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Crime ambiental: denunciado por desmatamento é absolvido pelo TRF1

A Terceira Turma do TRF da 1ª Região, por unanimidade, negou provimento à apelação do Ministério Público Federal (MPF), mantendo a sentença da 3ª Vara Federal da Seção Judiciária do Acre que absolveu um denunciado de condenação pelo desmatamento de vinte e nove hectares e dois ares de floresta amazônica no interior do Projeto de Assentamento Agroextrativista Porto Dias, no município de Acrelândia/AC, sem autorização por parte do órgão ambiental competente.

Em suas razões, o MPF alegou haver provas suficientes de materialidade para a condenação do acusado e reforçou que “não deve prevalecer o fundamento utilizado pelo magistrado de que, sendo a área desmatada muito inferior ao módulo fiscal (100 ha por se tratar do município de Acrelândia/AC), o desmatamento não está albergado pela inexigibilidade de conduta diversa e pelo estado de necessidade, uma vez que a floresta amazônica integra o patrimônio nacional e goza de especial proteção das instituições públicas”.

O relator, juiz federal convocado Guilherme Mendonça Doehler, destacou a prática do delito absolvido que consta no art. 50-A da Lei nº 9.605/1998 que diz: “Desmatar, explorar economicamente ou degradar floresta, plantada ou nativa, em terras de domínio público ou devolutas, sem autorização do órgão competente: Pena – reclusão, de 02 (dois) a 04 (quatro) anos, e multa”. Contudo, o magistrado ressaltou parte da referida Lei que estabelece não ser crime a conduta praticada quando é necessário o sustento imediato pessoal do agente ou da sua família (§ 1º, art. 50-A).

Além disso, o relator salientou que, conforme consta do depoimento do acusado do delito, ele “desmatou a área descrita com o fim de plantar cultura de subsistência e criar gado para fins de arrendamento” e que “apesar da comprovação da materialidade e da autoria, a absolvição deve ser mantida, pois não houve a comprovação do dolo, consistente em degradar o bem jurídico tutelado, no caso, a floresta”.

A decisão foi unânime.

Processo nº: 0009204-07.2012.4.01.3000/AC

Data de julgamento: 16/08/2016
Data de publicação: 24/08/2016

Fonte: TRF1, 12/09/2016

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Confira a íntegra da decisão:

 

Autos: 9204-07.2012.4.01.3000/3ª Vara

Classe: 13108 – Crimes Ambientais

Autor: Ministério Público Federal

Réu: Aquiles Soares Pedroso

SENTENÇA

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O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, lastreado em inquérito policial, ofereceu denúncia em desfavor de AQUILES SOARES PEDROSO, qualificado, pela prática do crime previsto no art. 50-A da Lei 9.605/98.

2. Narrou a denúncia, em síntese, que, no período compreendido entre 2.3.2006 e 26.7.2009, o réu desmatou 29,2 hectares de mata nativa do bioma amazônico, no interior do Projeto de Assentamento Agroextrativista Porto Dias, área de propriedade da União, sem autorização do órgão ambiental competente.

3. Constam dos autos: auto de infração ambiental, fls. 61; laudo de perícia criminal, fls. 92/99; e certidão de antecedentes criminais, fls. 439.

4. A denúncia foi recebida em 31 de agosto de 2012, fl. 479. O réu apresentou resposta à acusação, fls. 203/13; analisada às fls. 515/19. Realizadas audiências de instrução, fls. 561/3 e 623/8. Não foram requeridas diligências, fls. 630/1.

5 Em alegações finais, por meio de memoriais escritos, fls. 634/8, o Ministério Público Federal, manifestou-se pelo reconhecimento da prescrição relativamente aos desmatamentos ocorridos até 2005 (15,2 hectares), e pela condenação, em concurso material, referente aos desmatamento ocorridos em 2006/2007 (6,5 hectares) e 200872009 (7,5 hectares). 

6. A defesa, por sua vez, pleiteou a absolvição alegando atipicidade material pela aplicação do princípio da insignificância, estado de necessidade, aplicação do art. 50-A da Lei 9.605/98 e inexigibilidade de conduta diversa, fls. 639/45.

