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Exigências ambientais na Medida Provisória nº 910 de 2019 (parte 1)

por Tatiana Monteiro Costa e Silva.

Breve introdução

Há muito tempo se deseja que a pauta da regularização fundiária rural de imóveis da União receba a necessária atenção, de forma a alcançar efetividade e segurança jurídica, de modo a confortar o ocupante que, de boa-fé, trabalha a área de modo a torná-la produtiva, atendendo a disciplina constitucional do cumprimento da sua função sócio ambiental.

A recente Medida Provisória nº 910 de 2019, que alterou a Lei Federal nº 11.953 de 2009, dispondo sobre a regularização fundiária das ocupações incidentes em terras situadas em áreas da União ou do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, é o mais recente instrumento destinado para esse fim, principalmente para os Estados que compõe a Amazônia Legal, e constituem a “nova fronteira agrícola” do Brasil.

Aludida Medida Provisória altera profundamente três importantes marcos legais: a Lei Federal nº 11.953 de 2009; a Lei de Licitações (Lei Federal nº 8.666 de 1993); e, por fim, a Lei de Registros Públicos (Lei Federal nº 6.015 de 1973).

Batizada jocosamente por representantes de alguns seguimentos como a “MP da grilagem”, a regra se propõe promover alterações substanciais em uma norma que já era considerada controvertida, objeto, inclusive, de ADI promovida pela Procuradoria Geral da República em desfavor da Lei Federal n.º 11.952 de 2009, recentemente decidida, conforme ementado abaixo:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA DAS TERRAS DE DOMÍNIO DA UNIÃO NA AMAZÔNIA LEGAL. IMPUGNAÇÃO AOS ARTIGOS 4o, §2o, 13, 15, INCISO I, §§ 2o, 4o E 5o, DA LEI No 11.952/2009. PREJUÍZO PARCIAL DA AÇÃO. ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL E REVOGAÇÃO DE DISPOSITIVOS PROMOVIDA POR LEI SUPERVENIENTE. ADEQUADA PROTEÇÃO ÀS TERRAS QUILOMBOLAS E DE OUTRAS COMUNIDADES TRADICIONAIS AMAZÔNICAS. INCONSTITUCIONALIDADE DA INTERPRETAÇÃO QUE CONCEDE ESSAS TERRAS A TERCEIROS. INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO. ARTIGOS 216, INCISO II, DO TEXTO CONSTITUCIONAL E 68 DO ADCT. AUSÊNCIA DE VISTORIA PRÉVIA NA REGULARIZAÇÃO DE IMÓVEIS DE ATÉ QUATRO MÓDULOS FISCAIS. PROTEÇÃO DEFICIENTE AO MEIO AMBIENTE SE DESACOMPANHADA DE MEIOS EFICAZES PARA FISCALIZAÇÃO DOS REQUISITOS DE INGRESSO NO PROGRAMA TERRA LEGAL. INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO. RESPEITO AO ARTIGO 225, CAPUT, DA CONSTITUIÇÃO.

ADI 4269, Relator(a): Min. EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 18/10/2017, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-019 DIVULG 31-01-2019 PUBLIC 01-02-2019)[1]

Para o Ministério Público Federal, a recente Medida Provisória só aprofunda desdobramentos negativos percebidos desde a edição, à época, da Lei Federal nº 11.953 de 2009. Vejamos a transcrição abaixo:

O cenário de perda de receita é ainda superior com a MP recém encaminhada ao Congresso Nacional. Nesse ponto, convém reter que a lei de 2009 restringia sua incidência apenas ao território da Amazônia Legal. Já a lei de 2017 estendeu os seus limites para todo o país, mas restringindo a possibilidade de regularização às áreas registradas em nome do Incra. Agora, com a nova MP, também são alcançadas as ocupações de áreas da União. Assim, em qualquer local do território será́ possível regularizar ocupação de até 2.500 ha incidente em área de domínio do Incra ou da União, com as mesmas normas inicialmente estabelecidas para a Amazônia Legal[2].

 

A Medida Provisória, até o dia 18 de dezembro de 2019, já havia recebido mais de 546 propostas de alteração, o que demonstra a complexidade do assunto. Diante disso tudo foi solicitada sua prorrogação por mais 60 dias, conforme publicação do Diário da União do dia 10 de março de 2020.

Mas nem todos se posicionam com ressalvas ao texto proposto, há quem admita a necessidade de alguma intervenção, bem como reconheça na proposição aspectos positivos, como destaca Rogério Reis Devisate, em artigo publicado sobre a MP 910 2019 e a regularização fundiária: efetivo combate à grilagem ou sua transmutação, por regularização?

É crível que na sociedade paira um ar de responsabilidade coletiva por tantas décadas de problemas no campo e desde o descobrimento no Brasil e é tempo de se obrar para resgatar esses desmandos e se proteger a terra pública, patrimônio dos brasileiros, por tudo que representa. Nesta senda o que se vê é uma política pública voltada a um imediato reclamo da sociedade pela paz no campo e estabilidade da vida jurídica de tantos que produzem em decorrência de ocupações de terras públicas[3].

