“A obrigação de demarcar, averbar e restaurar a área de reserva legal constitui dever jurídico que se transfere automaticamente ao adquirente ou possuidor do imóvel. Com base nessa jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a Segunda Turma manteve decisão que determinou que a proprietária de uma fazenda reflorestasse área de preservação desmatada antes da vigência do Código Florestal.
Na origem, o Ministério Público de São Paulo (MPSP) ajuizou ação civil pública ambiental contra a Agropecuária Iracema, dona de fazenda naquele estado, que deixou de destinar 20% da área da propriedade à reserva legal, conforme prevê o Código Florestal. As terras, na quase totalidade da extensão, estavam ocupadas com plantações de cana-de-açúcar.
O MPSP pediu a condenação da empresa a instituir, medir, demarcar e averbar, de imediato, a reserva florestal de no mínimo 20% da propriedade; a deixar de explorar a área destinada à reserva ambiental; a recompor a cobertura florestal; a pagar indenização relativa aos danos ambientais considerados irrecuperáveis; e a deixar de receber benefícios ou incentivos fiscais.
Prazo legal
O magistrado de primeiro grau julgou procedentes os pedidos. Contudo, a sentença foi parcialmente reformada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), que excluiu da condenação a proibição de obter benefícios e incentivos fiscais e admitiu a implantação da reserva no prazo legal.
No recurso especial dirigido ao STJ, a agropecuária pediu o afastamento da obrigação de reflorestar a área. Segundo ela, o desmatamento ocorreu antes da entrada em vigor do Código Florestal – inexistindo, à época, a obrigatoriedade de constituir reserva legal.
“O direito adquirido não pode ser invocado para mitigar a salvaguarda ambiental, não servindo para justificar o desmatamento da flora nativa, a ocupação de espaços especialmente protegidos pela legislação, tampouco para autorizar a continuidade de conduta potencialmente lesiva ao meio ambiente”, afirmou a relatora do caso, desembargadora convocada Diva Malerbi.
Ela explicou que, nesse caso, a lei não pode retroagir, porque a obrigação de instituir a área de reserva legal e de recompor a cobertura florestal e as áreas de preservação permanente foi estabelecida após a vigência das leis que regem a matéria.
Conservar
O dever de assegurar o meio ambiente, disse a desembargadora convocada, não se limita à proibição da atividade degradatória, abrangendo a obrigatoriedade de conservar e regenerar os processos ecológicos. A relatora lembrou a jurisprudência do STJ no tocante à matéria.
Segundo a magistrada, a obrigação de demarcar, averbar e restaurar área de reserva legal constitui dever jurídico que se transfere automaticamente ao adquirente ou possuidor do imóvel.
O STJ, conforme ela destacou, firmou entendimento de que a delimitação e averbação da área de reserva legal independem da existência de floresta ou outras formas de vegetação nativa da gleba, ‘sendo obrigação do proprietário ou adquirente do bem imóvel adotar as providências necessárias à restauração ou à recuperação das mesmas, a fim de readequar-se aos limites percentuais previstos na lei de regência’.
Por fim, ela esclareceu que a existência da área de reserva legal no âmbito das propriedades rurais caracteriza-se como limitação administrativa necessária à proteção do meio ambiente para as presentes e futuras gerações e se encontra em harmonia com a função ecológica da propriedade”.
Fonte: STJ, 08/07/2016.
Confira a íntegra da decisão:
RECURSO ESPECIAL Nº 1.381.191 – SP (2012/0048885-8)
RELATORA : MINISTRA DIVA MALERBI (DESEMBARGADORA CONVOCADA TRF 3ª REGIÃO)
RECORRENTE : AGROPECUÁRIA IRACEMA LTDA
ADVOGADO : JOSÉ MARIA DA COSTA E OUTRO(S)
RECORRIDO : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO
RELATÓRIO
A SRA. MINISTRA DIVA MALERBI (DESEMBARGADORA CONVOCADA TRF 3ª REGIÃO): Cuida-se de recurso especial interposto por Agropecuária Iracema Ltda contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo na vigência do CPC/73, nos termos da seguinte ementa (e-STJ, fl. 592):
Ação civil pública ambiental. Instituição de área de reserva legal. Sentença de procedência da ação. Inexistência de nulidade ou inconstitucionalidade a reconhecer. Obrigação decorrente do Código Florestal. Regra auto-aplicável. Exclusão de condenação não pedida pelo autor. Adequação de prazos. Possibilidade de receber benefícios ou incentivos fiscais e financiamentos e de implantar essa reserva no prazo legal, de acordo com a Administração Pública do Estado. Apelação provida em parte.