7. Relatado. Decido.

II

8. O réu foi autuado pelo desmate de 10 hectares de floresta amazônica, fl. 61. Ao realizar laudo pericial, com base em imagens de satélite, ficou consignado uma área maior desmaiada, sendo: 7,1 ha em 2004 e anos anteriores; 15,2 ha em 2005; 6,5 ha em 2007; e 7,5 ha em 2009.

9. Quanto às áreas desmatadas em 2005 e anos anteriores (7,1 e 15,2 hectares) há que se reconhecer a prescrição da pretensão punitiva estatal, uma vez que, à época, a conduta se subsumiria ao tipo penal previsto no art. 50 da Lei 9.605/98, pois o art. 50- A somente entrou em vigor em 2.3.2006. Assim, considerando que a pena do art. 50 é de três meses a um ano, prescrevendo, portanto, em 2 anos (à época), e que a denúncia foi recebida somente em 31.8.2012, já havia decorrido o prazo prescricional.

10. Assim sendo, resta somente os desmatamentos praticados em 2007 (6,5 hectares) e 2009 (7,5 hectares).

11. Quanto a tais desmatamentos, o réu nega que os tenha efetuado. Admite que realizou desmatamento na sua área, mas somente até 2005, que, após isso, foi multado e parou de utilizar a área, somente se dedicando à coleta de castanha, razão pela qual já teria ocorrido a recuperação da floresta, nos seguintes termos:

Advogado: Esse desmatamento que o senhor alega ter feito, qual foi a data dele?

Réu:Foi 2005.

Advogado: E esse aqui que está mencionando, entre 2006 e 2009?

Réu: Esse eu nem posso falar pró senhor, porque não fui eu que fíz\(sso. Pode ser uma área a par da minha que eles passaram e multaram. (…) h,ão fiz não, só se outro que fez a par da minha área, e o satélite passou e acusou, que passa por riba, né?!

Advogado: Qual foi a data do último desmatamento qiíf o senhor realizou?

Réu: 2005 e 2004 só que eu mexi lá.

 12. A testemunha Elifas Lima de Freitas, responsável pela autuação, afirmou que esteve por três vezes na propriedade do réu, aduzindo que ele assumiu o desmate. Todavia, não foi esclarecido à que época se referia o desmate pelo qual o réu foi autuado.

13. Há fundada dúvida sobre a época em que tal desmate ocorreu. Notadamente por se tratar de constatações feitas por satélite. Há uma peculiaridade na área em questão, por se tratar de projeto agroextrativista, a área é definida por estradas de castanhas e seringa, não havendo uma delimitação precisa da propriedade de cada assentado, o que poderia justificar a alegação do réu de que os desmaies posteriores a 2005 foram feitos por vizinhos.

14. Ainda que se considerasse como de autoria do réu o desmatamento total, em que pese a conduta praticada pelo denunciado, formalmente, subsuma-se ao tipo penal previsto em lei, a adequação da conduta do agente ao modelo abstraio previsto na lei penal faz surgir apenas a tipicidade formal. Conludo, nas palavras de Rogério Greco esse conceito de simples acomodação do comportamento do agente ao tipo não é suficiente para que possamos concluir pela tipicidade penal, uma vez que esta é formada pela conjugação da tipicidade formal (ou legal) com a tipicidade conglobante. (…) Para que se possa falar em tipicidade conglobante é preciso que: a) a conduta do agente seja antinormativa; b) que haja tipicidade material, ou seja, que ocorra um critério material de seleção do bem a ser protegido.1

15. Em seu inlerrogatório judicial o réu, um senhor de 64 anos, aduziu que após ser mullado não efeluou mais desmalamenlo e que a área eslá recuperada, pois não realiza mais qualquer plantio, nem criação de gado. Afirmou que sobrevive da extração de castanha, com a qual obtém uma renda de oito mil reais ao ano. Perguntado o porquê não pediu autorização do IBAMA para o desmaie, responde: “Eh o IBAMA não dá, pra ninguém não dá, e eu não sabia lambem, quando eu enlrei lá não linha negócio de IBAMA, depois que vieram” (mídia de fl. 628).

16. A simplicidade do réu, analfabeto, que atualmenle vive da exlração\de caslanha e de uma aposenladoria do INSS (um salário mínimo), mora no interior da floresta amazônica, com família de cinco pessoas para suslenlar, aliada à quanlidade de desmaie/que não é grande, dão credibilidade à lese de que o desmaie deu-se para prover o suslenlo/ae sua família.

