terça-feira , 19 março 2024
Home / Artigos jurídicos / Da nulidade da criação de Unidades de Conservação

Da nulidade da criação de Unidades de Conservação

por Melina Lemos Vilela.

 

Temos visto ultimamente com grande frequência diversas ações judiciais em que se discute unidades de conservação, em sua maioria sobre questões de decretos municipais, estaduais e federais que não são observados os prazos estipulados nos próprios decretos e até mesmo na própria Lei 9.985/2000.

O que se constata em sua maioria é que diversos órgãos ambientais, sejam eles municipais, estaduais ou federais, sem quaisquer estudos técnicos e consulta pública, simplesmente elaboram decretos ou leis, as vezes por requisições de órgão ambientais nacionais ou até mesmo órgãos internacionais.

Vejam que a Lei 9.985/2000 é muito clara em seu art. 22 determina que as Unidades de Conservação (UC) serão criadas por ato do Poder Público e que este deve ser precedido de estudos técnicos e consulta pública[1]. Também é esse o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF)[2].

Paulo de Bessa Antunes afirma que “justifica-se a exigência das formalidades legais, pois vigente a cláusula constitucional do devido processo legal e da ampla defesa. Na consulta a comunidade é imprescindível a oitiva dos proprietários cujos domínios possam vir a ser afetados pela unidade de conservação, sobretudo quando se trata de unidade de conservação do grupo de proteção integral”.[3]

O Supremo Tribunal Federal já se posicionou quanto à nulidade de criação de Unidades de Conservação sem a necessária consulta pública e estudos técnicos prévios.

EMENTA: MEIO AMBIENTE. Unidade de conservação. Estação ecológica. Ampliação dos limites originais na medida do acréscimo, mediante decreto do Presidente da República. Inadmissibilidade. Falta de estudos técnicos e de consulta pública. Requisitos prévios não satisfeitos. Nulidade do ato pronunciada. Ofensa a direito líquido e certo. Concessão do mandado de segurança. Inteligência do art. 66, §§ 2º e 6º, da Lei nº 9.985/2000. Votos vencidos. A ampliação dos limites de estação ecológica, sem alteração dos limites originais, exceto pelo acréscimo proposto, não pode ser feita sem observância dos requisitos prévios de estudos técnicos e consulta pública.(MS 24665, Relator(a):  Min. MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão:  Min. CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, julgado em 01/12/2004, DJ 06-10-2006 PP-00033 EMENT VOL-02250-02 PP-00233 RTJ VOL-00199-02 PP-00652 RT v. 96, n. 856, 2007, p. 104-118)

E também no MS nº 27623, o Ministro Cezar Peluso registrou que “a implantação do Parque Nacional Mapiguari – assim como a de toda unidade de proteção integral – não se consuma com o simples decreto de criação, e, muito menos, a expropriação, com a só declaração de utilidade pública das áreas privadas contidas no perímetro”.

Paulo de Bessa Antunes ressalta que “tem sido prática muito comum que entes públicos decretem a “criação’ de parques – nas três esferas de Poder – e não implementem as medidas necessárias para a real constituição da unidade de conservação, muito embora desenvolvam atividades administrativas como se, de fato as áreas tivessem sido desapropriadas e o domínio privado houvesse sido transferido para o público. Assim, são estabelecidas proibições para as atividades particulares que ultrapassam os limites do art. 22-A da Lei do SNUC, praticando um “desapossamento branco” dos proprietários. A medida é, certamente, ilegal e se caracteriza como abuso de poder ou de autoridade, conforme o caso.”[4]

Outro fato que deveria ser observado em relação a criação da unidade de conservação é a obrigatoriedade de registro das limitações ao direito de construir com base em proteção ambiental, pois para a criação de unidade de conservação a mesma deve ser submetida à desapropriação, nos termos do art. 24 da Lei 9.985/2000.

Ora, se o decreto ou lei de criação de uma unidade de conservação dispõe que deverá ser efetuada a desapropriação do imóvel do particular, tal fato deverá ter uma ampla publicidade de tal fato, pois poderá prejudicar terceiros de boa-fé.

