em lições que acentuam o desvalor jurídico do comportamento estatal omissivo, como se vê, p. e.x., em JOSÉ AFONSO DA SILVA (“Aplicabilidade das Normas Constitucionais”, p. 224, item n. 4, 8ª ed., 2012, Malheiros):

“Não basta, com efeito, ter uma constituição promulgada e formalmente vigente; impende atuá-la, completando-lhe a eficácia, para que seja totalmente cumprida (…).” (grifei)

É por essa razão que J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (“Fundamentos da Constituição”, p. 46, item n. 2.3.4, 1991, Coimbra Editora), analisando a força normativa da Constituição – e assinalando que a eficácia preponderante e subordinante de suas cláusulas impede o reconhecimento de situações inconstitucionais –, acentuam, na perspectiva da inquestionável preeminência normativa da Carta Política, o que se segue:

“(…) tanto se viola a Lei fundamental quando as acções estaduais não estão em conformidade com as suas normas e princípios, como quando os preceitos constitucionais não são ‘actuados’, dinamizados ou concretizados pelos órgãos que constitucionalmente estão vinculados a fornecerem-lhes operatividade prática. A Constituição impõe-se normativamente, não só quando há uma acção inconstitucional (fazer o que ela proíbe), mas também quando existe uma omissão inconstitucional (não fazer o que ela impõe que seja feito).” (grifei)

Essa mesma visão reflete-se no magistério de ANNA CÂNDIDA DA CUNHA FERRAZ (“Processos Informais de Mudança da Constituição”, p. 230/232, item n. 5, 1986, Max Limonad):

“A inércia caracteriza-se pela não aplicação intencional, provisória mas prolongada, das disposições constitucionais pelos poderes incumbidos de lhes dar cumprimento e execução.

Configura inegável processo de mudança constitucional; embora não altere a letra constitucional, altera-lhe o alcance, na medida em que paralisa a aplicação constitucional. Tal paralisação, não desejada ou prevista pelo constituinte, é de ser tida como inconstitucional.

Afeta, também, o sentido da Constituição.

Destinada esta à aplicação efetiva, qualquer obstáculo que se lhe anteponha desvirtua sua finalidade, resultando numa inconstitucionalidade (…). Por outro lado, indiretamente, a inércia dá causa à ocorrência de outros processos de mutação constitucional. O distanciamento, no tempo, entre a elaboração constitucional e a sua efetiva aplicação, sofre, inexoravelmente, a influência das transformações sociais diuturnas e constantes, de tal sorte que, após uma prolongada dilatação na aplicação do texto, é provável que esta, quando se efetivar, dê à Constituição sentido e significado diversos daqueles acolhidos no momento da formação da norma fundamental.

Como modalidade de mutação constitucional, a inércia é processo pernicioso, que acarreta conseqüências desastrosas à vida constitucional dos Estados.

De um lado, porque, ao contrário dos demais processos de mutação constitucional, raramente busca adaptar a Constituição à realidade. Na maioria das vezes, serve como instrumento exatamente para evitar tal adaptação.

De outro lado, porque a inércia arrasta consigo a descrença na Constituição.” (grifei)

Desse modo, e ante a irrecusável supremacia da Carta Política, revela-se essencial impedir o desprestígio da própria Constituição, seja por ação, seja por omissão dos órgãos, instituições e autoridades da República.

Cabe referir, no ponto, em face de sua inquestionável atualidade, a autorizada lição de PONTES DE MIRANDA (“Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda n. 1, de 1969”, tomo I/15-16, 2ª ed., 1970, RT), cujo magistério contém grave advertência, que por ninguém pode ser ignorada:

“Nada mais perigoso do que fazer-se Constituição sem o propósito de cumpri-la. Ou de só se cumprir nos princípios de que se precisa, ou se entende devam ser cumpridos – o que é pior (…). No momento, sob a Constituição que, bem ou mal, está feita, o que nos incumbe, a nós, dirigentes, juízes e intérpretes, é cumpri-la. Só assim saberemos a que serviu e a que não serviu, nem serve. Se a nada serviu em alguns pontos, que se emende, se reveja. Se em algum ponto a nada serve – que se corte nesse pedaço inútil. Se a algum bem público desserve, que pronto se elimine. Mas, sem a cumprir, nada saberemos. Nada sabendo, nada poderemos fazer que mereça crédito. Não a cumprir é estrangulá-la ao nascer.” (grifei)

É preciso proclamar que as Constituições consubstanciam ordens normativas cuja eficácia, autoridade e valor não podem ser afetados ou inibidos pela voluntária inação ou por ação insuficiente das instituições estatais. Não se pode tolerar que os órgãos do Poder Público, descumprindo, por inércia e omissão, o dever de emanação normativa que lhes foi imposto, infrinjam, com esse comportamento negativo, a própria autoridade da Constituição e afetem, em consequência, o conteúdo eficacial dos preceitos que compõem a estrutura normativa da Lei Maior.

O fato irrecusável é um só: o desprestígio da Constituição – por inércia de órgãos meramente constituídos – representa um dos mais graves aspectos da patologia constitucional, pois reflete inaceitável desprezo, por parte das instituições governamentais, da autoridade suprema da Lei Fundamental do Estado.

Essa constatação, feita por KARL LOEWENSTEIN (“Teoria de la Constitución”, p. 222, 1983, Ariel, Barcelona), coloca em pauta o fenômeno da erosão da consciência constitucional, motivado pela instauração, no âmbito do Estado, de um preocupante processo de desvalorização funcional da Constituição escrita, como já ressaltado, pelo Supremo Tribunal Federal, em diversos julgamentos, como resulta de decisão consubstanciada em acórdão assim ementado:

“A TRANSGRESSÃO DA ORDEM CONSTITUCIONAL PODE CONSUMAR-SE MEDIANTE AÇÃO (VIOLAÇÃO POSITIVA) OU MEDIANTE OMISSÃO (VIOLAÇÃO NEGATIVA).

– O desrespeito à Constituição tanto pode ocorrer mediante ação estatal quanto mediante inércia governamental. A situação de inconstitucionalidade pode derivar de um comportamento ativo do Poder Público, seja quando este vem a fazer o que o estatuto constitucional não lhe permite, seja, ainda, quando vem a editar normas em desacordo, formal ou material, com o que dispõe a Constituição. Essa conduta estatal, que importa em um ‘facere’ (atuação positiva), gera a inconstitucionalidade por ação.

– Se o Estado, no entanto, deixar de adotar as medidas necessárias à realização concreta dos preceitos da Constituição, abstendo-se, em conseqüência, de cumprir o dever de prestação que a própria Carta Política lhe impôs, incidirá em violação negativa do texto constitucional. Desse ‘non facere’ ou ‘non praestare’ resultará a inconstitucionalidade por omissão, que pode ser total (quando é nenhuma a providência adotada) ou parcial (quando é insuficiente a medida efetivada pelo Poder Público). Entendimento prevalecente na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: RTJ 162/877-879, Rel. Min. CELSO DE MELLO (Pleno).

– A omissão do Estado – que deixa de cumprir, em maior ou em menor extensão, a imposição ditada pelo texto constitucional – qualifica-se como comportamento revestido da maior gravidade político-jurídica, eis que, mediante inércia, o Poder Público também desrespeita a Constituição, também ofende direitos que nela se fundam e também impede, por ausência (ou insuficiência) de medidas concretizadoras, a própria aplicabilidade dos postulados e princípios da Lei Fundamental.

DESCUMPRIMENTO DE IMPOSIÇÃO CONSTITUCIONAL LEGIFERANTE E DESVALORIZAÇÃO FUNCIONAL DA CONSTITUIÇÃO ESCRITA. – O Poder Público – quando se abstém de cumprir, total ou parcialmente, o dever de legislar, imposto em cláusula constitucional, de caráter mandatório – infringe, com esse comportamento negativo, a própria integridade da Lei Fundamental, estimulando, no âmbito do Estado, o preocupante fenômeno da erosão da consciência constitucional (ADI 1.484-DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO).

– A inércia estatal em adimplir as imposições constitucionais traduz inaceitável gesto de desprezo pela autoridade da Constituição e configura, por isso mesmo, comportamento que deve ser evitado. É que nada se revela mais nocivo, perigoso e ilegítimo do que elaborar uma Constituição sem a vontade de fazê-la cumprir integralmente ou, então, de apenas executá-la com o propósito subalterno de torná-la aplicável somente nos pontos que se mostrarem ajustados à conveniência e aos desígnios dos governantes, em detrimento dos interesses maiores dos cidadãos. (…).” (RTJ 183/818-819, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno)

Nem se diga que o Supremo Tribunal Federal, ao colmatar uma evidente (e lesiva) omissão inconstitucional do aparelho de Estado, estar-se-ia transformando em anômalo legislador.

É que, ao suprir lacunas normativas provocadas por injustificável inércia do Estado, esta Suprema Corte nada mais faz senão desempenhar o papel a ela outorgado pela própria Constituição da República, valendo-se, para tanto, de instrumento que, concebido pela Assembleia Nacional Constituinte, foi por esta instituído com a precípua finalidade de impedir que a inércia governamental, como a registrada no caso ora em exame, culminasse por degradar a autoridade e a supremacia da Lei Fundamental.

Todos esses fundamentos que venho de expor autorizam-me a reconhecer, na espécie, além da violação positiva referida pela eminente Relatora, também a existência de situação de evidente inércia estatal, ainda que incompleta ou parcial, inteiramente imputável à União Federal, o que me permite constatar a configuração, no caso, de ofensa ao postulado que veda a proteção insuficiente, considerado o tratamento normativo que a regra legal ora questionada dispensou ao trabalhador, ao deixar de estabelecer medidas e salvaguardas indispensáveis à defesa de sua saúde, em decorrência da (absurda) exposição às fibras de amianto.

5. A dignidade da pessoa humana: fundamento essencial da ordem republicana e democrática do Estado brasileiro

O que efetivamente está em jogo neste processo, Senhora Presidente, para além da controvérsia jurídica, é, em última análise, a proteção da vida de trabalhadores e a necessária defesa da integridade de seu inalienável direito à preservação da saúde, eis que constituem, ambos (vida e saúde), valores inestimáveis, impregnados de irrecusável essencialidade, e que, por isso mesmo, não podem ser desconsiderados, muito menos desprezados, pelo aparelho de Estado e pelas instituições da República.

É por tal razão que também entendo que a pretensão de inconstitucionalidade ora em julgamento encontra suporte legitimador no princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, que representa – considerada a centralidade desse postulado essencial (CF, art. 1º, III) – significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente em nosso País e que traduz, de modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta, entre nós, a ordem republicana e democrática consagrada pelo sistema de direito constitucional positivo, tal como tem reconhecido a jurisprudência desta Suprema Corte, cujas decisões, no ponto, refletem, com precisão, o próprio magistério da doutrina (JOSÉ AFONSO DA SILVA, “Poder Constituinte e Poder Popular”, p. 146, 2000, Malheiros; RODRIGO DA CUNHA PEREIRA, “Afeto, Ética, Família e o Novo Código Civil Brasileiro”, p. 106, 2006, Del Rey; INGO WOLFANG SARLET, “Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988”, p. 45, 2002, Livraria dos Advogados; IMMANUEL KANT, “Fundamentação da Metafísica dos Costumes e Outros Escritos”, 2004, Martin Claret; LUIZ ANTONIO RIZZATTO NUNES, “O Princípio Constitucional da dignidade da pessoa humana: doutrina e jurisprudência”, 2002, Saraiva; LUIZ EDSON FACHIN, “Questões do Direito Civil Brasileiro Contemporâneo”, 2008, Renovar, v.g.).

6. Amianto e ofensa ao direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, inclusive ao meio ambiente laboral ou do trabalho

Há a considerar, ainda, outro aspecto que se revela apto a legitimar a caracterização, quanto à regra legal ora questionada, do vício de inconstitucionalidade, pois o conteúdo material do preceito normativo em causa também vulnera a cláusula inscrita no art. 225 da Constituição da República, que, ao consagrar o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, oferece significativa resposta aos desafios resultantes dos problemas que afetam as sociedades contemporâneas.

Todos sabemos que os preceitos inscritos no art. 225 da Carta Política traduzem, na concreção de seu alcance, a consagração constitucional, em nosso sistema de direito positivo, de uma das mais expressivas prerrogativas asseguradas às formações sociais contemporâneas.

Essa prerrogativa, que se qualifica por seu caráter de metaindividualidade, consiste no reconhecimento de que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Trata-se, consoante já o proclamou o Supremo Tribunal Federal (RTJ 158/205-206, Rel. Min. CELSO DE MELLO), com apoio em douta lição expendida por CELSO LAFER (“A reconstrução dos Direitos Humanos”, p. 131/132, 1988, Companhia das Letras), de um típico direito de terceira geração (ou de novíssima dimensão), que assiste, de modo subjetivamente indeterminado, a todo o gênero humano, circunstância essa que justifica a especial obrigação – que incumbe ao Estado e à própria coletividade (PAULO AFFONSO LEME MACHADO, “Direito Ambiental Brasileiro”, p. 121/123, item n. 3.1, 13ª ed., 2005, Malheiros) – de defendê-lo e de preservá-lo em benefício das presentes e futuras gerações, evitando-se, desse modo, que irrompam, no seio da comunhão social, os graves conflitos intergeneracionais marcados pelo desrespeito ao dever de solidariedade na proteção da integridade desse bem essencial de uso comum de todos quantos compõem o grupo social.