17. Nesta Seccional, é crescente o número de feitos envolvendo questões ambientais com ênfase em pequenas propriedades, projetos de assentamentos e unidades de conservação (parques e reservas extrativistas), nas esferas civil (ações para desconstituição de multas por desmatamento e/ou queimada, suspensão de embargos etc.) e criminal (especialmente processos por desmate e queimada).

18. Esse aumento de ações suscita alguma reflexão. Pode significar aperfeiçoamento da fiscalização ambiental e da persecução penal, simples e louvável aumento da eficiência dos órgãos públicos nas respectivas áreas de atuação. Mas pode, também, ser índice vivaz de circunstâncias que merecem atenção. Explico.

19. Há uma alegação recorrente nas várias ações em debate neste Juízo, que, em síntese, sustenta que o desmate ou queimada ocorreu em razão de estado de necessidade, eis que o assentado, o ocupante da gleba ou da unidade de conservação praticou a ação ilícita (desmate ou queimada) impulsionado por absoluta necessidade de prover a subsistência sua e da família.

20. Essa alegação, repetida em várias e diferentes ações, pode expressar uma defesa genérica e inconsistente de pessoas culpadas que se vêem processadas e sem outra alegação a amparar-lhes a conduta. Mas pode indicar sim uma alegação substantiva e importante. Em alguns feitos neste Juízo, por exemplo, o próprio MPF tem reconhecido o estado de necessidade e pedido, inclusive, o arquivamento prévio, sem oferecer denúncia2; ou solicitado a absolvição em alegações finais3, como no caso dos autos, sob o mesmo fundamento. Em outros, o próprio fiscal da administração ambiental reconhece que sua autuação foi indevida, e que somente o fez para não ser tachado de prevaricador ou parcial.

21. A título de exemplo, é oportuno transcrever o depoimento do analista ambiental Crispim Silva de Souza, prestado nos autos 7295-61.2011.4.01.3000/35 Vara, responsável pela autuação naqueles autos, que afirmou:

Promotor: Em lotes de assentamento, por que as pessoas desmaiam?

Testemunha: Porque a pessoa que mora na zona rural, se ele não desmatar não tem como sobreviver. É por isso que as pessoas desmaiam um pouquinho, pra plantar o milho, o arroz e o feijão, porque, eles sobrevivem daquilo.

Promotor: É da essência do projeto de assentamento que a pessoa desmate para sobreviver?

Testemunha: É isso.

Promotor: No caso, a dona Maria se encaixa nessa situação?

Testemunha: É, infelizmente a lei não permite desmatar sem autorização, e em assentamento o documento não sai a tempo ou a pessoa não consegue autorização.

Promotor: Então ela desmata ou sai do assentamento?

Testemunha: Ou sai do assentamento.

(…)

Juiz: Senhor Crispim, o senhor fez esse laudo quando o senhor estava à disposição do IBAMA?

Testemunha: É. É isso, agente participava de várias operações.

Juiz: E nessa situação o senhor se deparou com um lote, onde foi feito o desmate, e o senhor considera que esse desmate estava justificado?

Testemunha: Doutor, na verdade, naquela situação não era só ela, tem centenas (…)

Juiz: E o senhor concorda que aquele desmate seria uma condição para que ela mantivesse uma agricultura de subsistência?

Testemunha: Com certeza.

Juiz: E, apesar de o senhor pensar assim, o senhor autuou.

Testemunha: Porque na verdade é uma equipe. Eu não poderia decidir. Outra coisa, a lei diz que a gente tem que usar o bom senso, só que como tem lote que as pessoas derrubam mais, outras derrubam menos, mesmo que a gente achando que aquela pessoa que derrubou menos é questão de sobrevivência, a questão é que se não fizer gera um conflito até mesmo entre os produtores e a equipe de fiscalização: porque multou fulano e não multou beltrano? Ele é melhor do que eu?

22. Aquelas manifestações processuais do MPF ou do IBAMA em vários processos são indicativas de que talvez estejamos defronte a algo mais do que a mera prática de delitos ambientais cometidos por pessoas criminosas. Indica a possibilidade de que o Estado, por vários de seus órgãos, está criando condições que pressionam o posseiro a praticar o delito ambiental enquanto consequência de uma política ambiental mais profunda que divide de modo desigual o ónus pela preservação ambiental, impondo ao hipossuficiente o gravame maior.