Em consonância ao quanto supramencionado, o E. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro já se manifestou que “Desmatamento e realização de habitações em imóvel coberto por floresta, que não foi desapropriada e da qual não consta, no Registro de Imóveis, que se trata de área de preservação permanente. As limitações administrativas não podem obstar o uso da propriedade”[5]

E, por último, a cada unidade de conservação deve corresponder um Plano de Manejo, que deverá conter as seguintes características, sendo elas: (i) abranger a área da unidade de conservação, sua zona de amortecimento e os corredores ecológicos, incluindo medidas com o fim de promover sua integração à vida econômica e social das comunidades vizinhas; (ii) a ampla participação da população residente; e (iii) deve ser elaborado no prazo de cinco anos a partir da data da sua criação

Ressalta-se também que tratando de Unidade de Conservação em área de faixa de fronteira, deve ser observado um outro sistema de elaboração do plano de manejo, consoante dispõe o art. 2º, do Decreto nº 4.411, de 2002:

Art. 2º – O Ministério da Defesa participará da elaboração, da análise e das atualizações do plano de manejo das unidades de conservação localizadas na faixa de fronteira.

Parágrafo único – Os planos de manejo e respectivas atualizações, referidos no caput, serão submetidos à anuência prévia do Conselho de Defesa Nacional, por meio de sua Secretaria Executiva.

Veja, que se tratando de unidades de conservação em áreas de faixa de fronteira, o Ministério da Defesa, deve participar de todos os processos concernentes aos planos de manejo e o Conselho de Defesa Nacional deve anuir previamente.

É importante observar que o Plano de Manejo é a materialização concreta das unidades de conservação que, sem a sua existência, não passam de meras abstrações, ainda mais quando o governo estadual, quer se apossar de bens dos proprietários sem o devido ajuizamentos das ações expropriatórias, sem qualquer planejamento, estudo e muito menos qualquer participação dos proprietários, da comunidade local e, ainda, o mais grave, sem a participação do Ministério da Defesa.

Não observando os critérios estabelecidos pela própria lei de criação da unidade de conservação e também pela Lei 9.985/2000 opera-se a caducidade da lei, visto que nunca ocorreu o processo expropriatório, de acordo com os termos do Decreto-Lei nº 3.365/41 – que rege a desapropriação por utilidade pública – e do art. 5º, XXIV, da CF.

Citando trecho do Acórdão do E. Tribunal Regional Federal da 1ª Região[6], o mesmo ao tratar sobre a caducidade de lei de criação unidades de conservação, assim o faz:

[…]

A obrigação do Poder Público de instituir “espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei” nada tem a ver com o prazo decadencial para a propositura da ação de desapropriação.

Ademais, a Constituição da República garante o direito de propriedade e determina que o procedimento da expropriação deve obedecer o preceituado em lei. Os princípios constitucionais relativos ao devido processo legal (CR, Art. 5º, inciso LIV) e ao contraditório e à ampla defesa (CR, Art. 5º, inciso LV) são exercidos e observados nos termos da lei processual. (STF, MS 23739/DF, Rel. Min. MOREIRA ALVES, Tribunal Pleno, julgado em 27/03/2003, DJ 13-06-2003 P. 10; MS 25483/DF, Rel. Min. CARLOS BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 04/06/2007, DJe-101 14-09-2007 DJ 14-09-2007 P. 32.) Nos termos do Art. 5º, XXII e XXIII, da CR, respectivamente, “é garantido o direito de propriedade” e essa “atenderá a sua função social”. Todavia, e, ainda que a propriedade não atenda “a sua função social”, o Estado somente poderá tomá-la do cidadão por meio do “procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição”. CR, Art. 5º, XXIV.