Vale referir, Senhora Presidente, neste ponto, até mesmo em face da justa preocupação revelada pelos povos e pela comunidade internacional em tema de direitos humanos, que estes, em seu processo de afirmação e consolidação, comportam diversos níveis de compreensão e de abordagem, que permitem distingui-los em ordens, dimensões ou fases sucessivas resultantes de sua evolução histórica.

Nesse contexto, e tal como enfatizado por esta Suprema Corte (RTJ 164/158-161), impende destacar, na linha desse processo evolutivo, os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos), que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais, e que realçam o princípio da liberdade.

Os direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais), de outro lado, identificam-se com as liberdades positivas, reais ou concretas, pondo em relevo, sob tal perspectiva, o princípio da igualdade.

Cabe assinalar, Senhora Presidente, que os direitos de terceira geração (ou de novíssima dimensão), que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos, genericamente e de modo difuso, a todos os integrantes dos agrupamentos sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem, por isso mesmo, ao lado dos denominados direitos de quarta geração (como o direito ao desenvolvimento e o direito à paz), um momento importante no processo de expansão e reconhecimento dos direitos humanos, qualificados estes, enquanto valores fundamentais indisponíveis, como prerrogativas impregnadas de uma natureza essencialmente inexaurível, consoante proclama autorizado magistério doutrinário (CELSO LAFER, “Desafios: ética e política”, p. 239, 1995, Siciliano).

Cumpre rememorar, bem por isso, na linha do que vem de ser afirmado, a precisa lição ministrada por PAULO BONAVIDES (“Curso de Direito Constitucional”, p. 481, item n. 5, 4ª ed., 1993, Malheiros), que confere particular ênfase, dentre os direitos de terceira geração (ou de novíssima dimensão), ao direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado:

“Com efeito, um novo pólo jurídico de alforria do homem se acrescenta historicamente aos da liberdade e da igualdade. Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, os direitos da terceira geração tendem a cristalizar-se neste fim de século enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou de um determinado Estado. Têm primeiro por destinatário o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta. Os publicistas e juristas já os enumeram com familiaridade, assinalando-lhes o caráter fascinante de coroamento de uma evolução de trezentos anos na esteira da concretização dos direitos fundamentais. Emergiram eles da reflexão sobre temas referentes ao desenvolvimento, à paz, ao meio ambiente, à comunicação e ao patrimônio comum da humanidade.” (grifei)

A preocupação com a preservação do meio ambiente – que hoje transcende o plano das presentes gerações, para também atuar em favor das gerações futuras (PAULO AFFONSO LEME MACHADO, “Direito Ambiental Brasileiro”, p. 123/124, item n. 3.2, 13ª ed., 2005, Malheiros) – tem constituído, por isso mesmo, objeto de regulações normativas e de proclamações jurídicas, que, ultrapassando a província meramente doméstica do direito nacional de cada Estado soberano, projetam-se no plano das declarações internacionais, que refletem, em sua expressão concreta, o compromisso das Nações com o indeclinável respeito a esse direito fundamental que assiste a toda a Humanidade.

A questão do meio ambiente, hoje, especialmente em função da Declaração de Estocolmo sobre o Meio Ambiente (1972) e das conclusões da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio/92), passou a compor um dos tópicos mais expressivos da nova agenda internacional (GERALDO EULÁLIO DO NASCIMENTO E SILVA, “Direito Ambiental Internacional”, 2ª ed., 2002, Thex Editora), particularmente no ponto em que se reconheceu ao gênero humano o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao gozo de condições de vida adequada, em ambiente, inclusive de caráter laboral, que lhe permita desenvolver todas as suas potencialidades em clima de dignidade e de bem-estar.

Extremamente valioso, sob o aspecto ora referido, o douto magistério expendido por JOSÉ AFONSO DA SILVA (“Direito Ambiental Constitucional”, p. 69/70, item n. 7, 4ª ed./2ª tir., 2003, Malheiros):

“A ‘Declaração de Estocolmo’ abriu caminho para que as Constituições supervenientes reconhecessem o meio ambiente ecologicamente equilibrado como um ‘direito fundamental’ entre os direitos sociais do Homem, com sua característica de ‘direitos a serem realizados’ e ‘direitos a não serem perturbados.

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O que é importante (…) é que se tenha a consciência de que o direito à vida, como matriz de todos os demais direitos fundamentais do Homem, é que há de orientar todas as formas de atuação no campo da tutela do meio ambiente. Cumpre compreender que ele é um fator preponderante, que há de estar acima de quaisquer outras considerações como as de desenvolvimento, como as de respeito ao direito de propriedade, como as da iniciativa privada. Também estes são garantidos no texto constitucional, mas, a toda evidência, não podem primar sobre o direito fundamental à vida, que está em jogo quando se discute a tutela da qualidade do meio ambiente. É que a tutela da qualidade do meio ambiente é instrumental no sentido de que, através dela, o que se protege é um valor maior: ‘a qualidade da vida’.” (grifei)

Dentro desse contexto, Senhora Presidente, emerge, com nitidez, a ideia de que o meio ambiente constitui patrimônio público a ser necessariamente assegurado e protegido pelos organismos sociais e pelas instituições estatais, qualificando-se como encargo irrenunciável que se impõe – sempre em benefício das presentes e das futuras gerações – tanto ao Poder Público quanto à coletividade em si mesma considerada (MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, “Polícia do Meio Ambiente”, “in” Revista Forense 317/179, 181; LUÍS ROBERTO BARROSO, “A proteção do meio ambiente na Constituição brasileira”, “in” Revista Forense 317/161, 167-168, v.g.).

Na realidade, Senhora Presidente, o direito à integridade do meio ambiente constitui prerrogativa jurídica de titularidade coletiva, refletindo, dentro do processo de afirmação dos direitos humanos, a expressão significativa de um poder deferido, não ao indivíduo identificado em sua singularidade, mas, num sentido verdadeiramente mais abrangente, atribuído à própria coletividade social.