A recorrente aponta, além de dissídio jurisprudencial, ofensa aos arts. 535, II, do CPC; 6º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro; 16, III, da Lei 4.771/65; 14, § 1º, da Lei 6.938/81; 331, I, do CPC.
Sustenta que o acórdão impugnado, apesar de ter sido regularmente provocado por meio dos embargos declaratórios, manteve-se omisso quanto às alegativas de afronta aos arts. 5º, XXII, XXIII, XXIV, XXXVI, LVII e § 2º, da Constituição Federal, bem como sobre os arts. 186, caput, I e II, 225, caput, § 1º e I, do Diploma Constitucional.
Aduz que, em obediência aos princípios da irretroatividade da lei, do ato jurídico perfeito e do direito adquirido, não é possível impor à recorrente a obrigação de realizar o reflorestamento da gleba rural, tendo em vista que: a) a área já estava desmatada antes da entrada em vigor do Código Florestal, inexistindo, à época, a obrigatoriedade de constituir-se reserva legal; b) deve-se perquirir se o desmatamento ocorreu em conformidade com a lei do tempo, porquanto, com o passar dos anos, houve uma expansão na modalidade de vegetação a ser preservada; c) tratando-se de limitação administrativa ao uso da propriedade, a exigência apenas pode ser realizada para os atos futuros, não sendo possível aplicar uma lei nova a uma situação jurídica integralmente consolidada na vigência da lei anterior.
Defende que o percentual da reserva legal deve incidir sobre as matas existentes ao tempo da edição da lei e não sobre a extensão total da propriedade. Assim, de acordo com o Código Florestal de 1934 (Decreto 23.793/34), não havia distinção entre área de preservação permanente e reserva legal, havendo apenas a cominação de o proprietário preservar 25 % da vegetação existente.
O Código Florestal de 1965 (Lei 4.771/65), por seu turno, previu a obrigatoriedade de se preservar 20% da área da propriedade com cobertura arbórea localizada e não toda e qualquer área da imóvel.
Apenas com a edição da Lei 8.171/91 nasceu a obrigação legal imposta ao particular de reflorestar a reserva legal, tendo a MP 1.956-50/01 ampliado o conceito de reserva legal para abranger não apenas as florestas e áreas de cerrado, mas outras formas de vegetação nativa, mantendo-se, contudo, a mesma base de cálculo existente, isto é, considerando-se a vegetação existente na propriedade e não a extensão total da gleba rural.
Explicita a recorrente que (e-STJ, fl. 719):
Ao impor à recorrente a obrigação de separa e florestar vinte por cento de sua gleba, determinando que tal percentual incida sobre a extensão da gleba e não sobre as matas ou florestas nela existentes ao tempo da edição de sua lei instituidora, justificando com a Lei 7.803, de 18.07.89, com o art. 99 da Lei 8.171/91 e com o art. 44 do Código Florestal (com redação da Medida Provisória 2.166-67/2001), a decisão recorrida contrariou a interpretação mais adequada que se deve conferir ao art. 16, III, do Código Florestal de 1965, o qual permite a clara interpretação de que o percentual da reserva legal deve incidir sobre as matas existentes ao tempo da edição da lei, e não sobre a extensão total da propriedade.
Segundo entende, ainda que a responsabilidade pela indenização e restauração do dano ambiental seja objetiva, independente de dolo ou culpa, não se pode descurar que a condenação do poluidor pagador demanda a identificação do ato ilícito por ele praticado, não sendo possível imputar a terceiro, que não desmatou, a obrigação de reflorestar.
Afirma que o Ministério Público não logrou demonstrar os fatos constitutivos do direito, ou seja, que a gleba rural em destaque detinha vegetação nativa protegida e ocorreu o desmatamento em desconformidade com a lei aplicável à época.
Em memoriais, a recorrente suscita a necessidade de aplicar-se o disposto no art. 462 do CPC/73, a fim de que seja considerado o disposto no art. 68 do Novo Código Florestal (Lei 12.651/12), afastando-se a responsabilidade do proprietário pela obrigação de reflorestar, quando demonstrado que o desmatamento ocorreu na conformidade da lei do tempo de sua ocorrência.
Requer, portanto, a anulação do acórdão recorrido pela existência de afronta ao art. 535 do CPC e, caso superada essa questão, a reforma do julgado proferido na origem para tenha como indevida a obrigação imposta à recorrente de reparar os danos ambientais e realizar o reflorestamento da área.
As contrarrazões foram ofertadas às e-STJ, fls. 923-925.
O Ministério Público Federal opinou pelo não provimento do recurso especial (e-STJ, fls. 1264-1275).
É o relatório.