[…] Cabe ao Legislativo, e, não, ao Poder Judiciário, transigir com o prazo decadencial previsto em lei. Além do interesse material envolvido na preservação do meio ambiente é necessário observar, por expressa disposição constitucional (CR, Art. 5º, XXII, XXIII e XXIV), o procedimento previsto em lei para a desapropriação. O meio ambiente deve ser preservado para todas as pessoas, inclusive para aquelas que sofrerão a intervenção estatal mais drástica, consistente na expropriação. Essas têm direito, além do meio ambiente ecologicamente equilibrado, que sejam observados os preceitos constitucionais e legais erigidos em favor da garantia de seu direito de propriedade. Assim, a questão, aqui, não envolve confronto entre o interesse público e o interesse particular, mas, sim, a observância disposto na Constituição e na lei específica sobre a matéria atinente à desapropriação por interesse social. Se toda vez que o interesse público justificasse a desconsideração das disposições constitucionais e legais expressas, não haveria estado de direito, mas, sim, de anarquia, cabendo aos burocratas definir quais interesses particulares deveriam ser sacrificados, inclusive contra legem. Hoje transigimos com o prazo decadencial para o ajuizamento de ação de desapropriação. Amanhã transigiremos com qual garantia? A lei não deve ser interpretada mecanicamente. No entanto, em se tratando de garantia erigida em favor do cidadão, sua interpretação deve ser ampla, e, em se tratando de prazo decadencial para o ajuizamento de ação de desapropriação, em prol do cidadão.

No tocante ao Art. 5º da LINDB, o STF já deixou claro que, “substituindo-se o Juiz ao legislador, com fundamento nos artigos 4º e 5° da Lei de Introdução ao Código Civil”, “[n]ão pode o Juiz, sob alegação de que a aplicação do texto da lei a hipótese não se harmoniza com o seu sentimento de justiça ou equidade, substituir-se ao legislador para formular de próprio a regra de direito aplicável. Mitigue o juiz o rigor da lei, aplique-a com equidade e equanimidade, mas não a substitua pelo seu critério.” (STF, RE 93701, Rel. Min. OSCAR CORRÊA, Primeira Turma, julgado em 24/09/1985, DJ 11-10-1985 P. 17861.) Na espécie, inexiste espaço para que o Poder Judiciário se substitua ao legislador a fim de transigir com o prazo decadencial para a propositura de ação de desapropriação por interesse social.

O ICMBio alega que o reconhecimento da decadência caracteriza maior prejuízo ao particular, porquanto a caducidade do decreto pode impedir o ajuizamento da ação de desapropriação, mas, não, as limitações ao exercício do direito de propriedade, daquele (decreto) decorrentes.

A alegação de prejuízo ao particular constitui res inter alios em relação à pretensão do ICMBio de contornar a aplicação da Lei 4.132. Assim, a circunstância de “[a] desafetação ou redução dos limites de uma unidade de conservação só pode ser feita mediante lei específica” (Lei 9.985, de 18/07/2000, Art. 22, § 7º) não afasta o reconhecimento da decadência para a propositura da ação de desapropriação por interesse social para constituição de reserva extrativista. Enquanto não houver a regularização da desapropriação, o proprietário de imóvel atingido pela declaração caduca poderá continuar a explorá-lo de forma legítima. […]

Por outro lado, o disposto no Art. 22, § 7º, da Lei 9.985, de 2000, segundo o qual “[a] desafetação ou redução dos limites de uma unidade de conservação só pode ser feita mediante lei específica” não impede o julgamento de procedência do pedido formulado. A decisão judicial não implica desafetação nem redução dos limites da unidade de conservação. Ademais, o disposto no Art. 22, § 7º, da Lei 9.985 é aplicável às unidades de conservação efetivamente implantadas, e, não, àquelas que, a despeito da existência do decreto de declaração de interesse social, não foram efetivamente implantadas. Enquanto não houver a imissão na posse, o proprietário pode usar, gozar e dispor do imóvel objeto de decreto expropriatório. Código Civil, Art. 1.228, caput: “O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.” “A simples declaração de utilidade pública, para fins de desapropriação, não retira do proprietário do imóvel o direito de usar, gozar e dispor do seu bem, podendo até aliená-lo. Enquanto não deferida e efetivada a imissão de posse provisória, o proprietário do imóvel continua responsável pelos impostos a ele relativos.” (STJ, REsp 239.687/SP, Rel. Ministro GARCIA VIEIRA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 17/02/2000, DJ 20/03/2000, p. 51.) Na mesma direção: STJ, REsp 1111364/SP, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, julgado em 25/08/2009, DJe 03/09/2009.