23. Aqueles indícios são robustecidos por outras ações processuais, já r)|ão mais isoladas, mas coletivas e públicas. É exemplo a Ação Civil Pública 7109-04.2012.4.01.3000, em trâmite nesta Seccional, junto à 29 Vara, promovida justamente pelo MPF. Esta ação se fundamenta em vários dados técnicos e estudos e em decisão proferida pelo TGu que reconheceu o INCRA como um dos grandes responsáveis pelo aumento de desmatamento na Amazónia ao implantar projetos de assentamentos sem prévia licença ambiental e sem maior preocupação e planejamento com a proteção ao meio ambiente.

24. Sobredita ação enfatiza que se trata de assentamento de pessoas hipossuficientes, sem maior instrução, que são assentadas sem orientação quanto aos limites de desmate e, o mais grave, sem orientação técnica que proporcione meios de subsistência, nos limites impostos pela legislação ambiental. Entre outras importantes assertivas, diz que

Também deveria o INCRA investir em auxílio material e técnico aos produtores rurais assentados, a fim de que a atividade realizada por eles seja sustentável desde a ótica ambiental. Isso não é feito. O INCRA simplesmente deixa cada assentado sujeito à própria sorte, com a incumbência individual de respeito às normas ambientais.

25. Logo a seguir, conclui:

No Acre, as consequências imediatas dessa omissão e descaso do INCRA são, por um lado, o incremento do desmatamento nos projetos de assentamento e, por outro lado, a responsabilização individual criminal dos trabalhadores assentados, que são frequentemente acusados, inclusive por este órgão ministerial, de crimes ambientais4.

26. As afirmações do MPF são de extrema importância. Se verdadeiras, há fortes indícios de que o Poder Público, por vários de seus órgãos, criam condições para o descumprimento da legislação ambiental ao assentar posseiros em projetos de assentamentos ou unidades de conservação em condições fálicas que os impelem à prática de delitos ambientais.

27. Discorremos sobre o aumento de ações que têm como causa de pedir a violação de normas ambientais, e enfatizamos que em várias ações há manifestações do próprio órgão público (MPF, IBAMA) reconhecendo a inexigibilidade de conduta diversa do suposto infrator. Acrescentamos que há ação promovida pelo MPF na qual se admite que assentados e ocupantes de projetos de assentamentos e unidades de conservação não teriam condições fáticas para cumprirem a legislação ambiental. Esse contexto, por si, já permite uma nova perspectiva acerca do aumento de ações nesta Seccional por inobservância da lei.

28. A dificuldade, ou mesmo impossibilidade, de o colono sobreviver sejm efetuar desmatamentos é reconhecida, inclusive, por profissionais que trabalham na área, como exemplo, cita-se a inquirição da testemunha Dener Hollanda Fileni, perito criminal federal e engenheiro agrônomo, ouvido nos autos 8848-12.2012.4.01.3000/3- Vara:

Juiz: Gostaria de lhe fazer umas perguntas de interesse para a causa, em face da quantidade de processos que envolvem esta matéria nesta Seção Judiciária. A pergunta inicial que eu lhe faço é a seguinte: ao longo do tempo o homem da Amazónia tinha uma relação com a floresta em que ele sobrevivia retirando o que a floresta tinha para oferecer; o tempo passou, a legislação mudou e esse homem ficou proibido de ter esse relacionamento com a floresta; eu pergunto para o senhor que está no Acre há algum tempo, que conhece nossas características de clima, de solo, se é possível, nesse tipo de situação que o homem hoje vive, com a legislação que nós temos que obriga a 80% de preservação, se é possível ele viver apenas do extrativismo, apenas com essa permissão que as pessoas dos assentamentos possuem?

Testemunha: Essa questão realmente é interessante, ela remete à dificuldade do colono de viver apenas com a retirada extrativista, e realmente de manter 80% da área é uma grande dificuldade, porque como sobrevivem somente com 20% considerando que as áreas são pequenas. Então para atividade de colónia é praticamente inviável que ele viva somente do extrativismo, considerando também a sociedade moderna que a gente vive, com as demandas de educação, saúde, transporte. Então para o colono ter uma condição melhor de vida teria que ter uma produção mais tecnificada, com uso de sistemas de produção mais avançados, comercializando a própria produção, agroindústria, esse tipo de investimento mais técnico, vamos dizer assim.

