Por Paulo Sérgio Sampaio Figueira
A Lei n.º 9.985, de 2000 que trata do Sistema Nacional de Unidades de Conservação elencou 12 (doze) categorias de manejo distintas, divididas em dois grupos, sendo uma de Proteção Integral em que não permite presença humana quanto a sua fixação e uso dos recursos naturais e a outra de Uso Sustentável em que permite e recepciona as comunidades tradicionais.
Infelizmente no Brasil, principalmente nos 9 (nove) Estados da Amazônia Legal, não existe regularização fundiária rural para identificar as posses e as ocupações legitimas, e as propriedades consolidadas em terras públicas devolutas e remanescentes, consequentemente a criação de Unidades de Conservação não se limita apenas a áreas públicas sem afetação, o que faz com que as posses e ocupações legitimas, e as propriedades consolidadas dessas áreas terminem por sofrer uma série de restrições, quando não existe calote fundiário pelo Estado, sem nenhum processo indenizatório.
A grande maioria das Unidades de Conservação de Proteção Integral criadas, ainda não apresenta uma situação fundiária regularizada e com documentos técnicos e jurídicos para sua gestão.
Desta maneira, a desapropriação de áreas privadas no interior das Unidades de Conservação ainda hoje não foi concluída e não há indícios de que problemas dessa natureza sejam resolvidos tão cedo, principalmente com processos administrativos e judiciais em curso.
Nessa situação, se encontra a maioria das populações residentes em unidades de conservação que, diante de novas regras político-administrativas e da carência de capital humano, de recursos econômicos e de documentos de gestão ambiental, vivem em condições arriscadas e sem permissão de realizar qualquer atividade produtiva, nem mesmo para reforma das suas habitações, ou obtenção de licença ambiental.
A solução existentes e não cumpridas para esse modelo de proteção integral é a indenização ou compensação, além de realocação em outra área, visto que não abriu a possibilidade de reclassificação da unidades existentes para dirimir os conflitos, permitindo a transferência do grupo de “Proteção Integral para Uso Sustentável”, mas, entretanto, permite que as populações tradicionais permaneçam em seu interior indefinidamente enquanto não for feito o reassentamento, mediante o estabelecimento de normas e ações destinadas à compatibilização da presença dessas populações com os objetivos da Unidade de Conservação.
Após essa exposição de que existe presença humana em unidade de conservação de proteção integral e de uso sustentável, e que não houve observância quanto aos procedimentos normativos, técnicos, e de audiência pública, pelos órgãos ambientais, descreve-se as normas constitucionais e infraconstitucionais que devem ser respeitadas antes da criação de unidades de conservação, para dar segurança jurídica as posses e ocupações legitimas, e as propriedades consolidadas.
Neste diapasão, o inciso I, do artigo 2º, da Lei n.º 9.985, de 2000, que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza, define Unidade de Conservação e as bases constitucionais para que o Poder Público institua unidades de conservação, bem como também, no inciso III, do § 1º, do artigo 225, da Constituição Federal.
Veja-se que Constituição Federal estabelece uma obrigação de fazer, cujo destinatário é o Poder Público, nos seus três âmbitos de administração, com base no poder de polícia e de delimitação legal do exercício dos direitos individuais em benefício da coletividade, dentro das balizas traçadas pela lei (art. 225, § 4º, da CRFB).
Vale ressaltar, entretanto, a preocupação quanto a esses critérios para que sejam capazes de assegurar a sustentabilidade dos mencionados ecossistemas “sem que sejam vedadas atividades econômicas, sociais e recreativas lícitas, as quais venham sendo desenvolvidas, rotineiramente, nessas regiões especialmente conservadas e protegidas, antes de sua criação”, com obediência ao princípio da concordância prática, ou seja, a solução para o conflito não pode ser de uma forma que leve ao sacrifício total de um em relação ao outro, trato aqui da distinção entre patrimônio cultural versus patrimônio natural.
Além da norma constitucional, temos as normas infraconstitucionais, que também fazem referências as essas questões da “não vedação de atividades produtivas existentes nesses biomas analisados para criação de unidades de conservação”, desprezados pelos órgãos ambientais e sem a observância do órgão público de controle social, que em seus estudos anteriores e posteriores acabam acarretando calote fundiário público das posses e das ocupações legitimas, e das propriedades consolidadas, explícitos no artigo 22, §2º e 3º da Lei n.º 9.985, de 2000, e no Decreto n.º 4.320, de 2002, no inciso I – IV , do artigo 2 º, que salienta a necessidade de “Estudos Técnicos e de Consulta Pública” com o fito de dimensionar a área e de verificar a presença de posses e as ocupações legitimas e de propriedade privada.
Destarte, estabelece o artigo 5º, §1º e 2º, do Decreto n.º 4.320, de 2002, que é condição de validade de constituição de uma Unidade de Conservação que ela seja precedida de “Estudos Técnicos” elaborados pelo órgão ambiental para a sua criação, recomendando-se a convocação de uma “Consulta Pública” destinada a conhecer a opinião da comunidade residente no interior e de entorno para sua validação legal.