(…)

Também é irrelevante para afastar a ocorrência da decadência a alegação quanto ao “impacto que a tese da caducidade poderá causar às unidades de conservação federais em todo o país.” O réu da ação de desapropriação nada tem a ver com a criação indiscriminada de parques, unidades de conservação e reservas extrativistas sem planejamento. O Estado desidioso é quem deve responder por sua desídia. Pense e planeje antes de agir.  (…)

O ICMBio alega que a caducidade não poderia ser reconhecida, sob pena de responsabilização da República Federativa do Brasil, no plano internacional, em virtude da suposta quebra de compromissos assumidos em matéria ambiental. Nenhum compromisso internacional se sobrepõe à Constituição, a qual determina que a desapropriação deve obedecer ao procedimento previsto em lei. Por outro lado, a União, que se omitiu na desapropriação tempestiva dos imóveis relacionados no decreto expropriatório, não está em posição de alegar que a omissão dela poderá implicar a sua responsabilização no plano internacional. “Nenhuma das partes poderá argüir nulidade a que haja dado causa, ou para que tenha concorrido, ou referente a formalidade cuja observância só à parte contrária interesse.” (…) Na espécie, a culpa pela eventual responsabilização da União, no plano internacional, é dela própria e de suas autarquias, e, não, dos proprietários dos imóveis relacionados no decreto expropriatório.

Ademais, essa alegação carece de amparo em elementos probatórios idôneos, sendo, assim, mera especulação.

[…]

Portanto, a não observância de requisitos legais previstos nos decretos ou leis de criação de unidade de conservação, bem como da Lei nº 9985/2000 (Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza), tais como (i) falta de fundamentos técnico-científicos e sócios econômicos e de consulta pública que justifiquem a implantação do Parque; (ii) transferência da dominialidade da propriedade privada ou pública, nos termos do decreto-lei nº 3.365/1941; e (iii) apresentação de plano de manejo, definindo os objetivos específicos de manejo da unidade, são passiveis de nulidade do ato vicio de motivo.

Veja que unidades de conservação criadas ao acaso, não somente possuem um ato viciado, como ‘normalmente’ acarretam na sua caducidade, visto que os órgãos públicos ‘simplesmente’ esquecem de dar andamento em atos expropriários.

No acórdão supramencionado, o il. Des. sustenta que “O réu da ação de desapropriação nada tem a ver com a criação indiscriminada de parques, unidades de conservação e reservas extrativistas sem planejamento. O Estado desidioso é quem deve responder por sua desídia. Pense e planeje antes de agir.

Dessa forma, enquanto não houver a regularização da desapropriação, o proprietário de imóvel atingido pela declaração caduca poderá continuar a explorá-lo de forma legítima.

Notas:

[1] Art. 22. As unidades de conservação são criadas por ato do Poder Público.(Regulamento)

§ 1o(VETADO)

§ 2oA criação de uma unidade de conservação deve ser precedida de estudos técnicos e de consulta pública que permitam identificar a localização, a dimensão e os limites mais adequados para a unidade, conforme se dispuser em regulamento.

§ 3oNo processo de consulta de que trata o § 2o, o Poder Público é obrigado a fornecer informações adequadas e inteligíveis à população local e a outras partes interessadas

[2] MS 23800/MS e MS 24148/DF

[3] Direito Ambiental. 17ªed. Ed. Atlas. São Paulo. 2015. Fls. 907

[4] Direito Ambiental. 17ªed. Ed. Atlas. São Paulo. 2015. Fls. 909

[5] TJRJ – Apelação Cível – 0006603-95.1997.8.19.0000 ( 1997.001.02233) – Julgamento: 05.02.1998 – 7ª Câmara Cível.

[6] APELAÇÃO/REEXAME NECESSÁRIO  0002265-79.2011.4.01.3700/MA. Juiz Federal LEÃO APARECIDO ALVES.

Melina Lemos Vilela
Advogada. Especialista em Direito Ambiental pela PUC/SP. Mestre em Direito pela PUC/SP. Diretora geral do Instituto Brasileiro de Direito e Sustentabilidade (IBRADES). Sócia do escritório Montanini Advogados Associados. E-mail: [email protected]

Direito Ambiental

Leia também:

 Dados do CAR são utilizados para militância judicial contra agricultores proprietários de terras em Parque Estadual nunca desapropriado

Além disso, verifique

Espécie exótica foi introduzida na Argentina

Nova espécie exótica invasora presente no Sul gera preocupação

Foto: Réserve Zoologique de la Haute-Touche Espécie exótica foi introduzida na Argentina e Uruguai em …

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *