“A Quinta Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região deu provimento à apelação interposta pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), contra sentença da 5ª Vara da Seção Judiciária de Rondônia que, nos autos do mandato de segurança impetrado pelo apelado, concedeu a segurança para determinar a liberação de caminhão de sua propriedade, apreendido transportando madeira sem o devido documento de licenciamento para o transporte.
Dentre suas alegações recursais, o Ibama sustenta a legalidade da apreensão do veículo uma vez que a instituição, segundo a legislação ambiental, pode exercer poder de polícia.
Ao analisar o caso, o relator do processo, desembargado federal Souza Prudente, destacou que o TRF1 possui extensa orientação jurisprudencial sobre o assunto, o qual, disse o magistrado, não ser possível encontrar qualquer abusividade no ato praticado pelo Ibama que autorize a liberação do caminhão.
O magistrado ressaltou que a atuação do órgão ambiental, em casos assim, está em consonância com a tutela cautelar prevista na Carta Política Federal, no art. 225, § 1º, VII e respectivo § 3º. Com isso, impõe-se ao poder público, e também à coletividade, o dever de defender e preservar o meio ambiente ecologicamente equilibrado, como bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, para a presente e as futuras gerações.
Destacou ainda ser necessário considerar, também, que interpretações (pró liberação de veículo) terminam por esvaziar (desmoralizar) a atuação do órgão ambiental, que, na grande maioria das vezes, possui absurdas dificuldades de ordem operacional, resultando, como é do conhecimento geral, em menos operações do que o necessário para o efetivo combate às infrações administrativo-ambientais.
Por fim, o desembargador Souza Prudente afirmou que, conforme os termos do Decreto nº 6.514/2008, os bens apreendidos devem ficar sob a guarda do órgão ou entidade responsável pela fiscalização ambiental, podendo, ‘excepcionalmente, ser confiados a fiel depositário, até o julgamento do processo administrativo’, caso em que caberá à Administração, no exercício do seu poder discricionário, definir sobre quem assumirá esse encargo, dentre as opções previstas referido ato normativo.
Diante das considerações, a Turma, deu provimento à apelação, nos termos do voto do relator, para reformar a sentença recorrida denegando a segurança”.
Fonte: TRF1, 03/04/2017 (Processo nº 0011022-55.2013.4.01.4100/RO).
Confira a íntegra da decisão:
APELAÇÃO/REEXAME NECESSÁRIO N. 0011022-55.2013.4.01.4100/RO (d)
Nº Lote: 2017010454 – 3_1 – APELAÇÃO/REEXAME NECESSÁRIO N. 0011022-55.2013.4.01.4100/RO (d) – TR301145
RELATOR : DESEMBARGADOR FEDERAL SOUZA PRUDENTE
APELANTE : INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS
NATURAIS RENOVAVEIS – IBAMA
PROCURADOR : DF00025372 – ADRIANA MAIA VENTURINI
APELADO : ELIOMAR DA SILVA MILLER
ADVOGADO : RO00001949 – FABIO JORGE ANGELO SILVA
REMETENTE : JUIZO FEDERAL DA 5ª VARA – RO
RELATÓRIO
O EXMO. SR. DESEMBARGADOR FEDERAL SOUZA PRUDENTE (RELATOR):
Cuida-se de remessa oficial e de apelação interposta de sentença do Juízo da 5ª Vara Federal da Seção Judiciária do Estado de Rondônia, que, nos autos do mandado de segurança impetrado por Eliomar da Silva Miller contra ato do Superintendente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis – IBAMA, confirmando o deferimento liminar, concedeu a segurança vindicada para determinar a liberação do caminhão discriminado na petição inicial.
Em suas razões recursais, sustenta o IBAMA, em resumo, a legalidade do procedimento fiscalizatório em questão e a proporcionalidade da apreensão do veículo (caminhão), porquanto a referida constrição, para além de qualquer discussão sobre a legalidade do instrumento da infração ambiental, encontra respaldo na legislação ambiental (Leis nºs 9.605/98 e 6.514/08), notadamente quanto ao exercício do poder de polícia. Tece considerações sobre a mitigação do direito de propriedade em casos como o dos autos. Pede, portanto, o provimento recursal com a reforma do julgado (fls. 131/144).
Com contrarrazões, vieram os autos a este egrégio Tribunal, também por força da remessa oficial, manifestando-se a douta Procuradoria Regional da República pelo provimento da remessa e da apelação.
Este é o relatório.
VOTO
O EXMO. SR. DESEMBARGADOR FEDERAL SOUZA PRUDENTE (RELATOR):
Como visto, sustenta o órgão ambiental que a apreensão do veículo de propriedade do impetrante, flagrado na prática de ilícito ambiental correspondente a transporte de madeira desacompanhada de regular documentação, afigura-se legítima, haja vista que praticado à luz das disposições constitucionais, legais e infralegais de regência (CF, arts. 2º, 5º e 225, caput, § 1º, VII, § 3º; Lei nº 9.605/1998, arts. 25, § 4º, 46, parágrafo único, e 72; Decreto nº 6.514/2008, arts. 3º, 47, § 1º, 105, 106; e Instrução Normativa nº 19/2014-IBAMA).
O juízo sentenciante concedeu a segurança vindicada por entender ilegal a apreensão feita pelo IBAMA.
Pois bem, antes da incursão no mérito, faz-se necessário consignar que este egrégio Tribunal possui maciça orientação jurisprudencial, composta inclusive de julgados de minha relatoria, no mesmo sentido do quanto decidido na sentença apelada.
A despeito disso, em nova reflexão sobre o tema, notadamente em vista do disposto nos arts. 25, caput, e 72, IV, c/c o art. 70, caput, da Lei n. 9.605/98, forçoso constatar que, em atos como o de que agora se cuida, não é possível encontrar qualquer abusividade, o que, por certo, não autoriza a concessão da segurança almejada.
Realmente, a atuação do órgão ambiental, em casos assim, está em consonância com a tutela cautelar prevista na Carta Política Federal, no art. 225, § 1º, VII e respectivo § 3º. Com isso, impõe-se ao poder público, e também à coletividade, o dever de defender e preservar o meio ambiente ecologicamente equilibrado, como bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, para a presente e as futuras gerações.
Importa chamar a atenção, pois, para o papel desta Corte no que diz respeito à defesa e preservação do “meio ambiente ecologicamente equilibrado”. Com efeito, qualquer controvérsia que envolva a fiscalização do bioma correspondente à Amazônia Legal – da qual também fazem parte dois importantes e extensos estados da federação (Amazonas e Pará) e de onde se origina a grande parte das demandas ambientais em trâmite neste Tribunal – termina por ser trazida à análise deste egrégio Tribunal, fazendo com que qualquer de suas decisões acerca do meio ambiente assuma considerável amplitude, no contexto ecológico da biodiversidade global.
Só para que se tenha ideia da responsabilidade desta Corte em relação à efetividade da norma ambiental e sua correspondente proteção ao meio ambiente, veja-se a seguinte notícia extraída da página virtual do IBAMA na internet:
“Belém (07/9/2015) – Operação realizada pelo Ibama no oeste do Pará resultou na apreensão de 6.561 m³ de madeira em tora e 2.026 m³ de madeira serrada. O volume equivale a cerca de 300 caminhões carregados. Foram aplicados 21 autos de infração, totalizando R$ 4,2 milhões em multas. A Madeireira Iller LTDA foi autuada nove vezes, com R$ 1,8 milhão em multas, sob acusação de ter em depósito madeira sem licença, apresentar informações falsas aos sistemas oficiais de controle florestal e criar obstáculo para a atividade de fiscalização ambiental.
Outras sete empresas e proprietários foram autuados por armazenar, comercializar e transportar madeira sem licença, entre outros crimes. O objetivo da operação, que recebeu o nome Manilkara (gênero da maçaranduba), foi fiscalizar madeireiras suspeitas de atuar ilegalmente da região do rio Curuatinga e do assentamento Corta Corda, na região da Rodovia Curuá-Una, em Santarém.
Além do valor das multas, o superintendente do Ibama no Pará, Alex Lacerda, destacou a ‘descapitalização dos infratores, que tiveram mais de 8.500 m³ de madeiras de alto valor apreendidas, e principalmente a retirada do mercado de mais de 15.700 m³ em créditos, que impedirão a derrubada de aproximadamente 1.100 hectares de floresta’. ‘Esse é o resultado perseguido pelo Ibama: evitar novos danos.’
Parte da madeira apreendida foi doada para o 8º Batalhão de Engenharia de Construção do Exército e para a Defesa Civil das cidades de Santarém e
Monte Alegre. A operação, realizada no fim de agosto, foi resultado de ação integrada da Superintendência no Pará e da Gerência Executiva em Santarém com apoio da Coordenação de Operações de Fiscalização do Ibama.
Isaac Lôbo
Assessoria de Comunicação/Ibama”[1]
O trecho de doutrina abaixo bem reporta essa circunstância, veja-se:
A quantidade de bens apreendidos está diretamente relacionada a áreas onde tem maior ocorrência de infrações relacionadas ao desmatamento e, por conseguinte, ocorre maior esforço de fiscalização para combater essas infrações. Contudo, há um destaque para o estado de Rondônia que se sobrepõe aos demais estados amazônicos no valor das apreensões. Isso se deve a uma estratégia de fiscalização em determinada época para coibir o transporte ilegal de madeira num gargalo rodoviário e que resultava na apreensão dos caminhões, cuja carga apresentava irregularidades. Como cada caminhão tem elevado valor de mercado, o grande número de apreensões explica os quase R$ 60.000.000,00 em apreensões. No decorrer do tempo, os infratores criaram novas formas de burlar a fiscalização, mudando a rota, fraudando documentos para legalizar a madeira ou, interpondo decisões judiciais que lhes assegurava a posse dos bens apreendidos. Além disso, a maior parte dos caminhões e cargas de madeira eram confiadas ao infrator como fiel depositário o que minimizou o efeito dissuasório. [2]
Por essa razão, é de fundamental importância que as respectivas decisões tenham como pano de fundo o efetivo amparo e especial proteção ao meio ambiente, especificamente no que diz respeito a essa extensa faixa de floresta do território brasileiro. Vale lembrar que a agenda ambiental assumiu maior relevância na medida em que as taxas de remoção da cobertura vegetal atingiu níveis preocupantes, somadas à pressão da sociedade brasileira e internacional, que exigem dos governantes efetivo empenho na resolução do problema.
Assim sendo, é necessário que a orientação estabelecida a partir da jurisprudência deste Tribunal venha a representar firme e verdadeiro desestímulo à prática de atos atentatórios à natureza, firmando sua contribuição no sentido de refrear a escala ascendente de degradação do meio ambiente.
Sobre esse aspecto, cabe, mutatis mutandis, a transcrição do seguinte excerto, que trata da denominada “teoria econômica do crime”[3]:
“Nossa estratégia é ligar as multas impostas e o gasto do governo com controle ambiental ao comportamento subsequente de cumprimento da lei por parte dos agentes econômicos. A principal variável explicativa empregada neste trabalho consiste no valor (magnitude) das multas lavradas, que possui um efeito específico (sobre o estado multado) e um efeito spillover (sobre estados vizinhos). Isso decorre da reputação do regulador: uma multa aplicada sinaliza de forma crível a disposição da autoridade ambiental em aplicar multas em outros estados, amplificando o impacto desse tipo de sanção.
(…).
A história do regulador em aplicar e garantir a lei é a principal fonte de informação para as firmas. Então, a firma observa a história do regulador em aplicar sanções sobre ela e sobre suas vizinhas. Quando a firma percebe que a autoridade ambiental faz cumprir a lei, isto é, aplica multas e demais sanções sobre ela e em firmas da mesma região ou localidade, ela ajusta para cima suas expectativas quanto à probabilidade dela ser descoberta e punida (Shimshack & Ward, 2005; Sah, 1991)”[4]
Não se afigura razoável que a Administração ambiental promova a adequada aplicação da lei, na força determinante do comando constitucional da norma-matriz do artigo 225, caput, do texto magno, com a apreensão dos instrumentos das infrações e os agentes do Poder Judiciário, em excepcional exercício hermenêutico, venha a desmerecê-la no cumprimento da legislação pertinente, em clara e perversa sinalização aos agentes infratores para a continuidade da degradação ambiental, na espécie.