Vale esclarecer que esse entendimento já está pacificado no STJ e STF, em que ambos tribunais já se manifestaram no sentido da obrigatoriedade de sua realização, sob pena de “Nulidade Absoluta”, uma vez que cuida-se de direito subjetivo público da população residente, principalmente daqueles indivíduos que tenham posses, ocupações ou propriedades nas áreas a serem abrangidas pelas futuras unidades de conservação.
Desta forma, fica a dúvida de quem teria competência legal para rever essas questões de criação de unidades de conservação sem obediência dos critérios normativos, principalmente quando não há “Estudos Técnicos e Audiência Pública”, para garantir esses direitos as posses e ocupações legitimas de comunidades tradicionais.
A Lei nº. 9.985, de 2000, salienta que o Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA) tem a função de fiscalizar a aplicação das regras normativas e o funcionamento do SNUC.
Para isso, pode requisitar informações a qualquer Unidade de Conservação ou visitá-las, sejam elas federais, estaduais ou municipais. Excepcionalmente, o CONAMA terá como mister decidir sobre a classificação das Unidades de Conservação.
Assim, pelo exposto, pelo princípio da “simetria”, os Conselhos Estaduais de Meio Ambiente, tem essa mesma função, principalmente no sentido de resguardar os direitos das comunidades tradicionais em que tem as posses e ocupações legitimas e que sofreram calote fundiário público com o fito mercantilistas para atender empresas transnacionais e internacionais com o escopo de silvicultura, de concessão florestal onerosa, de atividades minerarias, e de implantação de grandes projetos como hidrelétricas por exemplo.
O ponto focal aqui é analisar qual a composição e a liberdade desse Conselho Estadual de Meio Ambiente nesses Estados, se ele não é tendencioso, e se não sofre assédio político partidário, qual realmente a força que esse Conselho tem para dar retorno a comunidade tradicional atingida?
Fica clarificado que quando a política pública de criação de unidades de conservação são realizadas com observâncias as normas não há interferência nas posses e ocupações legitimas, e na propriedade privadas, sendo garantido o reconhecimento das posses e ocupações legitimas, e de propriedade consolidadas, visto que o fim da preservação do meio ambiente não é a proteção pela proteção, mas sim a sadia qualidade de vida, conforme preceituado no artigo 225, da Constituição Federal.
Por isso, a proteção do meio ambiente deve fazer-se, tanto quanto possível, com o menor sacrifício das populações tradicionais diretamente afetadas pela intervenção do Poder Público.
Isto porque as Unidades de Conservação produzem benefícios sociais em forma de serviços ambientais para toda a região, que vem sendo mantidos por anos de forma harmônica, sustentável, por essas comunidades tradicionais, que tem posse e ocupações legitimas centenárias e propriedade consolidada.
Neste objeto, é necessário lembrar que a Lei n.º 9.985, de 2000, no inciso X do seu artigo 5º, determinou que “garantam às populações tradicionais cuja subsistência dependa da utilização de recursos naturais existentes no interior das unidades de conservação meios de subsistência alternativos ou a justa indenização pelos recursos perdidos”.
O cerne da questão está quando o Estado comete calote fundiário, e que essa população tradicional que existe na área antes da criação da unidade de conservação, e que cuja existência seja baseada em sistemas sustentáveis de exploração dos recursos naturais, desenvolvidos ao longo de gerações e adaptados às condições ecológicas locais, sejam desprezadas de forma proposital e criminalizadas por órgãos públicos de controle social, não exigindo os verdadeiros estudos técnicos (laudo antropológico, cadastro ocupacional e censo agropecuário) e audiência pública com o fito de resguardar o instituto da ancianidade.
Nessa situação como agir? Obrigatoriamente antes da criação da Unidade de Conservação tem que fazer estudos Técnicos e Audiência Pública, ponto existentes nas normas constitucionais e infraconstitucionais e já pacificado pelo STJ e STF, inclusive como causa de Nulidade Absoluta da criação da unidade de conservação.
Assim, tem que ser analisado sobre o viés da população encontrada no espaço territorial a ser conservado, levando-se em consideração o tempo de presença e o modo de vida como vem utilizando os recursos naturais, que faz referência ao instituto da ancianidade.
Desta maneira, a população tradicional seria aquela que estaria na área, antes da criação da unidade de conservação.
A ancianidade exigiria a prova dos ascendentes e descendentes ligados à área ou ali presentes, bem como o modo de usos dos recursos naturais da área, que distingue de outras regiões.
Caso contrário, pessoas recentemente chegadas de fora, estariam apresentando-se falsamente como populações tradicionais, entretanto com outros modos de utilização dos recursos naturais, fato perceptível e que deve ser levado em consideração em processos administrativos e judiciais, fato na maioria das vezes desprezados pelos órgãos de controle social e pelo judiciário.
