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Exigências ambientais na Medida Provisória nº 910 de 2019 (parte 2): o Cadastro Ambiental Rural – CAR

por Tatiana Monteiro Costa e Silva.

 

Os processos de regularização fundiária no Brasil, em áreas urbanas e rurais, encontram-se em curso, e experimentam diferentes estágios de concepção, maturidade, assimilação, aceitação e, por fim, de implementação, sobretudo com as mudanças profundas ocasionadas pela Lei Federal n. 13.465 de 2017 (REURB), processos que sempre envolvem diferentes atores políticos, sociais e econômicos.

Atualmente, essas mudanças também compreendem a aceitação desses diversos atores em relação à Medida Provisória n. 910 de 2019, sobretudo no que diz respeito ao meio ambiente, e, consequentemente, ao aumento do desmatamento nos imóveis rurais localizados na Amazônia Legal.

Desse modo, o presente estudo voltar-se-á para os aspectos ambientais internalizados como exigências prévias para a regularização do ocupante, sendo o primeiro deles o Cadastramento Ambiental Rural.

O Relator da Medida Provisória, Senador Irajá Abreu[1], do PSD/TO, após audiência pública realizada no dia 04/03, apresentou no dia 12/03 à comissão mista, sob a presidência do senador Lúcio Mosquini, voto favorável à Medida Provisória, frisando que das 542 emendas apresentadas, somente 21 foram acatadas.

Importa destacar que a grande preocupação do relator é o aumento do desmatamento nos imóveis rurais localizados na Amazônia Legal, vejamos trecho da sua justificativa:

Rejeitamos tudo o que poderia servir como incentivo ao desmatamento, como por exemplo, a ideia de reduzir a reserva legal. Também não acatamos sugestões que anistiavam produtores rurais por dívidas. Por fim, foi rejeitada qualquer complacência com grileiros de terra ou com produtores que mantém condições análogas ao trabalho escravo e estão listados como tal — esclareceu Irajá.

Por outro lado, ele explicou ter sido favorável às emendas que desburocratizam, simplificam e criam condições para os produtores titularem suas terras porque, segundo Irajá, esse é o maior entrave e dificuldade dos produtores brasileiros[2].

Esse também é o mote de apreensão dos atores de forma geral, conforme se vê da Nota Técnica expedida pelo Imazon:

Do ponto de vista ambiental, a medida vai na contramão do que precisa ser feito para reduzir o desmatamento na Amazônia, que em 2019 atingiu a maior taxa anual dos últimos dez anos (9.762 km2). Isso, porque parte da destruição que ocorre na floresta amazônica é causada por pessoas que visam lucrar com a terra pública, pois invadem as nossas florestas e as desmatam esperando que o governo emita o título de terra cobrando valores abaixo do mercado. Essa prática garante altos lucros com a venda do imóvel após a titulação[3].

Em que pese esses posicionamentos de inquietação, mandamentos e direcionamentos de natureza ambiental foram incorporados, tanto na redação original da Medida Provisória, como na proposta de alteração realizada pelo relator, com a inclusão de 21 emendas, dentre eles a que trata da permanência do Cadastramento Ambiental Rural como exigência prévia à regularização.

Para tanto, o Senador Irajá Abreu destaca a essencialidade do Cadastramento Ambiental Rural como instrumento estratégico para o monitoramento e o controle do desmatamento, verbis:

Quanto à documentação exigida para instruir o processo administrativo, no § 1º do art. 13, incluído na Lei nº 11.952, de 2019, pela MPV nº 910, de 2019, destaca-se a exigência de inclusão do imóvel no Cadastro Ambiental Rural (CAR), a que se refere o art. 29da Lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012. Trata-se de instrumento de auxilio à Administração Publica no processo de regularização ambiental de áreas rurais, mediante o qual é feito o registro eletrônico do imóvel com a finalidade de integrar as informações ambientais referentes à situação das Áreas de Preservação Permanente, das áreas de Reserva Legal, das florestas e dos remanescentes de vegetação nativa, das Áreas de Uso Restrito (pantanais e planícies pantaneiras) e das áreas consolidadas das propriedades e posses rurais do país, que serve como base de dados estratégica para o controle, monitoramento e combate ao desmatamento das florestas e demais formas de vegetação nativa do Brasil, bem como para planejamento ambiental e econômico dos imóveis rurais[4].