Ressalte-se que a política pública predominante refere-se a ações de fiscalização, intensificadas a partir de 2004 em razão da implantação do denominado “Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal – PPCDAM”[5], elaborado pelo Grupo Permanente de Trabalho Interministerial composto inicialmente por 13 (treze) ministérios, e nele foram relacionadas as ações e as estratégicas organizadas em quatro subgrupos: ordenamento fundiário e territorial, monitoramento e controle, fomento a atividades produtivas e sustentáveis e, infraestrutura.
Desse modo, torna-se necessário firmar entendimento jurisprudencial no sentido de que, estando formalmente adequada e com amparo legal, o Judiciário chancele a atuação administrativa no combate às infrações ambientais, em particular aquelas que se valem de veículos automotores para a respectiva concretização.
A exortação abaixo, empreendida na ementa de julgado do egrégio Superior Tribunal de Justiça[6], serve também, mutatis mutandis, para o próprio Poder Judiciário. Confira-se:
“A criação de Unidades de Conservação não é um fim em si mesmo, vinculada que se encontra a claros objetivos constitucionais e legais de proteção da Natureza. Por isso, em nada resolve, freia ou mitiga a crise da biodiversidade, diretamente associada à insustentável e veloz destruição de habitat natural, se não vier acompanhada do compromisso estatal de, sincera e eficazmente, zelar pela sua integridade físico-ecológica e providenciar os meios para sua gestão técnica, transparente e democrática. A ser diferente, nada além de um sistema de áreas protegidas de papel ou de fachada existirá, espaços de ninguém, onde a omissão das autoridades é compreendida pelos degradadores de plantão como autorização implícita para o desmatamento, a exploração predatória e a ocupação ilícita”
Pois bem, tem-se como cerne da controvérsia a interpretação que vem realizando a primeira instância da Justiça Federal da Primeira Região, e também esta egrégia Corte, acerca do art. 25, § 4º, da Lei n. 9.605/1998, com a seguinte redação:
Art. 25. Verificada a infração, serão apreendidos seus produtos e instrumentos, lavrando-se os respectivos autos.
(…)
§ 4º Os instrumentos utilizados na prática da infração serão vendidos, garantida a sua descaracterização por meio da reciclagem.
Em relação a tanto, assim consta do julgado:
“o art. 25, § 4º, da Lei 9.605/98 é explícito ao determinar a venda após a descaracterização do instrumento utilizado na prática da infração ambiental. Ocorre que, se o dispositivo faculta descaracterização do objeto, ele, obviamente, por forma e substância, originariamente destina-se apenas a fins ilícitos (…).
“Por outro lado, as penalidades previstas no art. 72, da mesma Lei 9.605/98, por expressa disposição de seu parágrafo sexto, submete a destruição a apreensão previstas em seu caput ao disposto no comentado artigo 25, assim estendendo àquele a interpretação de que somente devem ser apreendidos ou destruídos os objetos utilizáveis, exclusivamente, para fins ilícitos, desde que inservíveis para atividades lícitas depois de descaracterizados”
Ora, não se pode perder de vista a situação de constante ataque em que se encontra o bioma amazônico. Nesse sentido, assume especial relevo o questionamento sobre que interpretação deve ser dirigida ao referido dispositivo legal, haja vista que é a partir da resposta a essa indagação que se terá maior ou menor estímulo ao desmatamento e à consequente degradação ambiental.
Ressalte-se que um dos propósitos da medida administrativa da apreensão é precisamente traduzida nos termos seguintes:
“é o caráter preventivo e acautelar, pois visa impedir que ocorram novas infrações ambientais ou que a mesma continue a ser realizada. Também visa garantir ou facilitar a recuperação do dano ambiental causado e, por último, garantir o resultado prático do processo administrativo (BRASIL, 2008; TRENNEPOHL, 2009). Nesse caso, quando se apreende um trator que está sendo utilizado para extrair madeira ilegalmente da floresta, tal apreensão visa assegurar que o trator não venha a ser utilizado para continuar com a extração e perpetuar o dano ambiental. É uma forma de desprover o infrator de meios para continuar com a prática ilícita. A madeira que venha a ser apreendida é também uma forma de cessar o possível lucro com a sua venda e gera prejuízos ao infrator, pois o mesmo investiu capital na sua extração com o pagamento de trabalhadores, combustível, entre outros.[7]
Aliás, essa perspectiva doutrinária corresponde também àquela adotada pelo legislador ambiental, conforme se constata da redação do § 1º do art. 101 do decreto regulamentador da LCA, nestes termos: “As medidas de que trata este artigo [entre as quais a apreensão] têm por objetivo prevenir a ocorrência de novas infrações, resguardar a recuperação ambiental e garantir o resultado prático do processo administrativo”.
Pois bem, importa destacar que esse olhar ampliado não deve ser somente para o ordenamento jurídico, mas, afinal, para a realidade que circunda a aplicação das normas ambientais, notadamente em se considerando que o meio ambiente foi alçado ao status de direito fundamental na Carta Política de 1988.
Nesse sentido, a doutrina tem afirmado que, para “efetivamente implantar um Estado Democrático de Direito, o jurista tem que se ater à realidade que envolve a norma posta, aos fatos juridicamente relevantes, não podendo separar o ser do dever-ser. A norma não se resume ao seu texto. Ela só estará pronta e acabada após um processo concretizador, em que levadas em conta as peculiaridades do caso e a realidade que o envolve”.[8]
Diante de tanto, importa indagar se a interpretação que tem servido de suporte à liberação do instrumento da infração ambiental (caminhões, camionetes, barcos, balsas, etc.) está em consonância com a Constituição Federal, ainda mais quando se constata que é reiterado, como visto acima, o desmatamento e o transporte ilegal de produtos florestais.
Nesse passo, colha-se a seguinte ponderação doutrinária:
“Fazer uma interpretação meramente dogmática do artigo 25, § 4º, da Lei nº 9.605/98, máxime quando se trata de veículos apreendidos no bioma amazônico, significa expurgar totalmente a norma da realidade que a cerca. Representa um apego positivista desarrazoado ao texto da norma, desvinculando-a da intenção da norma maior que lhe confere validade (art. 225, CF/88), que é o de proteger o direito fundamental a um meio ambiente ecologicamente equilibrado.[9]
Robert Alexy é quem sustenta que os direitos constitucionais são direitos prima facie, é dizer, direitos fundamentados em princípios, resultando daí que a aplicação do direito deve ser mais do que a mera subsunção de um caso a uma regra:
“En la determinación tanto de las condiciones fácticas de realización como de las jurídicas, el derecho constitucional tiene uma fuerza por sí mismo. Esta es la razón para concebir a los derechos constitucionales como derechos prima facie, esto es, como derechos basados em princípios. Si seguimos esta propuesta, la aplicacíon de um derecho es algo más que la mera subsunción de um caso bajo una regla”[10]
Com essa perspectiva, comparece perfeitamente aplicável ao presente caso o princípio do in dúbio pro natura/ambiente, segundo o qual, na existência de dúvida quanto à melhor interpretação a se empreender, deve-se optar por aquela que represente maior e mais efetiva proteção ao meio ambiente.
O egrégio Superior Tribunal de Justiça possui precedente que bem concretiza a aplicação desse princípio, conforme se constata da seguinte transcrição:
“(…) incumbe ao juiz, diante das normas de Direito Ambiental – recheadas que são de conteúdo ético intergeracional atrelado às presentes e futuras gerações –, levar em conta o comando do art. 5º da LINDB, segundo o qual, ao se aplicar a lei, deve-se atender ‘aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum’, cujo corolário é a constatação de que, em caso de dúvida ou outra anomalia técnico-redacional, a norma ambiental demanda interpretação e integração de acordo com o princípio hermenêutico in dubio pro natura, haja vista que toda a legislação de amparo dos sujeitos vulneráveis e dos interesses difusos e coletivos há sempre de ser compreendida da maneira que lhes seja mais proveitosa e melhor possa viabilizar, na perspectiva dos resultados práticos, a prestação jurisdicional e a ratio essendi da norma”
(REsp 1.328.753-MG, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 28/5/2013, Informativo nº 0526)
Vê-se, portanto, que o objetivo maior do intérprete infralegal é o de levar a cabo a “vontade da Constituição”, em detrimento de interpretação pura e simples do texto literal da norma. Desconsiderar a realidade circundante quando da análise do texto normativo, para determinar, mediante interpretação lógico-dedutiva, a restituição de veículos automotores apreendidos pela autoridade ambiental, não parece ser a solução que melhor se adéqua aos ditames constitucionais, notadamente porque se sabe que tais instrumentos são reiteradamente utilizados para a prática de infrações.
Acerca de tanto, comparece pertinente a ponderação empreendida pela Gerência Executiva do IBAMA em JI-PARANÁ/RO lançada nos autos da Apelação nº 3851-3.2008.4.01-4101/RO, nestes termos:
“(…) não se pode cair no equívoco, ou ingenuidade, de ter-se tais instrumentos (bem: caminhonete, balsas, tratores, embarcações, etc.) como apenas eventual ou ocasionalmente utilizados em infrações ambientais, quando se sabe que o Estado do Pará possui o maior índice do país de degradação do meio ambiente decorrente de prática de infrações ambientais contínuas, que exigem todo um aparelho instrumental para consumação. A verdade é que enquanto não flagrados e apreendidos os instrumentos do crime, seu uso ocorre diuturnamente, à solta. O flagrante muitas vezes ocorre quando o infrator já degradava o meio ambiente continuadamente (dias, meses), valendo-se da omissão do poder público (falta de fiscalização, estrutura, etc.) e da certeza da impunidade. Daí a questão pertinente à apreensão de bens em prática de crimes ambientais merecer análise contextual, sob pena de o Estado agir como coresponsável em tais práticas, estimulando com sua ação à prática desenfreada de delitos contra o meio ambiente. A liberação e bens em caso como tal implica em renovação da atividade depredatória, criando a forte sensação social de impunidade” (fl. 220, sem grifos no original).
Necessário considerar, também, que tais interpretações (pró liberação de veículo) terminam por esvaziar (desmoralizar) a atuação do órgão ambiental, que, na grande maioria das vezes, possui absurdas dificuldades de ordem operacional, resultando, como é do conhecimento geral, em menos operações do que o necessário para o efetivo combate às infrações administrativo-ambientais.
Cabe verificar detidamente o argumento em favor da liberação do instrumento (veículo) da infração ambiental, qual seja, para que seja possível a apreensão é necessário que o veículo possua características que o identifique como de uso específico e exclusivo para a atividade ilícita.
A mens legis em relação ao § 4º do art. 25 da Lei nº 9.605/1998 não foi, em absoluto, a de promover a apreensão de veículos utilizados reiterada e exclusivamente para a prática de delito/infração ambiental, isso, por si só, representaria pueril afronta aos princípios da precaução e da prevenção.
Em verdade, o que pretendeu o legislador foi simplesmente punir a infração ambiental, adotando, para isso, a apreensão do instrumento utilizado pelo infrator, visando inibir o dano ao meio ambiente equilibrado. Nesse sentido, não há dúvida de que se a infração refere-se ao transporte de madeira sem o devido licenciamento, e se o infrator, para tanto, utilizou-se de um caminhão, por certo que esse veículo constitui-se em efetivo instrumento para a concretização do fim ilícito, assim como a rede usada pelo pescador em crime de pesca ilegal.
Esse entendimento está claramente de acordo com o disposto no inciso IV do art. 72 da referida lei, quando faz referência a “veículos de qualquer natureza utilizados na infração”.
O art. 102 do Decreto 6.514/2008 também assim estabelece: “veículos de qualquer natureza referidos no inciso IV do art. 72 da lei nº 9.605, de 1998, serão objeto da apreensão de que trata o inciso I do art. 101”. Esse art. 101, listando as medidas administrativas que poderão ser adotadas pelo agente autuante uma vez constatada a infração ambiental, já no primeiro inciso, prevê a infração.
Nesse sentido, é possível afirmar que a apreensão do veículo deve ocorrer não só por que foi utilizado reiteradas vezes e exclusivamente em infração ambiental, mas sempre que flagrado, ainda que em uso eventualmente indevido, na prática de infração ambiental.
Assim, ensina Curt Trennepohl: “A Lei nº 9.605/98 estabelece a obrigatoriedade da apreensão dos instrumentos em seu art. 25 ao dispor que serão apreendidos e não que poderão se apreendidos. Portanto, a norma não deixa espaço para a discricionariedade do agente público no que se refere à apreensão”.[11]
Em igual sentido, colha-se este outro trecho de doutrina:
“Importante destacar que o legislador não criou distinções entre os instrumentos do crime ambiental, de modo que não cabe ao interprete fazê-lo. Assim, veículos, maquinário, ferramentas, armas de fogo, tudo terá o mesmo destino. Não exigiu a lei que os instrumentos sejam habitualmente empregados na prática de crime, bastando uma única utilização e sua relação com o resultado (consumado ou tentado) da infração”[12]
Resulta claro, portanto, que é irrelevante, para fins de apreensão veicular – como forma de sanção em face de infração administrativoambiental –, qualquer discussão sobre a pretensa ilicitude do bem. Em outros termos, flagrado o veículo no cometimento de infração administrativo-ambiental, comparece indeclinável a respectiva apreensão, ainda que em caráter cautelar.
Sobre o tema, confira-se o seguinte excerto de doutrina[13]:
“(…) a apreensão de bem envolvido na prática de infração administrativa ambiental constitui uma imposição ao fiscal autuante que, no momento da lavratura do auto de infração, não possui qualquer discricionariedade para optar pela não apreensão. Quanto a isso, a legislação aplicável é evidente e não dá margem a dúvida.
E não poderia ser de outra forma, mesmo porque, quando do exercício do ato fiscalizatório, o fiscal não detém qualquer informação válida ou elemento seguro para entender que, no caso concreto, o instrumento, veículo ou produto da infração não deverá ser objeto de perdimento. Ou seja, sem a instrução processual que seguirá à autuação, o fiscal não terá segurança jurídica para deixar de apreender o bem, pois não caberá a ele decidir sobre a aplicação futura da penalidade de perdimento. E, deixando-se de fazer a apreensão, o perdimento posterior restará totalmente prejudicado.
Após a necessária apreensão, deve tramitar o processo administrativo, respeitando-se o devido processo legal, apreciando-se as razões apresentadas pelo autuado e/ou por eventuais terceiros prejudicados. No curso de tal instrução, e restando-se confirmada a infração ambiental, à autoridade julgadora caberá aplicar a regra geral de perdimento dos bens apreendidos, como sanção resultante da apreensão anterior”
Pode-se afirmar, a partir desse excerto, que a apreensão é apenas a primeira providência administrativo-ambiental, cabendo ainda o desenrolar do processo administrativo para a concretização da medida, que se convola em perdimento do bem, seguido de sua destinação (última fase).
Sobre a questão, veja-se a seguinte ementa de julgado do egrégio Tribunal Regional Federal da 4ª Região, in verbis:
PROCESSO PENAL. CRIME AMBIENTAL. APREENSÃO DE VEÍCULO (AUTOMÓVEL). RESTITUIÇÃO. CPP, ARTIGO 6º, INCISO II. LEI 9.605/98, ARTIGOS 34, § ÚNICO, INCISO III E 70, INCISO IV. O ato de transportar crustáceos irregularmente em veículo pode configurar duas espécies de ilícitos, um penal e outro administrativo (Lei 9.605/98, artigos 34, parágrafo único, inciso III e 70). A apreensão na esfera penal só se justifica se o veículo foi preparado para a prática delituosa, por exemplo, com fundo falso. Inexistindo qualquer circunstância especial que torne o bem instrumento do crime, a apreensão deverá limitar-se à esfera administrativa (Lei 9.605/98, artigo 70, inciso IV).
(TRF4, AMS 2000.04.01.071991-0, SÉTIMA TURMA, Relator VLADIMIR PASSOS DE FREITAS, DJ 13/03/2002), não há grifos no original.
Cabe, nesse passo, deixar clara, na lição extraída da doutrina[14], a distinção entre apreensão para fins penais e apreensão de natureza administrativa, nestes termos:
“(…) a lei penal geral (art. 91, II, “a”) determina que somente determinados instrumentos do crime devem ser destruídos (quando forem objetos de porte, detenção ou fabricação ilícita), a lei ambiental penal não diferencia os instrumentos do crime ambiental, ou seja, não traz qualquer exceção à regra de perdimento, de modo que qualquer instrumento utilizado para a prática de crime contra o ambiente, seja de origem, uso ou posse lícitos ou não, deverá ser utilizado pela administração, doado ou vendido. Trata-se de evidente exemplo de preponderância da lei especial e posterior sobre a lei geral e anterior.
A ementa abaixo bem distingue o reflexo da apreensão para o âmbito penal e administrativo:
PENAL. RESTITUIÇÃO DE VEÍCULO APREENDIDO. INSTRUMENTO DO CRIME. CONTRABANDO. Se o bem apreendido como instrumento do crime – veículo utilizado no transporte de mercadorias introduzidas irregularmente no país – não corresponde a coisa “cujo fabrico, alienação, uso, porte ou detenção, por si só, constitua fato ilícito” (artigo 91, II, “a”, do Código Penal), não se justifica a sua apreensão para garantir eventual perdimento, na esfera penal. Já submetido o veículo a exame pericial, a manutenção da apreensão também não se justifica no interesse da instrução criminal (artigo 118 do Código de Processo Penal). Não havendo dúvida acerca da propriedade do requerente (artigo 120 do Código de Processo Penal), cabe a restituição no âmbito penal, ressalvada a esfera administrativa.
