por Albenir Querubini e Maurício Fernandes.
Com a ADI nº 6446, protocolizada em 03/06/2020, o Governo Federal evita discussões políticas e transfere para o STF a decisão de manter a regra de transição de áreas consolidadas no Bioma Mata Atlântica.
A ADI busca a declaração da nulidade parcial, sem redução de texto, do conjunto normativo formado pelos artigos 61-A e 61-B da Lei nº 12.651/2012 e artigos 2º, parágrafo único, 5º e 17 da Lei nº 11.428/2006, de modo a “excluir do ordenamento jurídico interpretação inconstitucional dos referidos dispositivos que impeça a aplicação do regime ambiental de áreas consolidadas previsto no Código Florestal de todas as áreas de preservação permanente inseridas no bioma Mata Atlântica.
O imbróglio envolve uma mudança de entendimento criada na gestão do Ministro José Sarney no MMA (2016/2018). Desde a publicação, em 2012, da Lei de Proteção da Vegetação Nativa, popularmente batizada de Código Florestal, não havia dúvidas acerca da aplicação da Lei nº 12.651/2012 em todo território nacional.
O Código Florestal manteve, com pequenas (e significativas) alterações, os conceitos de Áreas de Preservação Permanente (APPs). Contudo, inovou (e muito) ao criar uma regra para as “áreas consolidadas”, consistente no reconhecimento do uso do território a ser protegido desde que ocupado anteriormente a 22/07/2008 (data alusiva à publicação do Decreto nº 6.686/2008).
Com isso, tornou-se obrigatório o cumprimento de uma série de exigências para que houvesse a manutenção da produção de alimentos em locais que no passado não eram de preservação ou cujo poder público (em especial o Ministério Público, Estados e Municípios) pouco se preocupou.
Após debates complexos que duraram de 2008 até 2012, o código Florestal aprovado foi o possível, desagradando a muitos. O regramento que permitia o não pagamento das multas ambientais pretéritas decorrentes de desmatamentos foi rotulado de “anistia”, enquanto o compromisso de entregar ao governo um cadastro inédito, georreferenciado com informações de cada metro quadrado das propriedades rurais era visto com desconfiança pelos produtores.
O Cadastro Ambiental Rural até hoje gera poucos efeitos práticos por deficiência operacional dos Estados. Todavia, é instrumento fundamental para conciliar produção com proteção, via regularização ambiental, através de um programa criado para isso. Tanta foi a polêmica que o Código Florestal foi a única lei brasileira que, no mesmo diário oficial em que fora publicada, foi significativamente alterada por medida provisória.
O equilíbrio deve ser o caminho a ser ofertado por todos, na medida em que o mercado consumidor está nos centros urbanos e o alimento vem do campo.
A nova lei, publicada em 2012, cumpriu seu papel e, em 2019, teve reconhecida sua constitucionalidade, inclusive para o até então inédito programa de regularização ambiental. Em acordão com mais de 600 páginas, o STF recusou o principal argumento apresentado nas ações que buscavam a inconstitucionalidade, consistente na proibição do retrocesso.
A promessa era a de que as centenárias produções de vitivinicultura da serra gaúcha ou cafezais mineiros, atualmente consideradas APPs de Mata Atlântica, poderiam ter sua produção continuada, citando apenas dois exemplos de tantos existentes no Brasil.
A Lei nº 12.651/2012, portanto, substituiu o código anterior e 1965 (Lei nº 4.771/1965) e é a base legal da previsão de APP e Reserva Legal que deve ser observada em cada propriedade rural. A própria Lei da Mata Atlântica (Lei nº 11.428/2006) prevê expressamente o atendimento ao código florestal, pois, do contrário, não haveria falar em APP e Reserva Legal no Bioma e assim ambas as normas conviveram harmonicamente até 2017.
Contudo, no ano de 2017 o Governo Federal adotou entendimento distinto, no sentido de que regras do Código Florestal não valeriam na Mata Atlântica. Tal fato gerou embargos de áreas produtivas e centenas de milhares de reais em multas ambientais. Ao que consta, os preceitos protetivos do código deveriam viger, enquanto o regime de transição, com reconhecimento das áreas consolidadas, não deveria gerar efeitos. Em outras palavras, vale o que convém.
Com a alteração na gestão do MMA, a Advocacia Geral da União teve acolhido seu parecer no sentido de que ambas normas vigem no mesmo território (Despacho nº 4.410/2020). Outrossim, tanto na discussão acalorada do congresso nacional, como nas ADI´s e ADC que atestaram, no STF, a constitucionalidade do Código Florestal, o bioma Mata Atlântica foi abordado. Nunca se cogitou afastar um dos biomas da Lei nº 12.651/2012.
Ademais, convém lembrar também que o Código Florestal e a Lei da Mata Atlântica possuem fundamento no Art. 225 da Constituição Federal, seja no inciso III ou no § 4º, respectivamente.
De qualquer sorte, com a retomada do entendimento anterior do Ministério do Meio Ambiente, o atual governo viu-se duramente criticado e, ao invés de voltar ao “status quo ante”, optou, por conseguinte, em conduzir o assunto para o Supremo Tribunal Federal a quem cabe, agora, a última palavra, transferindo para o Judiciário o papel que caberia ao Legislativo resolver.
Por fim, cabe registrar que a Ação Direta de Inconstitucionalidade foi autuada sob o nº 6446 e, nas palavras do Ministro do Meio Ambiente, buscou-se o STF para “acabar com a insegurança jurídica”. No entanto, não há garantias de que a judicialização da matéria vai trazer segurança jurídica, podendo, quem sabe, vir a aumentar a insegurança hoje existente que é tão nociva para a sociedade quanto para a real proteção do meio ambiente.