 

Exigências de natureza ambiental:

É evidente que a edição da Medida Provisória envolve contextos como: de paz no campo; boa-fé do ocupante; responsabilidade coletiva; função social da terra; estabilidade jurídica; e etc.

Contudo, não é pretensão do presente artigo adentrar nessas discussões.

O que se deseja nessa breve explanação é a abordagem, tão somente, dos aspectos ambientais internalizados como exigências prévias para a regularização do ocupante, quais sejam: o Cadastramento Ambiental Rural; a condição de que a área que se pretende regularizar não esteja sob Embargo ambiental ou seja objeto de infrações ambientais; e que o preenchimento de requisitos para a regularização fundiária não decorreu de dano ambiental, no caso das visitas para áreas superiores a 15 módulos fiscais.

Essas exigências ambientais estão contempladas no art. 13 da Medida Provisória nº 910 de 2019, que disciplina os requisitos para a regularização fundiária de imóveis com até quinze módulos fiscais, itens obrigatórios para instrução do processo administrativo pelo interessado ou pelo INCRA. Vejamos:

Art. 13. Os requisitos para a regularização fundiária de imóveis de até quinze módulos fiscais serão averiguados por meio de declaração do ocupante, sujeita à responsabilização penal, civil e administrativa.(Redação dada pela Medida Provisória nº 910, de 2019)

§ 1º O processo administrativo de regularização da área será instruído pelo interessado ou pelo Incra com:(Incluído pela Medida Provisória nº 910, de 2019)

I – a planta e o memorial descritivo, assinados por profissional habilitado e com a devida Anotação de Responsabilidade Técnica – ART, contidas as coordenadas dos vértices definidores dos limites do imóvel rural, georreferenciadas ao Sistema Geodésico Brasileiro;(Incluído pela Medida Provisória nº 910, de 2019)

II – o Cadastro Ambiental Rural – CAR[4];

….

f) o imóvel não se encontre sob embargo ambiental ou seja objeto de infração do órgão ambiental federal, estadual, distrital ou municipal; e

….

§ 4º  A vistoria realizada na hipótese prevista no inciso I do § 3º verificará se o preenchimento de requisitos para a regularização fundiária decorreu de dano ambiental, situação em que o pedido será indeferido, exceto se o interessado tiver aderido ao Programa de Regularização Ambiental – PRA ou tiver celebrado termo de ajustamento de conduta ou instrumento similar com o órgão ambiental competente ou com o Ministério Público.” (NR)

Conclusão desta primeira parte

A impressão, até o presente momento, é que a Medida Provisória n. 910 de 2019, ao internalizar condicionantes ambientais para a regularização rural de imóveis junto a União e ao INCRA tem, como aparente propósito segurança jurídica, tanto aos interessados com também aos próprios órgãos da administração, resguardando os agentes públicos responsáveis pelas análises e deferimentos dos pedidos de regularização.

O outro lado da moeda, contudo, será a pouca efetividade da norma, visto que, ressalvadas algumas exceções, poucas das áreas que se objetivava atender conseguirão superar as exigências ambientais expostas, assunto que será melhor tratado no artigo seguinte.

Notas:

[1]. Há prejuízo parcial da ação direta de inconstitucionalidade quando lei superveniente promova alteração substancial ou revogue dispositivo impugnado em demanda de controle concentrado, conforme jurisprudência pacífica desta Corte. No caso, a superveniência da Lei no 13.465, de 11 de julho de 2017, alterou a redação do artigo 15, inciso I e §2o, bem como revogou expressamente seus §§ 4o e 5o, circunstancia que impede o conhecimento da ação, no ponto. 2. O direito ao meio ambiente equilibrado foi assegurado pela Constituição da Republica, em seu artigo 225, bem como em diversos compromissos internacionais do Estado Brasileiro. A região amazônica, dada a diversidade biológica, cultural, etnográfica e geológica, mereceu tutela especial do constituinte, tornando-se imperiosa a observância do desenvolvimento sustentável na região, conjugando a proteção à natureza e a sobrevivência humana nas áreas objeto de regularização fundiária. 3. Revela-se de importância ímpar a promoção de regularização fundiária nas terras ocupadas de domínio da União na Amazônia Legal, de modo a assegurar a inclusão social das comunidades que ali vivem, por meio da concessão de títulos de propriedade ou concessão de direito real de uso às áreas habitadas, redução da pobreza, acesso aos programas sociais de incentivo à produção sustentável, bem como melhorando as condições de fiscalização ambiental e responsabilização pelas lesões causadas à Floresta Amazônica. 4. O artigo 4o, §2o da Lei no 11.952/2009 vai de encontro à proteção adequada das terras dos remanescentes de comunidades quilombolas e das demais comunidades tradicionais amazônicas, ao permitir interpretação que possibilite a regularização dessas áreas em desfavor do modo de apropriação de território por esses grupos, sendo necessária interpretação conforme aos artigos 216, I da Constituição e 68 do ADCT, para assegurar a relação específica entre comunidade, identidade e terra que caracteriza os povos tradicionais. 5. Exige interpretação conforme à Constituição a previsão do artigo 13 da Lei no 11.952/2009, ao dispensar a vistoria prévia nos imóveis rurais de até quatro módulos fiscais, a fim de que essa medida de desburocratização do procedimento seja somada à utilização de todos os meios eficazes de fiscalização do meio ambiente, como forma de tutela à biodiversidade e inclusão social dos pequenos proprietários que exercem cultura efetiva na área. 6. Ação Direta de Inconstitucionalidade conhecida parcialmente e, na parte conhecida, julgada parcialmente procedente.