O reconhecimento desse direito de titularidade coletiva, tal como se qualifica o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, constitui, portanto, especialmente em sua interconexão com o direito à vida e à saúde, como precedentemente enfatizado, uma realidade a que não mais se mostram alheios ou insensíveis os ordenamentos positivos consagrados pelos sistemas jurídicos nacionais e, também, as formulações normativas proclamadas no plano internacional, como assinalado por autores eminentes (JOSÉ FRANCISCO REZEK, “Direito Internacional Público”, p. 223/224, item n. 132, 1989, Saraiva; JOSÉ AFONSO DA SILVA, “Direito Ambiental Constitucional”, p. 46/57 e 58/70, 4ª ed./2ª tir., 2003, Malheiros, v.g.).

7. Os princípios ambientais da prevenção e da precaução qualificam-se como valores impregnados de estatura constitucional

É de destacar-se, também, que a União Federal, ao editar a legislação em referência, longe de adequar-se ao postulado da prevenção, que se mostra aplicável a situações apoiadas na existência de certeza científica quanto à nocividade do uso ou do emprego de determinadas substâncias, transgrediu-o frontalmente.

E mesmo que os impactos resultantes da utilização do amianto fossem incertos ou, até mesmo, desconhecidos, ainda assim o diploma normativo em causa mostrar-se-ia inquinado de inconstitucionalidade, na medida em que desautorizado, quanto ao seu conteúdo, pelo postulado da precaução, que tem assento constitucional e cuja noção conceitual, como sabemos e tal como relembrado pelo eminente Ministro RICARDO LEWANDOWSKI, foi definida pelo Princípio 15 da Declaração do Rio (ECO/92), assim enunciado: “Para que o ambiente seja protegido, serão aplicadas pelos Estados, de acordo com as suas capacidades, medidas preventivas. Onde existam ameaças de riscos sérios ou irreversíveis não será utilizada a falta de certeza científica total como razão para o aditamento de medidas eficazes em termos de custo para evitar a degradação ambiental” (grifei).

É certo que declarações internacionais formuladas em momentos que antecederam a Conferência das Nações Unidas sobre Ambiente e Desenvolvimento (Rio/92) já haviam consagrado essa ideia, ainda que sob designação diversa (como “precautionary approach” ou “anticipatory environmental protection”), segundo observa GERALDO EULÁLIO DO NASCIMENTO E SILVA (“Direito Ambiental Internacional”, p. 55/57, 2ª ed., 2002, Thex Editora), que se refere, p. ex., entre outros documentos, à Convenção de Bamako (Mali, 1991), à Plataforma de Tlatelolco sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (1991) e às Conferências Internacionais sobre Proteção do Mar do Norte (1984, 1987 e 1990).

A importância fundamental desse princípio de Direito Ambiental – a que já se referia a Carta Mundial da Natureza (Princípio 11, “b”), adotada em 1982 pela Assembleia Geral das Nações Unidas, conforme registram ÉDIS MILARÉ e JOANA SETZER (“Aplicação do Princípio da Precaução em Áreas de Incerteza Científica: Exposição a campos eletromagnéticos gerados por estações de radiobase”, “in” Revista de Direito Ambiental, vol. 41/7-25, 10, 2006) – evidencia-se ante a circunstância de que diversos outros documentos internacionais, tais como a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima e a Convenção sobre Diversidade Biológica, também vieram a contemplar esse postulado essencial, que CRISTIANE DERANI (“Direito Ambiental Econômico”, p. 169, item n. 1.3, 2ª ed., 2001, Max Limonad) qualifica como a “essência do direito ambiental”, sempre com a finalidade de evitar, de neutralizar ou de minimizar situações de risco potencial à vida, à qualidade de vida e ao meio ambiente.

Essa mesma compreensão em torno do tema em referência é revelada em valioso estudo da lavra de GUILHERME JOSÉ PURVIN DE FIGUEIREDO (“Direito Ambiental e a Saúde dos Trabalhadores”, 2000, LTr):

“O princípio da prevenção e precaução, basilar do Direito Ambiental, aplica-se integralmente ao meio ambiente de trabalho, não se podendo ter como lícita a exposição dos trabalhadores ao risco de uma doença com o único fim de potencializar a capacidade produtiva de uma empresa. Cada vez que se revele um perigo para a saúde do profissional, deverá o empregador reduzir até o limite máximo oferecido pela tecnologia os males provocados ao trabalhador. Quando, porém, os incômodos forem de tal monta a ponto de minar a saúde do trabalhador, havendo um conflito entre a exigência produtiva e o direito à saúde, este último deverá prevalecer, pois o direito subjetivo à integridade física e à vida constitui um consectário do princípio da dignidade humana.” (grifei)

ÉDIS MILARÉ, em sua conhecida obra “Direito do Ambiente”, p. 263/266, itens ns. 4.2.4 e 4.2.4.2, 10ª ed., 2015, RT), após referir-se ao caráter basilar do princípio da precaução, que se destina, segundo a lição por ele ministrada, “a gerir riscos ou impactos desconhecidos”, no que se distingue do postulado da prevenção, que “trata de riscos ou impactos já conhecidos pela ciência”, expende análise esclarecedora sobre o sentido e a finalidade dessa fundamental diretriz que rege e informa o Direito Ambiental:

“A invocação do princípio da precaução é uma decisão a ser tomada quando a informação científica é insuficiente, inconclusiva ou incerta e haja indicações de que os possíveis efeitos sobre o ambiente, a saúde das pessoas ou dos animais ou a proteção vegetal possam ser potencialmente perigosos e incompatíveis com o nível de proteção escolhido.

A bem ver, tal princípio enfrenta a incerteza dos saberes científicos em si mesmos. Sua aplicação observa argumentos de ordem hipotética, situados no campo das possibilidades, e não necessariamente de posicionamentos científicos claros e conclusivos. Procura instituir procedimentos capazes de embasar uma decisão racional na fase de incertezas e controvérsias, de forma a diminuir os custos da experimentação. É recorrente sua invocação, por exemplo, quando se discutem questões como o aquecimento global, a engenharia genética e os organismos geneticamente modificados, a clonagem, a exposição a campos eletromagnéticos gerados por estações de radiobase.

………………………………………………………………………………………….

(…) Vale dizer, a incerteza científica milita em favor do ambiente, carreando-se ao interessado o ônus de provar que as intervenções pretendidas não trarão consequências indesejadas ao meio considerado (…).

