por Marcos André Bruxel Saes e Pedro Henrique Heschke*
No dia 28/04/2021, o STJ decidiu uma questão que terá repercussão estrondosa por todo o país: em áreas urbanas consolidadas, qual a extensão das faixas não edificáveis às margens de cursos d’água?
O debate vinha balançando a jurisprudência há tempos. Havia duas respostas possíveis: ou prevaleceria a regra prevista na Lei de Parcelamento do Solo Urbano (6.766/79), que institui área não edificável em faixa mínima de 15 metros ao lado de águas correntes ou dormentes; ou prevaleceria a regra do Código Florestal (Lei 12.651/2012), que define faixas não edificáveis de 30 a 500 metros, a depender da largura do corpo hídrico.
O STJ decidiu que prevalece a segunda alternativa. A decisão foi proferida no julgamento do Tema 1.010 dos recursos repetitivos. Isso significa que o teor dessa decisão vinculará a todos os juízes em território nacional, em processos já existentes e nos que forem ajuizados no futuro. Para todos os efeitos, o debate está encerrado.
A tese jurídica resultante do julgamento, conforme enunciada pelo relator, Min. Benedito Gonçalves, foi a seguinte:
“Na vigência do novo Código Florestal (Lei 21.651/2012), a extensão não edificável das faixas marginais de qualquer curso d’água, perene ou intermitente, em trechos caracterizados como área urbana consolidada, deve respeitar o que disciplinado pelo art. 4º, caput, I, “a”, “b”, “c”, “d” e “e”, a fim de garantir a mais ampla proteção ambiental a esses espaços territoriais especialmente protegidos e, por conseguinte, à coletividade.”
O resultado era esperado, considerando os precedentes anteriores do STJ sobre a matéria. E, de fato, a decisão traz alguma segurança jurídica para casos futuros.
De fato, diversos órgãos ambientais locais se debruçavam sobre o problema sem conseguir atingir uma solução definitiva, alguns decidindo que prevaleceria o Código Florestal, e outros decidindo que prevaleceria a Lei de Parcelamento de Solo – que, afinal, é norma especial em se tratando de área urbana, enquanto o Código Florestal é lei geral, aplicável ao país todo.
Por bem ou por mal, a matéria está, pelo menos, decidida (ressalvadas futuras oscilações jurisprudenciais, que não são inéditas nos tribunais brasileiros).
Mas nem tudo são flores. Houve uma omissão essencial do STJ, que deixou de modular os efeitos do julgamento. A tese passa, agora, a ser aplicada indistintamente a todas as situações, passadas ou futuras, mesmo que já consolidadas no tempo.
Isso quer dizer que empreendimentos que foram devidamente aprovados pelos órgãos ambientais com base no entendimento que defendia a prevalência da Lei de Parcelamento de Solo (faixa de 15 metros), agora se veem na detestável posição de terem sido retroativamente declarados irregulares. Basta o ajuizamento de uma ação civil pública, agora balizada pelo julgamento do Tema 1.010, para que venha a ordem judicial de demolição.
Assim, num passe de mágica, quem até o dia 28/04/2021 acreditava que estava em situação de absoluta conformidade com todas as normas ambientais, do dia para a noite se vê declarado descumpridor de norma ambiental, sujeito à possível demolição de seu imóvel.
Esse problema foi levantado, durante a sessão de julgamento, pelo advogado Marcos André Bruxel Saes, subscritor desse artigo, que falava na condição de representante da Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC), que atuava como amicus curiae. Com base nessa observação, o relator chegou a levantar a possibilidade de modular os efeitos do julgamento, para que a decisão passasse a surtir efeitos a partir apenas do trânsito em julgado. Mas os membros da Seção julgadora não acataram a tese, e posteriormente o próprio relator voltou atrás.
A questão é grave e traz muitas consequências, de diversas ordens.
Em primeiro lugar, foi posta em xeque a segurança jurídica: licenças ambientais proferidas com o devido procedimento administrativo, baseadas em entendimento jurídico legítimo (e se não fosse uma controvérsia legítima não haveria razão para que não fosse resolvida pelo STJ) não valem mais a tinta em que foram escritas.
Há, ainda, problemas de isonomia: como a efetiva demolição dos prédios ainda depende do ajuizamento de ações civis públicas individuais, serão afetadas apenas aquelas construções que sejam realmente alvos de ações judiciais. A decisão valerá para uns, mas não para outros.
Isso tudo num cenário onde os tribunais consideram o dano ambiental imprescritível (tema n. 999 da repercussão geral do STF) e não aceitam a existência de fato consumado em matéria ambiental (verbete n. 613 da súmula do STJ). Assim, está plantada a receita para o caos: nenhum decurso temporal pode proteger uma construção devidamente licenciada. Podem passar meses, anos ou décadas: a ameaça da demolição estará sempre pairando.
Assim, embora a decisão tenha caráter de definitividade, ainda vai demorar muito para que suas consequências sejam compreendidas com precisão. Em nome da segurança jurídica, a decisão acabou gerando muito mais insegurança.
Marcos Saes
Pedro Henrique Heschke
*Sócios do Escritório Saes Advogados