 O Cadastro Ambiental Rural deverá ser apresentado previamente, na fase de instrução do processo administrativo (art. 13, inciso II), como requisito ou verdadeiro pressuposto de validade do requerimento.

Segundo o Código Florestal Brasileiro, o Cadastramento Ambiental Rural é registro público eletrônico de âmbito nacional, obrigatório para todos os imóveis rurais, com a finalidade de integrar as informações ambientais das propriedades e posses rurais, compondo base de dados para controle, monitoramento, planejamento ambiental e econômico e combate ao desmatamento.

O papel prioritário do CAR é o levantamento das informações, como também a localização dos remanescentes de vegetação nativa, das áreas de preservação permanente, das áreas de uso restrito, das áreas consolidadas e, caso existente, também da localização da reserva legal, ou seja: dados relevantes sobre o passivo dos imóveis rurais, bem como o remanescente de áreas ambientalmente relevantes e protegidas.

Destaca-se que o CAR é um cadastro auto declaratório e de natureza ambiental, e não será considerado para fins de reconhecimento do direito de propriedade ou posse, por isso será apresentado previamente como item obrigatório para a regularização fundiária rural, mesmo em áreas do INCRA ou da União.

A Lei Federal n. 12.651 de 2012 foi regulamentada pelo Decreto Federal n. 7.830, de 17 de outubro de 2012, dispondo sobre o Sistema de Cadastro Ambiental Rural, norma de caráter geral aos Programas de Regularização Ambiental.

Os artigos 6º e 7º do mencionado Decreto Federal[5], exteriorizam as diretrizes do Cadastramento Ambiental Rural mais detalhadamente, salientando que as informações prestadas são de responsabilidade do declarante, o qual incorrerá em sanções penais e administrativas, sem prejuízo de outras previstas na legislação quando forem, total ou parcialmente falsas, enganosas ou omissas.

Por sua vez, a Nota Técnica n. 1/2020/PFDC/MPF, elaborada pelo Ministério Público Federal, por meio da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, esclarece pontos de insegurança jurídica do Cadastramento Ambiental Rural:

De mais a mais, se o maior volume de informações fundiárias é colhida na base do CAR, há aí um problema enorme sobre a segurança necessária em um processo que transfere patrimônio público para o patrimônio privado. Como consta da nota, “o CAR é a principal experiência brasileira de auto declaração dos limites de imóveis rurais de maneira geoespacial”. Sua regulamentação se deu pela Instrução Normativa 2/MMA, de 6 de maio de 2014, estabelecendo especialmente os procedimentos a serem adotados para a inscrição, registro, analise e demonstração das informações ambientais sobre os imóveis rurais. Consulta do Observatório do Código Florestal a órgãos ambientais de diversos estados da Amazônia e do Nordeste apontou que, passados mais de 5 anos da IN 2/MMA, o processo de validação das informações tem sido muitíssimo lento: os estados mais avançados só conseguiram validar 5% das declarações; há estados com validação próxima de zero e alguns sem validação alguma.

O professor Edis Milaré, em sua obra Direito do Ambiente, destaca que discussões estão sendo travadas em relação aos efeitos da nova regra do CAR, vejamos o seu olhar:

Muita discussão tem sido travada em relação aos efeitos das novas regras do CAR instituídas pela Lei 12.651 de 2012 sobre aqueles imóveis nos quais a Reserva Legal já foi delimitada e averbada segundo as regras da época. Neste ponto, importante esclarecer que a nova lei florestal permite, nos casos em que a Reserva Legal já tenha sido averbada na matrícula do imóvel e em que pese essa averbação identifique o perímetro e a localização da reserva, que o proprietário não tenha que apresentar todas as informações agora requeridas para a inscrição no CAR. Tal faculdade, todavia, somente pode ser exercida mediante a apresentação pelo proprietário, ao órgão ambiental competente, da certidão de registro de imóveis onde conste a averbação ada RFL ou termo de compromisso já firmado, nos casos de posse[6].