Vale esclarecer que esse processo é intencional pelo Estado-União, visto a existência de terras devolutas e remanescentes, com ocupação humana, na invisibilidade fundiária rural, sem a promoção da devida regularização fundiária rural.
Logo, verificada, a presença de comunidade tradicional em uma área, na qual se vislumbre a necessidade de criação de uma Unidade de Conservação, essa comunidade não poderá ser expulsa ou levada a sair do local sem qualquer indenização ou sua adequada realocação pelo Poder Público, inclusive com direito de permanência, premissa do artigo 42, § 1º , 2 º e 3 º da Lei n.º 9.985, de 2000.
A solução proposta pela “Política Nacional da Biodiversidade” para os conflitos de existência humana de áreas protegidas e de uso sustentável é a elaboração de um “Plano de Ação para Solução dos Conflitos”, diferentemente do que foi proposto no Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), que determinou o reassentamento das populações e a indenização ou compensação pelas benfeitorias existentes.
Estamos, portanto, diante de uma verdadeira mudança de paradigma que deve ser reconhecida e operacionalizada pelos gestores de áreas protegidas, pelo CONAMA e pelo COEMA, pois é fruto de evidências trazidas pelas pesquisas científicas, sociais e antropológicas, muitas vezes motivadas pelas injustiças cometidas em áreas protegidas e de uso sustentável em razão da expulsão de populações humanas de suas áreas tradicionalmente ocupadas.
A melhor alternativa quando a existências humanas a criação das Unidades de Conservação sem a observância de posses, ocupações legitimas e de propriedade consolidada, é garantir a permanência dessas comunidades em suas áreas, porque elas sabem utilizar os recursos naturais de maneira sustentável, preservando o meio ambiente em questão.
Vale salientar que os dados do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade revelam que no mapa da Amazônia Legal, a concentração de áreas protegidas está, em sua maior parte, localizada juntamente em territórios ocupados por comunidades tradicionais, sendo que a própria comunidade é a garantia de proteção à unidade, pois eles mantêm uma relação de dependência com o meio, não de exploração, sem olvidar que a Convenção da Diversidade Biológica enfatiza a preservação de populações tradicionais e seus conhecimentos sobre a biodiversidade, incentivando a sua presença e proteção e prevendo mecanismos de repartição de benefícios.
Para corroborar com esse entendimento tem-se que na elaboração de qualquer Plano de Regularização Fundiária de Unidades de Conservação em que populações tradicionais estejam presentes, inafastável a incidência das normas da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre territorialidade étnica e cultural e o direito de consulta prévia e informada, devendo ser criados “procedimentos adequados” que permitam a participação da comunidade tradicional na definição de medidas que possam afetá-los diretamente.
Inverte-se, assim, a presunção de que os povos devam ser prioritariamente reassentados ou trasladados, uma vez que o artigo 16 da referida Convenção, apenas excepcionalmente permite o seu traslado das terras que ocupam. Vale esclarecer que essa norma, de status supralegal, prevalece sobre a lei ordinária do SNUC.
É importante ressaltar que ainda existem os Enunciados da 6ª CCR/MPF consolidadas no XIV Encontro Nacional (2014), como: Enunciado 17: As comunidades tradicionais estão inseridas no conceito de povos tribais da Convenção 169/OIT; e o Enunciado 22: Em casos de sobreposição territorial entre comunidades tradicionais e/ou unidades de conservação, é necessária a realização de “Estudo Antropológico” para contextualizar a dinâmica sociocultural.
Mesma previsão é encontrado nos Enunciados 19, 25, 26 e 27, que apregoam que em casos de conflito, é necessário buscar a harmonização entre estes direitos, consideradas as especificidades de cada situação, e a segurança jurídica a esses povos.
REFERÊNCIAS
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OLIVEIRA, Raul Miguel Freitas de. Concessão Florestal: exploração sustentável de florestas públicas por particular. Leme: J.H.Mizuno, 2013.
Paulo Sérgio Sampaio Figueira – Advogado e professor com atuação em Direito Ambiental, Agrário e Administrativo. Técnico Agrícola, Graduado em Bacharel em Direito, em Administração de Empresas, em Arquivologia, em Ciências Agrícolas. Pós-graduação em Desenvolvimento Sustentável e Gestão Ambiental, em Direito Ambiental e Política Pública, em Arquivologia, em Metodologia Cientifica, em Advocacia Eleitoral, e Mestre em Direito Ambiental e Política Pública. Autor de Obras em Direito Ambiental e Agrário e de Política Pública, Vice-Presidente da Comissão Nacional de Regularização Fundiária da UBAU-Região Norte, Presidente da Pasta Ambiental da UBAM, já foi Secretário de Estado de Meio Ambiente, Membro da Anamma e da Abema, e Presidente da Comissão de Meio Ambiente da OAB/AP.
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