[2]Ministério Público Federal – Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão. (PGR-00032061/2020). Nota Técnica no 1/2020/PFDC/MPF, de 3/02/2020. Tema:  Medida Provisória n° 910, de 10 de dezembro de 2019 (Regularização fundiária de ocupações incidente em terras situadas em áreas da União ou do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA). Inconstitucionalidades.  Ref.: PA n° 1.00.000.002132/2020-72 Disponível em: http://www.mpf.mp.br/pfdc/manifestacoes-pfdc/nota-tecnica-1-2020.

[3] DEVISATE, Rogério Reis. A MP 910/2019 e a regularização fundiária: efetivo combate a grilagem ou sua transmutação, por regularização? In: Direito Agrário, 30/12/2019.

[4]CAPÍTULO VI

DO CADASTRO AMBIENTAL RURAL

Art. 29. É criado o Cadastro Ambiental Rural – CAR, no âmbito do Sistema Nacional de Informação sobre Meio Ambiente – SINIMA, registro público eletrônico de âmbito nacional, obrigatório para todos os imóveis rurais, com a finalidade de integrar as informações ambientais das propriedades e posses rurais, compondo base de dados para controle, monitoramento, planejamento ambiental e econômico e combate ao desmatamento.

§ 1º A inscrição do imóvel rural no CAR deverá ser feita, preferencialmente, no órgão ambiental municipal ou estadual, que, nos termos do regulamento, exigirá do proprietário ou possuidor rural:(Redação dada pela Lei nº 12.727, de 2012).

I – identificação do proprietário ou possuidor rural;

II – comprovação da propriedade ou posse;

III – identificação do imóvel por meio de planta e memorial descritivo, contendo a indicação das coordenadas geográficas com pelo menos um ponto de amarração do perímetro do imóvel, informando a localização dos remanescentes de vegetação nativa, das Áreas de Preservação Permanente, das Áreas de Uso Restrito, das áreas consolidadas e, caso existente, também da localização da Reserva Legal.

§ 2º O cadastramento não será considerado título para fins de reconhecimento do direito de propriedade ou posse, tampouco elimina a necessidade de cumprimento do disposto noart. 2º da Lei nº 10.267, de 28 de agosto de 2001.

§ 3º  A inscrição no CAR é obrigatória e por prazo indeterminado para todas as propriedades e posses rurais

§ 4º  Os proprietários e possuidores dos imóveis rurais que os inscreverem no CAR até o dia 31 de dezembro de 2020 terão direito à adesão ao Programa de Regularização Ambiental (PRA), de que trata o art. 59 desta Lei.

Art. 30. Nos casos em que a Reserva Legal já tenha sido averbada na matrícula do imóvel e em que essa averbação identifique o perímetro e a localização da reserva, o proprietário não será obrigado a fornecer ao órgão ambiental as informações relativas à Reserva Legal previstas no inciso III do § 1º do art. 29.

Parágrafo único. Para que o proprietário se desobrigue nos termos do caput , deverá apresentar ao órgão ambiental competente a certidão de registro de imóveis onde conste a averbação da Reserva Legal ou termo de compromisso já firmado nos casos de posse.

Tatiana Monteiro Costa e Silva – Mestra em Direito Ambiental pela Universidade Estadual do Amazonas – UEA; Doutoranda em Direito pela PUC/SP; Especialista em Direito Ambiental pela Universidade de São Paulo – USP (Turma CEDA 2); Especialista em Gestão Ambiental pela Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT; Especialista em Direito Agroambiental pela Fundação Escola Superior do Ministério Publico e UFMT; , Ex-Procuradora Chefe da Procuradoria do Município de Cuiabá/MT, nas áreas ambiental, urbanística e regularização fundiária; EX diretora de Plano Diretor do Instituto de Planejamento e Desenvolvimento Urbano de Cuiabá e Professora Universitária do UNIVAG – Centro Universitário de Várzea Grande. Instagram: profa.tatianamonteiro.

Direito Ambiental

Veja também: 

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