Daí impera o grande dilema com relação à aplicabilidade do CAR,  quando da implementação e exigência (validação), pois embora tenha natureza declaratória, na prática está se tornando um grande entrave para os produtores rurais, principalmente para se alcançar a sonhada regularidade ambiental, nas áreas de reserva legal e área de preservação permanente consolidadas, sobretudo nos desdobramentos de análises do conceito de “área rural consolidada”[7].

Diversas outras discussões densificam-se ainda mais esses problemas, como mostra, primeiro, o estudo elaborado pelo ICV e o Observatório do Código Florestal (OCF), intitulado “do papel à prática: a implementação do Código Florestal pelos estados brasileiros”, que avalia a aplicação do Cadastro Ambiental Rural (CAR) e os Programas de Regularização Ambiental (PRA)[8], que demonstra que “mais de dois terços dos Estados brasileiros captaram recursos extraorçamentários para implementação do Cadastro Ambiental Rural – a maior parte deles do Fundo Amazônia[9]”, além de equipe insuficiente para as analises do CAR.

Notas:

[1]“O relator informou que 542 emendas foram apresentadas e 21, acatadas.

Rejeitamos tudo o que poderia servir como incentivo ao desmatamento, como por exemplo, a ideia de reduzir a reserva legal. Também não acatamos sugestões que anistiavam produtores rurais por dívidas. Por fim, foi rejeitada qualquer complacência com grileiros de terra ou com produtores que mantém condições análogas ao trabalho escravo e estão listados como tal — esclareceu Irajá.

Por outro lado, ele explicou ter sido favorável às emendas que desburocratizam, simplificam e criam condições para os produtores titularem suas terras porque, segundo Irajá, esse é o maior entrave e dificuldade dos produtores brasileiros.

— Nós estamos aqui trabalhando para fazer uma lei que reconheça a posse de terra de quem já é produtor, gera emprego e renda há 30, 40 anos e não tem um documento que reconheça que a terra é sua. Esses são os 99%. Não estamos aqui para resolver o problema de 1% de criminosos que querem usar um marco regulatório para resolver e dar um jeitinho para que fiquem legais — resumiu o senador.

Irajá explicou que seu relatório propõe a gratuidade de taxas, tanto do Incra, como a do Certificado de Cadastro do Imóvel Rural (CCIR), quanto de tarifas de cartórios na primeira transferência.

Outra previsão importante, segundo ele, é a de que, não atendendo aos requisitos para a regularização, o ocupante terá direito a ser indenizado pelas benfeitorias úteis e necessárias realizadas em terras públicas da União Federal ou do Incra”. Fonte: Agência Senado. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/03/12/iraja-sugere-alterar-mp-da-regularizacao-fundiaria-votacao-fica-para-terca. Acesso em 05.04.2020.

[2] https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/03/12/iraja-sugere-alterar-mp-da-regularizacao-fundiaria-votacao-fica-para-terca

[3] Brito, B. Barreto, P. 2020. Nota Técnica sobre Medida Provisória n. 910/2019. Belém: Imazon. Disponível em: https://imazon.org.br/publicacoes/nota-tecnica-sobre-medida-provisoria-n-o-910-2019/. Acesso 05.04.2020.

[4] Parecer do Relator Irajá Abreu. Senador Federal, p. 3. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8075391&ts=1586195694443&disposition=inline

[5] Art. 6º A inscrição no CAR, obrigatória para todas as propriedades e posses rurais, tem natureza declaratória e permanente, e conterá informações sobre o imóvel rural, conforme o disposto no art. 21.

§ 1 º As informações são de responsabilidade do declarante, que incorrerá em sanções penais e administrativas, sem prejuízo de outras previstas na legislação, quando total ou parcialmente falsas, enganosas ou omissas.