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Anote-se, por fim, que a omissão na adoção de medidas de precaução, em caso de risco de dano ambiental grave ou irreversível, foi considerada pela Lei nº 9.605/1998 (Lei dos Crimes Ambientais) como circunstância capaz de sujeitar o infrator a reprimenda mais severa, idêntica à do crime de poluição qualificado pelo resultado (art. 54, § 3º).” (grifei)

Vê-se, portanto, que, mesmo se incertos, no plano da pesquisa científica, os impactos nocivos do amianto crisotila, ainda assim tornar-se-ia legítimo (e inteiramente adequado) invocar-se, no caso, em detrimento do diploma legislativo ora questionado, o princípio da precaução, que traduz importante consequência e relevante instrumento de proteção ao direito de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

A Constituição da República, ao dispor sobre a proteção ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, por ela própria reconhecido como “bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida” (CF, art. 225, “caput”), instituiu, entre nós, verdadeiro “Estado de Direito Ambiental” fundado em bases constitucionais, em que o princípio da precaução (tanto quanto o da prevenção) desempenha papel de fundamental importância, consoante assinalam eminentes doutrinadores (ANA FLAVIA BARROS, “Princípio da Precaução”, 2004, Del Rey; PAULO AFFONSO LEME MACHADO, “Direito Ambiental Brasileiro”, p. 94/117, item n. 6, 22ª ed., 2014, Malheiros; FREDERICO AUGUSTO DI TRINTADE AMADO, “Direito Ambiental Esquematizado”, p. 41/44, item n. 5.3, 2ª ed., 2011, Método; PAULO DE BESSA ANTUNES, “Direito Ambiental”, p. 30/48, itens ns. 3.2.5 a 3.2.5.6, 14ª ed., 2012, Atlas, v.g.).

Com efeito, e mesmo que se apresentasse insuficiente a certeza científica quanto à nocividade do uso controlado do amianto crisotila, ainda assim – é importante insistir – o princípio da precaução, que tem suporte em nosso ordenamento interno (CF, art. 225, § 1º, V, e Lei nº 11.105/2005, art. 1º, “caput”) e, também, em declarações internacionais (como a Agenda 21, Princípio 15, que resultou da Conferência do Rio/92), incidirá, como advertem doutrina e jurisprudência, sempre que houver probabilidade de concretização de dano em consequência de atividade identificada por sua potencialidade lesiva.

Caso tal ocorra, impor-se-á, então, ao Poder Público, com apoio em referido postulado, a adoção de medidas de índole cautelar destinadas a preservar a incolumidade do meio ambiente e a proteger, desse modo, a integridade da vida e da saúde humanas.

 Daí a clara advertência constante de doutíssima manifestação que o eminente Ministro RICARDO LEWANDOWSKI expôs no julgamento da ADI 3.510/DF e, também, neste processo, na qual destacou, com absoluta propriedade, a dupla vocação do princípio da precaução, destinado não só a proteger o meio ambiente, mas, também, a amparar a preservação da saúde e da vida das pessoas em geral:

“7. O PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO NO CAMPO DA SAÚDE PÚBLICA

Quando se cogita da preservação da vida numa escala mais ampla, ou seja, no plano coletivo, não apenas nacional, mas inclusive planetário, vem à baila o chamado ‘princípio da precaução’, que hoje norteia as condutas de todos aqueles que atuam no campo da proteção do meio ambiente e da saúde pública. (…).

O princípio da precaução foi explicitado, de forma pioneira, na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro, em 1992, da qual resultou a Agenda 21, que, em seu item 15, estabeleceu que, diante de uma ameaça de danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não será utilizada como razão para o adiamento de medidas viáveis para prevenir a degradação ambiental.

…………………………………………………………………………………………

Dentre os principais elementos que integram tal princípio figuram: i) a precaução diante de incertezas científicas; ii) a exploração de alternativas a ações potencialmente prejudiciais, inclusive a da não-ação; iii) a transferência do ônus da prova aos seus proponentes, e não às vítimas ou possíveis vítimas; e iv) o emprego de processos democráticos de decisão e acompanhamento dessas ações, com destaque para o direito subjetivo ao consentimento informado.

Esse novo paradigma emerge da constatação de que a evolução científica traz consigo riscos imprevisíveis, os quais estão a exigir uma reformulação das práticas e procedimentos tradicionalmente adotados nesse campo. Isso porque, como registra Cristiane Derani, é preciso ‘considerar não só o risco de determinada atividade, como também os riscos futuros decorrentes de empreendimentos humanos, os quais nossa compreensão e o atual estágio de desenvolvimento da ciência jamais conseguem captar em toda densidade’.” (grifei)

Vale relembrar, neste ponto, por oportuno, o julgamento plenário, pelo Supremo Tribunal Federal, da ADPF 101/DF, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA, quando esta Corte Suprema, ao decidir controvérsia envolvendo a importação de pneus usados, repeliu tal possibilidade, apoiando-se, para tanto, tal como sucede no caso ora em exame, nos princípios constitucionais que regem e conformam o exercício legítimo da atividade empresarial em face dos postulados maiores que privilegiam a defesa do meio ambiente e, também, a proteção da saúde pública, como se vê do seguinte fragmento da ementa consubstanciadora de referido julgado:

“4. Princípios constitucionais (art. 225) a) do desenvolvimento sustentável e b) da equidade e responsabilidade intergeracional.

Meio ambiente ecologicamente equilibrado: preservação para a geração atual e para as gerações futuras. Desenvolvimento sustentável: crescimento econômico com garantia paralela e superiormente respeitada da saúde da população, cujos direitos devem ser observados em face das necessidades atuais e daquelas previsíveis e a serem prevenidas para garantia e respeito às gerações futuras.

Atendimento ao princípio da precaução, acolhido constitucionalmente, harmonizado com os demais princípios da ordem social e econômica.

5. Direito à saúde: o depósito de pneus ao ar livre, inexorável com a falta de utilização dos pneus inservíveis, fomentado pela importação é fator de disseminação de doenças tropicais.

Legitimidade e razoabilidade da atuação estatal preventiva, prudente e precavida, na adoção de políticas públicas que evitem causas do aumento de doenças graves ou contagiosas.

Direito à saúde: bem não patrimonial, cuja tutela se impõe de forma inibitória, preventiva, impedindo-se atos de importação de pneus usados, idêntico procedimento adotado pelos Estados desenvolvidos, que deles se livram. (…).” (grifei)

Compreendo, pelas razões expostas, com vênia aos que pensam em sentido contrário, e considerando, ainda, o magistério doutrinário por mim invocado, além do precedente acima referido (ADPF 101/DF), que a eminente Relatora bem resolveu a controvérsia constitucional ora submetida ao exame desta Suprema Corte, pois os elementos produzidos nestes autos justificam, a partir do ordenamento positivo doméstico e das convenções internacionais, a incidência, no caso, do princípio da precaução, cuja consagração, repita-se, foi reconhecida na Declaração do Rio de Janeiro (1992) adotada na ECO/92, que representou, naquele particular momento histórico, marco significativo no processo de transição e, sobretudo, de evolução do postulado da prevenção, então reconhecido pela Declaração de Estocolmo (1972), para o princípio da precaução.