VOTO
A SRA. MINISTRA DIVA MALERBI (DESEMBARGADORA CONVOCADA TRF 3ª REGIÃO) (Relatora): Ao se interpretar o disposto no art. 535 do CPC/73, aplicável à espécie, o Superior Tribunal de Justiça concluiu que não há vício de fundamentação quando o aresto recorrido está assentado em argumentos suficientes para a solução da controvérsia, ainda que não tenha feito menção expressa a todos os normativos invocados pela parte.
No caso, o Tribunal a quo dirimiu o litígio de maneira fudnamentada, ao explicitar a constitucionalidade dos arts. 44 e 16 da Lei 4.771/65, justificando que o dano ambiental decorrente da falta de área de reserva legal é permanente. Desse modo, concluiu que a obrigação de restaurá-lo não pode ser obstada com amparo no direito adquirido, ato jurídico perfeito, retroatividade da lei.
Além disso, frisou-se que o direito constitucional ao meio ambiente ecologicamente equilibrado possui natureza difusa, imprescritível, irrenunciável e inalienável. Assim, o dever de realizar o reflorestamento da área é obrigação de caráter propter rem, atrelada à função social da propriedade, não correspondendo a uma mera servidão administrativa indenizável. Transcrevo (e-STJ, fls. 670-671):
Ficou reconhecida a constitucionalidade do artigo 44 da Lei n. 4771/65, que determina que o proprietário ou possuidor de imóvel rural com vegetação nativa em área inferior à prevista nos incisos do artigo 16, sem prejuízo do cômputo da vegetação nativa de preservação permanente, nos limites do artigo 16, § 6º e incisos, faça a recomposição dessa reserva legal, conduza sua regeneração natural ou promova compensação na mesma microbacia ou, se não houver, em outra próxima. Foi dito que “Nada autoriza afirmar qualquer contrariedade a normas constitucionais”, que preservação não significa estritamente manutenção da vegetação já existente; que prevenção também é o “conjunto de métodos, procedimentos e políticas que visem a proteção a longo prazo das espécies, habitats e ecossistemas, além da manutenção dos processos ecológicos, prevenindo a simplificação dos sistemas naturais” (cf. Dicionário Jurídico, Maria Helena Diniz, 2 a Ed. Saraiva); e que, para o atendimento da determinação constitucional de preservação do meio ambiente não basta não degradar, é necessário regenerar, e esta obrigação tem natureza propter rem e corresponde a responsabilidade objetiva e a função social da propriedade, não a servidão administrativa indenizável.
Como se observa, o provimento jurisdicional exarado na origem possui fundamentação idônea, não estando presentes quaisquer das hipóteses previstas no art. 535 do CPC. A propósito (grifos nossos):
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. MANDADO DE SEGURANÇA. CONCURSO PÚBLICO. VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC. NÃO OCORRÊNCIA. FALTA DE PREQUESTIONAMENTO. SÚMULA 211/STJ. CARGO DE TÉCNICO DE LABORATÓRIO/QUÍMICA. CANDIDATO APROVADO COM QUALIFICAÇÃO SUPERIOR À EXIGIDA NO EDITAL. APTIDÃO PARA O CARGO DEMONSTRADA. SÚMULA 283/STJ.
1. Trata-se, na origem, de Ação Mandamental interposta pelo ora recorrido contra ato da Pró-Reitoria de Recurso Humanos da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e da Diretora do Departamento de Administração de Pessoal da UFRN, objetivando provimento judicial que assegure sua posse no cargo de Técnico de Laboratório/Química.
2. Inicialmente, constata-se que não se configura a ofensa ao art. 535 do Código de Processo Civil, uma vez que o Tribunal de origem julgou integralmente a lide e solucionou a controvérsia, tal como lhe foi apresentada. Não é o órgão julgador obrigado a rebater, um a um, todos os argumentos trazidos pelas partes em defesa da tese que apresentaram. Deve apenas enfrentar a demanda, observando as questões relevantes e imprescindíveis à sua resolução. Nesse sentido: REsp 927.216/RS, Segunda Turma, Relatora Ministra Eliana Calmon, DJ de 13.8.2007; e REsp 855.073/SC, Primeira Turma, Relator Ministro Teori Albino Zavascki, DJ de 28.6.2007.
3. No que aponta como violados os artigos 2º da Lei 9.784/1999; 9º, § 2º, da Lei 11.091/2005 e 5º, IV, da Lei 8.112/1990, a irresignação não merece prosperar, uma vez que o Tribunal de origem não emitiu juízo de valor sobre os dispositivos legais cuja ofensa se aduz. O Superior Tribunal de Justiça entende ser inviável o conhecimento do Recurso Especial quando os artigos tidos por violados não foram apreciados pelo Tribunal a quo, a despeito da oposição de Embargos de Declaração, haja vista a ausência do requisito do prequestionamento. Incide, na espécie, a Súmula 211/STJ.