Juiz: Considerando que o extrativismo pressupõe que se tenha que viver da extração de andiroba, copaíba, castanha, com um mínimo de desmatamento; seria possível se obter uma renda mínima só com esses elementos?

Testemunha: É muito difícil. Logicamente esta questão está voltada um pouco pra questão do tamanho da área disponível, mas considerando que a pessoa mesmo faça o extrativismo ali da área a gente vê que realmente ela pode até vir a ter uma possibilidade de morar em colónia e viver do extrativismo, mas ela não teria um nível de rendimentos que fosse adequando para as necessidades atuais, seria um nível de rendimento muito baixo, talvez com o apoio de alguma ONG ou um subsídio do Estado fosse possível compensar essa atividade rústica extrativista.

Juiz: O módulo rural no Brasil foi calculado em 1964 como sendo 3«100 ha no Acre, em especial Rio Branco, como sendo a unidade mínima que uma família poderia possuir para poder dali extrair o seu sustento, isso veio no Estatuto da Terra fixando esse módulo. Na época se possibilitava desmatar, você tinha 100 ha poderia desmatar 80 Ita, a legislação mudou e isso se inverteu, hoje temos que preservar 80%, mas o modulo rural continuou ser de 100 para a Amazônia e 80 para Rio Branco. Eu te pergunto o seguinte: sem mecanização, sem técnicas modernas de manejo de solo, de enriquecimento, seria possível a gente nesses anos todos diminuir a área disponível e manter a mesma produtividade?

Testemunha: Não, não. Se nós formos ver realmente por essa ótica é impossível. Mantendo praticamente a mesma técnica vamos dizer assim, porque de fato a técnica de produção rural familiar é muito rústica; então se for considerar mantendo essa técnica simples, não seria possível. É possível você ir acrescentando tecnologia, aí sim, às vezes em um hectare é possível, por exemplo, vou citar aqui o exemplo de Holambra no interior de São Paulo que produz flores, a pessoa que tiver meio hectare plantado de flores exporta flores de avião pra Europa e tem uma qualidade de vida excelente. Mas considerando o sistema aqui, caindo para a realidade nossa, não, não de maneira nenhuma.

29. Há mais um importante aspecto a ser considerado.

30. O Estatuto da Terra trouxe o conceito de módulo fiscal5, compreendido como a área mínima que, em cada região do Brasil, se revela como necessária para a subsistência de uma família6. No caso de Rio Branco o módulo fiscal é de 70 ha e nos demais municípios acreanos é de 100 ha7. Ocorre que essas medidas foram estipuladas em 1980, quando a reserva legal era de 20% para a região Amazônica (Lei 4.771/65, art. 16 e parágrafos, com redação da época). Por outras palavras, a partir de estudos diversos, o próprio INCRA estabeleceu como área mínima a partir da qual uma família poderia retirar seu sustento, no Acre, o módulo de 70 ou 100 hectares, pelo que se disponibilizava um total de 56 ha ou 80 ha (se Rio Branco ou outro município) ao assentado enquanto área disponível para cultivo e produção.

31. Desde a década de 80 a reserva legal foi lentamente aumentando, até atingir o percentual de 80%, porém, a despeito do aumento da reserva legal, foi mantido o módulo de 70 ou 100 ha, conforme o caso. Aqui surge uma contradição: se os estudos e pesquisas indicavam que eram necessários 56 ou 80 ha de área cultivável, o aumento da reserva legal, da limitação de desmate só é aceitável se novas pesquisas e estudos indicarem que a área agora disponível, que é exatamente o oposto da área inicialmente cogitada (antes se tinha 80% de área disponível, agora tem-se 80% de limitação), ainda é capaz de possibilitar a subsistência do agricultor assentado.

32. Não se afirma aqui que o módulo fiscal, compreendido como a área mínima da qual se pode extrair o sustento de uma família, seja imutável. Longe disso. Razões várias, como mercado, tecnologia, assistência técnica, novos produtos agrícolas, mudanças climáticas etc. podem sim justificar a redução e/ou adequação do tamanho do módulo. O que se quer pôr em relevo aqui não é isso, mas sim a circunstância de que o próprio INCRA reconhece como módulo fiscal, a área mínima indispensável no Acre para a subsistência de uma família, a área de 70 ou 100 ha. Se essas premissas se mostram plausíveis, então não é correto se exigir que o assentado cumpra a legislação se a própria Administração Fundiária reconhece que área menor de 56 ou 80 ha é insuficiente para a subsistência.