Entendo, na perspectiva dessa importantíssima evolução, que questões que envolvam e comprometam o meio ambiente e a saúde pública não podem subordinar-se a interesses de índole corporativa ou de caráter econômico, pois, segundo o postulado da precaução, “as pessoas e o seu ambiente devem ter em seu favor o benefício da dúvida, quando haja incerteza sobre se uma dada ação os vai prejudicar”, vale dizer, se dúvida houver a propósito da nocividade ou periculosidade de um dado elemento ou de certa atividade, não haverá solução outra senão a de decidir-se favoravelmente à preservação do meio ambiente (“in dubio pro securitate”).

Vê-se, daí, que a preocupação tanto com a intangibilidade da saúde e da vida humanas quanto com a preservação da incolumidade do meio ambiente não só representa dado relevante consagrado em declarações internacionais, mas também resulta da própria compreensão que o Supremo Tribunal Federal tem revelado em diversos julgamentos, nos quais esse tema vem sendo alçado à condição de direito eminente e fundamental reconhecido às formações sociais e às pessoas em geral.

Tenho para mim, bem por isso, que o postulado da precaução atua, no contexto ora em exame, como claro fator de deslegitimação do diploma legislativo em causa, que, de modo incompatível com a Constituição, desconsiderou a nocividade real do uso, mesmo controlado, do amianto crisotila.

8. A atividade econômica não pode ser exercida em conflito com os princípios constitucionais destinados a tornar efetiva a proteção ao meio ambiente

São esses os motivos que têm levado o Supremo Tribunal Federal a consagrar, em seu magistério jurisprudencial, o reconhecimento do direito de todos à integridade do meio ambiente e a competência de cada um dos entes políticos que compõem a estrutura institucional da Federação em nosso País, cabendo acentuar que, na sensível área da proteção ambiental, os interesses corporativos dos organismos empresariais devem estar necessariamente subordinados aos valores que conferem precedência à preservação da integridade do meio ambiente (CF, art. 170, inciso VI), como esta Corte Suprema já teve o ensejo de advertir:

“(…) A ATIVIDADE ECONÔMICA NÃO PODE SER EXERCIDA EM DESARMONIA COM OS PRINCÍPIOS DESTINADOS A TORNAR EFETIVA A PROTEÇÃO AO MEIO AMBIENTE.

– A incolumidade do meio ambiente não pode ser comprometida por interesses empresariais nem ficar dependente de motivações de índole meramente econômica, ainda mais se se tiver presente que a atividade econômica, considerada a disciplina constitucional que a rege, está subordinada, entre outros princípios gerais, àquele que privilegia a ‘defesa do meio ambiente’ (CF, art. 170, VI), que traduz conceito amplo e abrangente das noções de meio ambiente natural, de meio ambiente cultural, de meio ambiente artificial (espaço urbano) e de meio ambiente laboral. Doutrina.

Os instrumentos jurídicos de caráter legal e de natureza constitucional objetivam viabilizar a tutela efetiva do meio ambiente, para que não se alterem as propriedades e os atributos que lhe são inerentes, o que provocaria inaceitável comprometimento da saúde, segurança, cultura, trabalho e bem-estar da população, além de causar graves danos ecológicos ao patrimônio ambiental, considerado este em seu aspecto físico ou natural.

A QUESTÃO DO DESENVOLVIMENTO NACIONAL (CF, ART. 3º, II) E A NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO DA INTEGRIDADE DO MEIO AMBIENTE (CF, ART. 225): O PRINCÍPIO DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL COMO FATOR DE OBTENÇÃO DO JUSTO EQUILÍBRIO ENTRE AS EXIGÊNCIAS DA ECONOMIA E AS DA ECOLOGIA.

– O princípio do desenvolvimento sustentável, além de impregnado de caráter eminentemente constitucional, encontra suporte legitimador em compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro e representa fator de obtenção do justo equilíbrio entre as exigências da economia e as da ecologia, subordinada, no entanto, a invocação desse postulado, quando ocorrente situação de conflito entre valores constitucionais relevantes, a uma condição inafastável, cuja observância não comprometa nem esvazie o conteúdo essencial de um dos mais significativos direitos fundamentais: o direito à preservação do meio ambiente, que traduz bem de uso comum da generalidade das pessoas, a ser resguardado em favor das presentes e futuras gerações. (…).” (ADI 3.540-MC/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno) 

Atento à circunstância de que existe um permanente estado de tensão entre o imperativo de desenvolvimento nacional (CF, art. 3º, II), de um lado, e a necessidade de preservação da integridade do meio ambiente (CF, art. 225), de outro, torna-se essencial reconhecer que a superação desse antagonismo, que opõe valores constitucionais relevantes, dependerá da ponderação concreta, em cada caso ocorrente, dos interesses e direitos postos em situação de conflito, em ordem a harmonizá-los e a impedir que se aniquilem reciprocamente, tendo-se como vetor interpretativo, para efeito da obtenção de um mais justo e perfeito equilíbrio entre as exigências da economia e as da ecologia, o princípio do desenvolvimento sustentável, tal como formulado em conferências internacionais (a “Declaração do Rio de Janeiro sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1992”, “p. ex.”) e reconhecido em valiosos estudos doutrinários que lhe destacam o caráter eminentemente constitucional (CELSO ANTÔNIO PACHECO FIORILLO, “Curso de Direito Ambiental Brasileiro”, p. 27/30, item n. 2, 6ª ed., 2005, Saraiva; LUÍS PAULO SIRVINSKAS, “Manual de Direito Ambiental”, p. 34, item n. 6.2, 2ª ed., 2003, Saraiva; MARCELO ABELHA RODRIGUES, “Elementos de Direito Ambiental – Parte Geral”, p. 170/172, item n. 4.3, 2ª ed., 2005, RT; NICOLAO DINO DE CASTRO E COSTA NETO, “Proteção Jurídica do Meio Ambiente”, p. 57/64, item n. 6, 2003, Del Rey, v.g.).