(TRF4, ACR 5005982-43.2015.404.7110, SÉTIMA TURMA, Relator MÁRCIO ANTÔNIO ROCHA, juntado aos autos em 18/08/2016)
Não há dúvida, portanto, de que não foi a intenção do legislador, pelo menos nesse primeiro momento da infração ambiental, perquirir sobre a licitude ou não do bem utilizado como instrumento do dano ao meio ambiente, até pelo fato de que o infrator, no prosseguimento do procedimento administrativo – no qual haverá
a imposição de perdimento e destinação do bem – terá, ex lege, oportunidade do pleno exercício de defesa.
O entendimento acima desenvolvido encontra conforto na jurisprudência do egrégio Tribunal Regional da 4ª Região, conforme se constata das seguintes ementas:
ADMINISTRATIVO. AMBIENTAL. LEGALIDADE DA MULTA. APREENSÃO DE VEÍCULO. REGULARIDADE. MANUTENÇÃO DA SENTENÇA. Havendo disposição legal expressa que autoriza a apreensão de equipamentos, veículos ou produtos utilizados/obtidos na infração ambiental, e previsão constitucional que estipula a competência comum dos três entes federativos para promover a proteção do meio ambiente e Lei Complementar que define a atuação supletiva e subsidiária dos entes no exercício do poder de polícia ambiental e na atribuição comum de fiscalização, não vislumbro ilegalidade na atuação do IBAMA ao apreender o veículo do apelante, pois agiu nos estritos limites do art. 72, IV, da Lei 9.605/98 e nos artigos 3º, IV, 14 e 105 do Decreto nº 6.514/08.
(TRF4, AC 5001525-14.2014.404.7106, TERCEIRA TURMA, Relator SÉRGIO RENATO TEJADA GARCIA, juntado aos autos em 29/06/2016);
ADMINISTRATIVO. AMBIENTAL MANDADO DE SEGURANÇA. TRANSPORTE DE MADEIRAS. 1. Os atos administrativos gozam de uma presunção de legalidade e legitimidade, que só pode ser afastada mediante prova contrária. 2. Caracterizada a infração ambiental, a regra é a apreensão do produto, subproduto, instrumento ou veículo utilizado na sua prática, como medida que visa a resguardar o meio ambiente. 3. A fiscalização do IBAMA constatou divergência nos produtos informados pelos documentos que acompanhavam a carga de madeira. 4. Apelação improvida. (TRF4, AC 5015953-58.2010.404.7100, QUARTA TURMA, Relator LUÍS ALBERTO D’AZEVEDO AURVALLE, juntado aos autos em 11/07/2012)
Está claro, assim, nas palavras do douto Procurador da República, com atuação em Santarém/PA, que a argumentação no sentido de que a expressão “instrumentos utilizados na prática da infração” não incluem “o veículo (caminhonete, tratores, embarcações/balsa, etc.) não se coaduna com a intenção de coibição da prática infracional em seu sentido teleológico. Nessa esteira, o legislador, ao elaborar a dicção do art. 25, § 4º, da Lei nº 9.605/98, teve a intenção de dar tratamento mais rigoroso (preventivo e repressivo) ao agente causador do dano ambiental. Não há razão nenhuma para não incluir-se caminhonete, balsas, rebocadores, etc., como instrumentos da infração suscetíveis de perdimento, pois, como in casu, somente assim pode o degradador levar a efeito a empreitada” (fl. 220, Apelação nº 3851-3.2008.4.01-4101/RO).
Importa, outrossim, deter-se sobre a expressão “garantida a sua descaracterização por meio da reciclagem”, constante da parte final do parágrafo 4º do art. 25 da Lei nº 9.605/1998.
Ao contrário do que salientado pelo douto sentenciante, esta expressão legal não quer dizer que o veículo utilizado como instrumento “originariamente destina-se apenas a fins ilícitos”, ou seja, já preparado previamente e voltado para a prática criminosa/infração administrativa. Em verdade, conforme já salientado, an passant, a norma diz respeito a qualquer tipo de veículo, tenha sido ele alterado ou não para a prática delitiva.
A garantia de descaracterização refere-se tão somente à necessidade de que a alienação/doação posterior não venha a servir de estímulo, dado que o instrumento já se encontra adaptado para o uso infracional, independentemente da reiteração da prática criminosa por parte do novo proprietário/donatário.
O alegado direito de propriedade deve ser analisado sob a perspectiva de sua função sócio-ambiental. Não por outra razão, consta do parágrafo primeiro do art. 1.228 do Código Civil o seguinte: “O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico, bem como evitada a poluição do ar e das águas”.
Não cabe, portanto, invocar-se, aqui, categorias jurídicas de direito privado, para impor a tutela egoística da propriedade privada, a descurar-se de sua determinante função social e da supremacia do interesse público, na espécie, em total agressão ao meio ambiente, que há de ser preservado, a qualquer custo, de
forma ecologicamente equilibrada, para as presentes e futuras gerações, em dimensão difusa, na força determinante dos princípios da prevenção e da participação democrática (CF, art. 225, caput).
Desse modo, considerando a importância que assumiu o meio ambiente e sua preservação para a presente e as futuras gerações, resulta clara a preponderância desse último em relação ao primeiro.
Assim, com razão a douta Procuradoria Federal Especializada ao afirmar:
“a realidade do desmatamento e transporte clandestino de produtos da Floresta Amazônica, considerada pela Carta da República como patrimônio nacional (art. 225, § 4º, CF/88), é alarmante, o que é de geral sabença, podendo, inclusive, se depreender de tantas matérias jornalísticas comumente veiculadas na mídia, razão pela qual a efetividade social da legislação tutelar do meio ambiente é medida que se impõe, e a apreensão dos produtos e instrumentos de infrações ambientais é um dos meios adotados, legalmente, pela Administração Pública, para alcançar essa efetividade”
Resulta ao desamparo, portanto, a pretensão quanto a prevalência do direito de propriedade, haja vista que a atuação da Administração se deu com base nos princípios da prevenção e precaução vigentes em sede ambiental, além, é claro, da existência de previsão legal expressa a permitir a apreensão do instrumento da infração ambiental.