33. No caso concreto, a área desmatada é bem inferior ao módulo fiscal (100 ha, por se tratar de município – Acrelândia/AC), o que demonstra que o desmatamento está albergado pela inexigibilidade de conduta diversa e pelo estado de necessidade.

34. De todo o exposto, segue que a Administração Ambiental não pode mais querer justificar seus atos de fiscalização e imposição de sanções apenas com base na constatação de que houve desmate. Tampouco o Órgão Ministerial pode justificar uma denúncia embasada no mesmo motivo. Deve fazer mais. Deve trazer razões que mostrem que o posseiro de área em unidade de conservação e o assentado no projeto de assentamento têm condições de dali extrair seu sustento com obediência à legislação. Deve mostrar que houve treinamento, esclarecimento de outras atividades económicas rentáveis, que houve fomento, financiamento, crédito, assistência técnica etc. Nesse contexto é lícito se exigir de um homem o cumprimento das regras. Fora disso, tem-se a criminalização de uma conduta para a qual o Estado colaborou para criá-la, não cabendo ao Judiciário, à Polícia, ao Ministério Público o endosso dessa distorção e limitar-se ao processo penal ou cível, à prisão, à mera repressão.

35. Há que se ressaltar que a própria legislação ambiental, descriminaliza a conduta do desmate quando necessária à subsistência do agente e de sua família (art. 50-A, §19, da Lei 9.605/98). Tal fato demonstra que o próprio legislador não pretendia se ocupar de situações em que o dano ambiental foi praticado para salvaguardar a sobrevivência do autor.

36. A Constituição Federal brasileira definiu que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito, que “parte do princípio da dignidade humana, orientando toda a formação do Direito Penal. Qualquer construção típica, cujo conteúdo contrariar ou afrontar a dignidade humana, será materialmente inconstitucional, posto que atentatória ao próprio fundamento da existência de nosso Estado. Cabe ao oc/erador do Direito exercer controle técnico de verificação da constitucionalidade de todo tipo/penal e de toda adequação típica, de acordo com o seu conteúdo. (…) o tipo, abstratamente, pode não ser contrário à Constituição, mas, em determinado caso específico, o enquadramento de uma conduta em sua definição pode revelar-se atentatório ao mandamento constitucional (…) A dignidade humana, assim, orienta o legislador no momento de criar um novo delito e o operador no instante em que vai realizar a atividade de adequação típica. (…) É imperativo do Estado Democrático de Direito a investigação ontológica do tipo incriminador.

37. Nesta senda, crime não é apenas aquilo que o legislador diz sê-lo (conceito formal), uma vez que nenhuma conduta pode, materialmente, ser considerada criminosa se, de algum modo, não colocarem perigo valores fundamentais da sociedade.

38. No caso dos autos, por todo o exposto, verifica-se que, embora a conduta seja formalmente típica, atenta contra o princípio da dignidade da pessoa humana punir o réu. A par disso, frise-se que qualquer pessoa que vivesse na localidade que o acusado mora e possuísse as mesmas condições, tendo que sustentar a família, adotaria a mesma postura, do que se extrai a inexigibilidade de conduta diversa. Ademais a conduta encontra-se albergada pelo art. 50-A, §19, da Lei 9.605/98.

39. Aliado a este fato, nos termos adrede expostos, há dúvida quanto à realização dos desmatamentos em data posterior ao ano de 2005.

DISPOSITIVO

40. Com essas razões, julgo improcedente a denúncia ofertada pelo MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL em face de AQUILES SOARES PEDROSO, absolvendo-o da pratica delituosa que lhe foi imputada, com fundamento no art. 386, inciso VI e VII, do Código de Processo Penal.

41. Sem custas. 

42. Com o trânsito em julgado, feitas as anotações, comunicações de praxe e a baixa respectiva, sejam encaminhados os presentes autos para o arquivo.

43. Publique-se. Registre-se. Intimem/se.

Rio Branco (AC), 19 de dezembro de 20l4.

Jair Araújo Facundes Juiz Federal

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