Isso significa, portanto, Senhora Presidente, que a superação dos antagonismos existentes entre princípios e valores constitucionais há de resultar da utilização de critérios que permitam ao Poder Público (e aos magistrados e Tribunais) ponderar e avaliar, “hic et nunc”, em função de determinado contexto e sob uma perspectiva axiológica concreta, qual deva ser o direito a preponderar no caso, considerada a situação de conflito ocorrente, desde que, no entanto – tal como adverte o magistério da doutrina na análise da delicadíssima questão pertinente ao tema da colisão de direitos (DANIEL SARMENTO, “A Ponderação de Interesses na Constituição Federal” p. 193/203, “Conclusão”, itens ns. 1 e 2, 2000, Lumen Juris; LUÍS ROBERTO BARROSO, “Temas de Direito Constitucional”, p. 363/366, 2001, Renovar; JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, “Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976”, p. 220/224, item n. 2, 1987, Almedina; J. J. GOMES CANOTILHO, “Direito Constitucional”, p. 661, item n. 3, 5ª ed., 1991, Almedina; EDILSOM PEREIRA DE FARIAS, “Colisão de Direitos”, p. 94/101, item n. 8.3, 1996, Fabris Editor; WILSON ANTÔNIO STEINMETZ, “Colisão de Direitos Fundamentais e Princípio da Proporcionalidade”, p. 139/172, 2001, Livraria do Advogado Editora; SUZANA DE TOLEDO BARROS, “O Princípio da Proporcionalidade e o Controle de Constitucionalidade das Leis Restritivas de Direitos Fundamentais”, p. 216, “Conclusão”, 2ª ed., 2000, Brasília Jurídica, v.g.) –, a utilização do método da ponderação de bens e interesses não importe em esvaziamento do conteúdo essencial dos direitos fundamentais, entre os quais avulta, por sua significativa importância, o direito à preservação do meio ambiente.

Essa asserção torna certo, portanto, que a incolumidade do meio ambiente – é importante insistir – não pode ser comprometida por interesses empresariais nem ficar dependente de motivações de índole meramente econômica, ainda mais se se tiver presente – tal como adverte PAULO DE BESSA ANTUNES (“Direito Ambiental”, p. 63, item n. 2.1, 7ª ed., 2004, Lumen Juris) – que a atividade econômica, considerada a disciplina constitucional que a rege, está subordinada, entre outros princípios gerais, àquele que privilegia a “defesa do meio ambiente” (CF, art. 170, VI), que traduz conceito amplo e abrangente das noções de meio ambiente natural, de meio ambiente cultural, de meio ambiente artificial (espaço urbano) e de meio ambiente laboral, consoante ressalta o magistério doutrinário (CELSO ANTÔNIO PACHECO FIORILLO, “Curso de Direito Ambiental Brasileiro”, p. 20/23, item n. 4, 6ª ed., 2005, Saraiva; JOSÉ AFONSO DA SILVA, “Direito Ambiental Constitucional”, p. 21/24, itens ns. 2 e 3, 4ª ed./2ª tir., 2003, Malheiros; JOSÉ ROBERTO MARQUES, “Meio Ambiente Urbano”, p. 42/54, item n. 4. 2005, Forense Universitária, v.g.).

9. O princípio que veda o retrocesso social não permite que se suprimam ou que se reduzam os níveis de concretização já alcançados em tema de direitos sociais

Há a considerar, ainda, um outro postulado que, também desrespeitado pela legislação em referência, autoriza a formulação, quanto a ela, do pertinente juízo de inconstitucionalidade.

Refiro-me ao princípio da proibição do retrocesso , que, em tema de direitos fundamentais de caráter social, impede que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive, consoante adverte autorizado magistério doutrinário (GILMAR FERREIRA MENDES, INOCÊNCIO MÁRTIRES COELHO e PAULO GUSTAVO GONET BRANCO, “Hermenêutica Constitucional e Direitos Fundamentais”, p. 127/128, 1ª ed./2ª tir., 2002, Brasília Jurídica; J. J. GOMES CANOTILHO, “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, p. 320/322, item n. 03, 1998, Almedina; ANDREAS JOACHIM KRELL, “Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha”, p. 40, 2002, Fabris Editor; INGO W. SARLET, “Algumas considerações em torno do conteúdo, eficácia e efetividade do direito à saúde na Constituição de 1988”, v.g.).

Na realidade, a cláusula que proíbe o retrocesso em matéria social traduz, no processo de sua concretização, verdadeira dimensão negativa pertinente aos direitos sociais de natureza prestacional (como o direito à saúde, p. ex.), impedindo, em consequência, que os níveis de concretização dessas prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo Estado, exceto na hipótese – de todo inocorrente na espécie – em que políticas compensatórias venham a ser implementadas pelas instâncias governamentais.

Lapidar , sob todos os aspectos, o magistério de J. J. GOMES CANOTILHO, cuja lição , a propósito do tema, estimula reflexões por ele a seguir expostas (“Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, p. 320/321, item n. 3, 1998, Almedina):

“O princípio da democracia econômica e social aponta para a proibição de retrocesso social.

A idéia aqui expressa também tem sido designada como proibição de ‘contra-revolução social’ ou da ‘evolução reaccionária’. Com isto quer dizer-se que os direitos sociais e econômicos (ex.: direito dos trabalhadores, direito à assistência, direito à educação), uma vez obtido um determinado grau de realização, passam a constituir, simultaneamente, uma garantia institucional e um direito subjectivo. A ‘proibição de retrocesso social’ nada pode fazer contra as recessões e crises econômicas (reversibilidade fáctica), mas o principio em análise limita a reversibilidade dos direitos adquiridos (ex.: segurança social, subsídio de desemprego, prestações de saúde), em clara violação do princípio da protecção da confiança e da segurança dos cidadãos no âmbito econômico, social e cultural, e do núcleo essencial da existência mínima inerente ao respeito pela dignidade da pessoa humana. O reconhecimento desta proteção de direitos prestacionais de propriedade, subjetivamente adquiridos, constitui um limite jurídico do legislador e, ao mesmo tempo, uma obrigação de prossecução de uma política congruente com os direitos concretos e as expectativas subjectivamente alicerçadas. A violação no núcleo essencial efectivado justificará a sanção de inconstitucionalidade relativamente a normas manifestamente aniquiladoras da chamada justiça social. Assim, por ex., será inconstitucional uma lei que extinga o direito a subsídio de desemprego ou pretenda alargar desproporcionadamente o tempo de serviço necessário para a aquisição do direito à reforma (…). De qualquer modo, mesmo que se afirme sem reservas a liberdade de conformação do legislador nas leis sociais, as eventuais modificações destas leis devem observar os princípios do Estado de direito vinculativos da actividade legislativa e o núcleo essencial dos direitos sociais. O princípio da proibição de retrocesso social pode formular-se assim: o núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efectivado através de medidas legislativas (‘lei da segurança social’, ‘lei do subsídio de desemprego’, ‘lei do serviço de saúde’) deve considerar-se constitucionalmente garantido, sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam, na prática, numa ‘anulação’, ‘revogação’ ou ‘aniquilação’ pura e simples desse núcleo essencial. A liberdade de conformação do legislador e inerente auto-reversibilidade têm como limite o núcleo essencial já realizado.” (grifei)