Em se tratando de Direito Ambiental, não se pode olvidar a prevalência do princípio da solidariedade. Com efeito, segundo esse princípio, quem deteve a mínima participação na prática infracional, ou mesmo deixou de evitá-la, quando deveria ou poderia fazê-lo, deverá responder por ela.
O art. 2º da Lei de Crimes e Infrações Ambientais (nº 9.605/1998) assim determina: “Quem, de qualquer forma, concorre para a prática dos crimes previsto nesta Lei, incide nas penas a estes cominadas, na medida de sua culpabilidade (…)”.
Assim, considerando que a infração administrativa ambiental é toda ação ou omissão que viole as regras jurídicas de uso, gozo, promoção, proteção e recuperação do meio ambiente (9.605/1998, art. 70), afigura-se clara a responsabilidade do proprietário em relação ao cometimento de infração com veículo (caminhão) de sua propriedade.
Sobre o tema, veja-se o quanto reportado pela doutrina:
“Assim, restando apreendido um bem, instrumento ou veículo utilizado para o cometimento da infração ou mesmo produto dela, é presumível que o seu proprietário (caso não seja o responsável direto pela prática da infração ambiental) tenha participação, ainda que indireta, no cometimento do ilícito. É que, mesmo não sendo o infrator o proprietário do bem, é de se admitir que ele, em regra, recebeu alguma forma de anuência pelo uso alheio, seja por meio de uma espécie de contrato, seja em decorrência de relação de parentesco ou amizade entre os dois. Diante das regras que devem nortear o assunto, não se pode presumir, de forma contrária, a total irresponsabilidade do proprietário do bem no cometimento do ilícito ambiental. É por isso, inclusive, que a apreensão do bem deve ser efetuada, em qualquer hipótese, pelo fiscal, para que, só após apreciada a possível defesa do infrator e do proprietário do bem, possa-se decidir pelo perdimento (regra) ou pelo devolução do objeto da apreensão ao seu dono”[15]
Diante de tanto, tem-se que tal responsabilidade civil, criminal e administrativa deve abarcar todos os que concorreram para o ilícito ambiental ante o princípio do poluidor-pagador, motivo pelo qual não pode ser excluída a responsabilidade do impetrante – garantido, por óbvio, o direito de regresso – pela prática da infração descrita nos autos.
Esta egrégia Corte possui precedente no sentido de que existe solidariedade “entre os co-responsáveis pelo dano ambiental, o que inclui desde o agente que extraiu a madeira ilicitamente até o vendedor e comprador do carvão vegetal. Além da responsabilidade de todos que participaram do ciclo de exploração predatória, cabe ainda a responsabilidade daqueles que compõem a pessoa jurídica, sócios e administradores”[16].
Por fim, importa ressaltar que, embora possa o bem apreendido ser confiado a fiel depositário, tal medida somente será possível, até o julgamento do procedimento administrativo, nos termos do art. 105 do Decreto nº 6.514/2008, podendo assumir esse encargo, a critério da administração, os órgãos e entidades de natureza ambiental, beneficente, científico, cultural, educacional, hospitalar, penal e militar ou, ainda, o próprio autuado, desde que a posse dos bens ou animais não traga risco de utilização em novas infrações, conforme assim disposto nos incisos I e II do art. 106 do referido ato normativo.
Conforme se vê, a regra é que os bens apreendidos fiquem sob a guarda do órgão ou entidade responsável pela fiscalização ambiental, podendo, caso caracterizada a excepcionalidade de determinada situação, ser confiada a fiel depositário, ocasião em que caberá à Administração, e não ao Poder Judiciário – sob pena de violação ao princípio da separação dos Poderes –, definir quem assumirá tal encargo, observadas as opções previstas nos dispositivos normativos acima referidos.
Nesse contexto, afigura-se manifesta, na espécie, a legitimidade do ato administrativo impugnado, a autorizar a reforma da sentença monocrática, com a consequente denegação da segurança buscada.
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Com estas considerações, dou provimento ao apelo e à remessa oficial para reformar a sentença recorrida e denegar a segurança impetrada.
Oficie-se, com urgência, ao Sr. Superintendente Regional do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA no Estado de Rondônia, para cumprimento imediato deste acórdão mandamental.
Este é meu voto.
EMENTA
ADMINISTRATIVO. AMBIENTAL. MANDADO DE SEGURANÇA. INFRAÇÃO AMBIENTAL. TRANSPORTE IRREGULAR DE MADEIRA (EM TORAS). VEÍCULO AUTOMOTOR (CAMINHÃO). APREENSÃO. DIREITO DE PROPRIEDADE. MITIGAÇÃO. TERCEIRO DE BOA-FÉ. PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE. NOMEAÇÃO DE FIEL DEPOSITÁRIO. PODER DISCRICIONÁRIO DA ADMINISTRAÇÃO.
I – Constatada a infração administrativo-ambiental referente ao transporte irregular de madeira (em tora), que se concretizou com a utilização de veículo automotor (caminhão), afigura-se escorreita a apreensão empreendida pela fiscalização ambiental (ex vi dos arts. 25, caput, e 72, IV c/c o art. 70, caput, todos da Lei nº 9.605/1998, regulamentados pelos arts. 3º, IV, e 47, § 1º, do Decreto nº 6.514/2008), tendo-se em vista os princípios da precaução e da prevenção, do poluidor-pagador, da responsabilidade social e do desenvolvimento sustentável.
II – O exercício do direito de propriedade não é absoluto, submetido que está aos interesses da coletividade (função social), entre os quais o direito de desfrutar do meio ambiente ecologicamente equilibrado, razão pela qual deve sofrer mitigação quando em confronto com os princípios dirigentes do direito ambiental.