§ 2 º A inscrição no CAR deverá ser requerida no prazo de 1 (um) ano contado da sua implantação, preferencialmente junto ao órgão ambiental municipal ou estadual competente do Sistema Nacional do Meio Ambiente – SISNAMA.

§ 3 º As informações serão atualizadas periodicamente ou sempre que houver alteração de natureza dominial ou possessória.

§ 4º A atualização ou alteração dos dados inseridos no CAR só poderão ser efetuadas pelo proprietário ou possuidor rural ou representante legalmente constituído.

Art. 7 º Caso detectadas pendências ou inconsistências nas informações declaradas e nos documentos apresentados no CAR, o órgão responsável deverá notificar o requerente, de uma única vez, para que preste informações complementares ou promova a correção e adequação das informações prestadas.

§ 1º Na hipótese do caputo requerente deverá fazer as alterações no prazo estabelecido pelo órgão ambiental competente, sob pena de cancelamento da sua inscrição no CAR.

§ 2º Enquanto não houver manifestação do órgão competente acerca de pendências ou inconsistências nas informações declaradas e nos documentos apresentados para a inscrição no CAR, será considerada efetivada a inscrição do imóvel rural no CAR, para todos os fins previstos em lei.

§ 3º O órgão ambiental competente poderá realizar vistorias de campo sempre que julgar necessário para verificação das informações declaradas e acompanhamento dos compromissos assumidos.

§ 4º Os documentos comprobatórios das informações declaradas poderão ser solicitados, a qualquer tempo, pelo órgão competente, e poderão ser fornecidos por meio digital.

[6]MILARÉ, Édis. Direito do ambiente. 11 ed.São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018. p. 1700. 

[7]O Ministro do Meio Ambiente com vistas a equacionar conflito sobre a aplicabilidade do conceito de área rural consolidada em APP, no Bioma Mata Atlântica, fez publicar o Despacho nº 4.410/2020, no Diário Oficial da União de 06/04/2020, um conflito de aplicação da Lei Federal 12.651 de 2012.

[8]VALDIONES, Ana Paula; BERNASCONI, Paula. Do papel à prática: a implementação do Código Florestal pelos Estados brasileiros. Transparência Florestal Mato Grosso nº 11, ano 6, maio de 2019.

[9] “O estudo levantou que das 27 unidades da federação, 19 captaram recursos extraorçamentários para implementação do CAR. A principal fonte foi o Fundo Amazônia, que aprovou cerca de R$ 359 milhões em projetos para apoiar 12 Estados. Esse valor inclui uma pequena contrapartida dos Estados e ainda não foi totalmente desembolsado. Outras fontes de recursos acessadas foram o Banco Mundial e os fundos estaduais de meio ambiente e de recursos hídricos.

(…)

Todos os Estados e o Distrito Federal declararam possuir uma equipe, ainda que mínima, destacada para a agenda de CAR e PRA, mas dizem que o número de servidores é insuficiente. Em muitos casos, além de reduzida, a equipe não é exclusiva para atender as demandas de implementação do Código Florestal”. VALDIONES, Ana Paula; BERNASCONI, Paula. Do papel à prática: a implementação do Código Florestal pelos Estados brasileiros. Transparência Florestal Mato Grosso nº 11, ano 6, maio de 2019.

Tatiana Monteiro Costa e Silva – Mestra em Direito Ambiental pela Universidade Estadual do Amazonas – UEA; Doutoranda em Direito pela PUC/SP; Especialista em Direito Ambiental pela Universidade de São Paulo – USP (Turma CEDA 2); Especialista em Gestão Ambiental pela Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT; Especialista em Direito Agroambiental pela Fundação Escola Superior do Ministério Publico e UFMT; , Ex-Procuradora Chefe da Procuradoria do Município de Cuiabá/MT, nas áreas ambiental, urbanística e regularização fundiária; EX diretora de Plano Diretor do Instituto de Planejamento e Desenvolvimento Urbano de Cuiabá e Professora Universitária do UNIVAG – Centro Universitário de Várzea Grande. Instagram: profa.tatianamonteiro.

Direito Ambiental

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