Bem por isso, o Tribunal Constitucional português (Acórdão nº 39/84), ao invocar a cláusula da proibição do retrocesso, reconheceu a inconstitucionalidade de ato estatal que revogara garantias já conquistadas em tema de direitos prestacionais de natureza social, vindo a proferir decisão assim resumida pelo ilustre Relator da causa, Conselheiro VITAL MOREIRA, em douto voto de que extraio o seguinte fragmento (“Acórdãos do Tribunal Constitucional”, vol. 3/95-131, 117-118, 1984, Imprensa Nacional, Lisboa):

“Que o Estado não dê a devida realização às tarefas constitucionais, concretas e determinadas, que lhe estão cometidas, isso só poderá ser objecto de censura constitucional em sede de inconstitucionalidade por omissão. Mas quando desfaz o que já havia sido realizado para cumprir essa tarefa, e com isso atinge uma garantia de um direito fundamental, então a censura constitucional já se coloca no plano da própria inconstitucionalidade por acção.

Se a Constituição impõe ao Estado a realização de uma determinada tarefa – a criação de uma certa instituição, uma determinada alteração na ordem jurídica -, então, quando ela seja levada a cabo, o resultado passa a ter a protecção directa da Constituição. O Estado não pode voltar atrás, não pode descumprir o que cumpriu, não pode tornar a colocar-se na situação de devedor. (…) Se o fizesse, incorreria em violação positiva (…) da Constituição.

…………………………………………………………………………………………

Em grande medida, os direitos sociais traduzem-se para o Estado em obrigação de fazer, sobretudo de criar certas instituições públicas (sistema escolar, sistema de segurança social, etc.). Enquanto elas não forem criadas, a Constituição só pode fundamentar exigências para que se criem; mas após terem sido criadas, a Constituição passa a proteger a sua existência, como se já existissem à data da Constituição. As tarefas constitucionais impostas ao Estado em sede de direitos fundamentais no sentido de criar certas instituições ou serviços não o obrigam apenas a criá-los, obrigam-no também a não aboli-los uma vez criados.

Quer isto dizer que, a partir do momento em que o Estado cumpre (total ou parcialmente) as tarefas constitucionalmente impostas para realizar um direito social, o respeito constitucional deste deixa de consistir (ou deixar de consistir apenas) numa obrigação positiva, para se transformar (ou passar também a ser) numa obrigação negativa. O Estado, que estava obrigado a actuar para dar satisfação ao direito social, passa a estar obrigado a abster-se de atentar contra a realização dada ao direito social.

Este enfoque dos direitos sociais faz hoje parte integrante da concepção deles a teoria constitucional, mesmo lá onde é escasso o elenco constitucional de direitos sociais e onde, portanto, eles têm de ser extraídos de cláusulas gerais, como a cláusula do ‘Estado social’.” (grifei)

10. O Poder Judiciário, em tema de direitos humanos (como se qualificam os direitos sociais), há de fazer incidir, em sua atividade hermenêutica, o critério da norma mais favorável

Entendo, finalmente, que, reconhecida a inconstitucionalidade da norma legal ora questionada, e para que não subsista situação caracterizadora de “vacuum legis”, justificar-se-á a aplicação imediata da cláusulas definidoras de direitos e garantias dos trabalhadores inscritas nas convenções internacionais celebradas pelo Brasil no âmbito da OIT, concernentes às normas de defesa do meio ambiente e de proteção da saúde relativamente à utilização do amianto, inclusive da espécie crisotila.

Não constitui demasia assinalar que, em matéria de direitos humanos (como se qualificam os direitos sociais), cabe ao Poder Judiciário fazer incidir, sempre, a norma mais favorável, o que permite invocar, presente o contexto em referência, a própria jurisprudência constitucional que o Supremo Tribunal Federal firmou a esse respeito:

“TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS: AS SUAS RELAÇÕES COM O DIREITO INTERNO BRASILEIRO E A QUESTÃO DE SUA POSIÇÃO HIERÁRQUICA.

– A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Art. 7º, n. 7). Caráter subordinante dos tratados internacionais em matéria de direitos humanos e o sistema de proteção dos direitos básicos da pessoa humana. – Relações entre o direito interno brasileiro e as convenções internacionais de direitos humanos (CF, art. 5º e §§ 2º e 3º). Precedentes.

– Posição hierárquica dos tratados internacionais de direitos humanos no ordenamento positivo interno do Brasil: natureza constitucional ou caráter de supralegalidade? – Entendimento do Relator, Min. CELSO DE MELLO, que atribui hierarquia constitucional às convenções internacionais em matéria de direitos humanos.

…………………………………………………………………………………………

HERMENÊUTICA E DIREITOS HUMANOS: A NORMA MAIS FAVORÁVEL COMO CRITÉRIO QUE DEVE REGER A INTERPRETAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO.

– Os magistrados e Tribunais, no exercício de sua atividade interpretativa, especialmente no âmbito dos tratados internacionais de direitos humanos, devem observar um princípio hermenêutico básico (tal como aquele proclamado no Artigo 29 da Convenção Americana de Direitos Humanos), consistente em atribuir primazia à norma que se revele mais favorável à pessoa humana, em ordem a dispensar-lhe a mais ampla proteção jurídica.

– O Poder Judiciário, nesse processo hermenêutico que prestigia o critério da norma mais favorável (que tanto pode ser aquela prevista no tratado internacional como a que se acha positivada no próprio direito interno do Estado), deverá extrair a máxima eficácia das declarações internacionais e das proclamações constitucionais de direitos, como forma de viabilizar o acesso dos indivíduos e dos grupos sociais, notadamente os mais vulneráveis, a sistemas institucionalizados de proteção aos direitos fundamentais da pessoa humana, sob pena de a liberdade, a tolerância e o respeito à alteridade humana tornarem-se palavras vãs.

– Aplicação, ao caso, do Artigo 7º, n. 7, c/c o Artigo 29, ambos da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica): um caso típico de primazia da regra mais favorável à proteção efetiva do ser humano.” (HC 96.772/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

11. Conclusão

Sendo assim, tendo em vista as razões expostas e considerando, ainda, o notável voto proferido pela eminente Ministra ROSA WEBER, conheço da presente ação direta, para julgá-la procedente, declarando a inconstitucionalidade do art. 2º da Lei nº 9.055/1995, em razão de sua manifesta incompatibilidade com os arts. 1º, inciso III, 7º, inciso XXII, 196 e 225 da Constituição da República.

Também acompanho, Senhora Presidente, a eminente Relatora quanto à tese por ela formulada.

É o meu voto.

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