III – Em direito ambiental aplica-se, também, o princípio da solidariedade, resultando patente a responsabilidade civil, criminal e administrativa de todos os que concorreram para a infração ambiental, afigurando-se irrelevante a discussão sobre a isenção do patrimônio alegada pelo suposto terceiro de boa-fé.
IV – Não se afigura razoável que a Administração ambiental promova a adequada aplicação da lei, na força determinante do comando constitucional da norma-matriz do artigo 225, caput, do texto magno, com a apreensão dos instrumentos das infrações e os agentes do Poder Judiciário, em excepcional exercício hermenêutico, venha a desmerecê-la no cumprimento da legislação pertinente, em clara e perversa sinalização aos agentes infratores para a continuidade da degradação ambiental, na espécie.
V- Nos termos do art. 105, caput, do Decreto nº 6.514/2008, os bens apreendidos devem ficar sob a guarda do órgão ou entidade responsável pela fiscalização ambiental, podendo, “excepcionalmente, ser confiados a fiel depositário, até o julgamento do processo administrativo”, caso em que caberá à Administração, no exercício do seu poder discricionário, definir sobre quem assumirá esse encargo, dentre as opções previstas nos incisos I e II do art. 106 do referido ato normativo.
VI – Apelação e remessa oficial providas para cassar a segurança buscada.
ACÓRDÃO
Decide a Turma, por unanimidade, dar provimento à apelação e à remessa oficial, nos termos do voto do Relator.
Quinta Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região – Em 08/02/2017.
Desembargador Federal SOUZA PRUDENTE
Relator
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Notas:
[1] Link para o referido sítio: http://www.ibama.gov.br/publicadas/operacao-do-ibama-apreende-300-caminhoes-de-madeira-irregular-em-oito-empresas-de-santarem-pa Acesso em 4/10/2016.
[2] Schimitt, Jair. Crime sem Castigo: a efetividade da fiscalização ambiental para o controle do desmatamento ilegal da Amazônia. 2015, págs. 91. Tese de Doutorado. Encontrado no endereço eletrônico: http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/19914/1/2015_JairSchmitt.pdf , com acesso em 17/10/2016.
[3] “Com base na teoria econômica do crime Sutinen (1987) desenvolveu um modelo quantitativo para mensurar o valor de dissuasão gerado pela fiscalização ambiental, ou seja, o modelo procura expressar em valores monetários os riscos da prática delituosa e compara com os possíveis lucros a serem obtidos. Caso o valor de dissuasão proporcionado pelo sistema de fiscalização seja menor que o lucro a ser obtido pela prática delituosa, o infrator decidirá em cometer o delito e, caso o valor de dissuasão seja maior, a decisão é por não cometer o delito” (Schimitt, Jair. Crime sem Castigo: a efetividade da fiscalização ambiental para o controle do desmatamento ilegal da Amazônia. 2015. Tese de Doutorado. Encontrado no endereço eletrônico: http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/19914/1/2015_JairSchmitt.pdf , com acesso em 17/10/2016.
[4] Júlia Gallego Ziero Uhr e Daniel de Abreu Pereira Uhr. Infrações Ambientais e a Reputação do Regulador: Análise em Dados de Painel para o Brasil. Apud Estud. Econ., São Paulo, vol. 44, n.1, p.69-103, jan.-mar. 2014, págs. 70-71.
[5] Para melhor compreensão cf.-se o sítio do Ministério do Meio Ambiente no seguinte endereço eletrônico: http://www.mma.gov.br/florestas/controle-e-preven%C3%A7%C3%A3o-do-desmatamento/plano-dea%C3%A7%C3%A3o-para-amaz%C3%B4nia-ppcdam
[6] STJ,REsp 1071741/SP, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 24/03/2009,DJe 16/12/2010.
[7] Schimitt, Jair. Crime sem Castigo: a efetividade da fiscalização ambiental para o controle do desmatamento ilegal da Amazônia. 2015, oágs. 86-87. Tese de Doutorado. Encontrada no endereço eletrônico: http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/19914/1/2015_JairSchmitt.pdf , com acesso em 17/10/2016.
[8] BARROS, Larissa Suassuna Carvalho. A apreensão de veículos utilizados em infrações ambientais no bioma amazônico: uma interpretação das normas à luz da teoria de Friedrich Müller. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 fev. 2014. Disponivel em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.46882&seo=1>. Acesso em: 14 out. 2016.
[9] Op. Cit.
[10] ALEXY, Robert. Derechos, Razonamento jurídico y Discurso racional. Isonomia (Publicaciones Periódicas): Revista de Teoria y Filosofia del Derecho. Nº 1, ouctubre 1994.
[11] In Infrações contra o meio ambiente: multas, sanções e processo administrativo – comentários ao Decreto nº 6.514, de 22.07.2008. Belo Horizonte: Fórum, 2009. p. 441.
[12] Destino dos Instrumentos de Crimes Contra o Ambiente, Pedro Abi-Eçab. Artigo baseado em tese aprovada no 11º Congresso de Meio Ambiente do Ministério Público do Estado de São Paulo, São Roque, 2007, tendo sido devidamente atualizado pelo autor em razão da entrada em vigor do Decreto nº 6.514/2008. Encontrado no seguinte endereço eletrônico: <https://www.academia.edu/4594919/DESTINO_DOS_INSTRUMENTOS_DE_CRIMES_CONTRA_O_AMBIENTE_DEStinAtiOn_of_inStRUMEntS_Of_EnviROnMEntAl_CRiMES> , com acesso em 17/10/2016.
[13] CARIBÉ, Karla Virgínia Bezerra. Apreensão e perdimento dos instrumentos utilizados na prática da infração administrativa ambiental e dos produtos dela . Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3733, 20 set. 2013. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/25349>. Acesso em: 16 out. 2016.
[14] Op. cit.
[15] CARIBÉ, Karla Virgínia Bezerra. Op. cit.
[16] AGA 0017645-19.2013.4.01.0000 / MA, Rel. DESEMBARGADORA FEDERAL SELENE MARIA DE ALMEIDA, QUINTA TURMA, e-DJF1 p.90 de 17/09/2013.