4. O acórdão recorrido está em sintonia com o atual entendimento do STJ, visto que o candidato comprovou ser graduado em Química, cursando Mestrado na mesma área, sendo que a comprovação do nível de escolaridade ou de aptidão técnica são compatíveis, por haver correlação com a necessária especialidade do cargo, razão pela qual não merece prosperar a irresignação. Óbice da Súmula 83/STJ. Precedentes: AgRg no AREsp 261.543/RN, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 19.2.2013, DJe 7.3.2013; AgRg no AgRg no REsp 1.270.179/AM, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em 15.12.2011, DJe 3.2.2012; AgRg no REsp 1.375.017/CE, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 28.5.2013, DJe 4.6.2013 5. Recurso Especial não provido.
(REsp 1523483/RN, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 26/05/2015, DJe 30/06/2015).
Em relação ao art. 331, I, do CPC/73, deve-se salientar que o aresto recorrido reconheceu ser desnecessária a realização de perícia técnica, uma vez que as provas já produzidas nos autos seriam bastantes para o julgamento da lide. Para revisar essas conclusões, faz-se necessário o revolvimento dos elementos fático-probatórios da lide, o que não é permitido na instância extraordinária, nos termos da Súmula 7/STJ: “A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial.” A esse respeito (sem destaques no original):
ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. RECLAMATÓRIA TRABALHISTA. PROVA DO DIREITO ALEGADO. VIOLAÇÃO DO ART. 331, I, DO CPC. SÚMULA 7/STJ. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL PREJUDICADA.
1. O Tribunal a quo expressamente manifestou-se sobre seu convencimento a respeito da prestação dos serviços pela parte recorrida e do seu direito ao pagamento, tendo ainda decidido que o recorrente não se desincumbiu de sua obrigação contratual de demonstrar o pagamento.
2. Efetivamente, aferir se as provas são suficientes ou se o recorrido desincumbiu-se de seu ônus probatório, para análise de eventual violação do art. 333, I, do CPC, demandaria o reexame de todo o contexto fático-probatório dos autos, o que é defeso a esta Corte ante o óbice da Súmula 7 do STJ.
3. Ademais, no sistema de persuasão racional adotado pelos arts. 130 e 131 do CPC, cabe ao magistrado determinar a conveniência e a necessidade da produção probatória, mormente quando, por outros meios, já esteja persuadido acerca da verdade dos fatos.
4. Quanto à interposição pela alínea “c”, este Tribunal tem entendimento no sentido de que a incidência da Súmula 7 desta Corte impede o exame de dissídio jurisprudencial, uma vez que falta identidade entre os paradigmas apresentados e os fundamentos do acórdão, tendo em vista a situação fática do caso concreto, com base na qual a Corte de origem deu solução à causa. Agravo regimental improvido.
(AgRg no AREsp 765.684/SE, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 15/10/2015, DJe 26/10/2015).
Quanto à matéria de fundo, não obstante a valorosa argumentação jurídica deduzida no apelo, verifico que a matéria já foi objeto da análise pelo órgão colegiado, tendo-se logrado vitoriosa tese contrária aos interesses da recorrente.
No tocante à ofensa ao art. 6º da LINDB, deve-se registrar que o direito adquirido não pode ser invocado para mitigar a salvaguarda ambiental, não servindo para justificar o desmatamento da flora nativa, a ocupação de espaços especialmente protegidos pela legislação, tampouco para autorizar a continuidade de conduta potencialmente lesiva ao meio ambiente.
O dever de assegurar o meio ambiente não se limita à proibição da atividade degradatória, abrangendo a obrigatoriedade de se conservar e regenerar os processos ecológicos. Assim, não se cogita de aplicação retroativa da lei, pois a obrigação de instituir a área de reserva legal, bem como de recompor a cobertura florestal e as áreas de preservação permanente foi estabelecida após a vigência dos normativos de regência.
A existência da área de reserva legal no âmbito das propriedades rurais caracteriza-se como uma limitação administrativa necessária à tutela do meio ambiente para as presentes e futuras gerações e se encontra em harmonia com a função ecológica da propriedade, legitimando a existência de restrições aos direitos individuais em benefício dos interesses de toda a coletividade.
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça consignou que a obrigação de demarcar, averbar e restaurar a área de reserva legal constitui dever jurídico que se transfere automaticamente ao adquirente ou possuidor do imóvel, consubstanciando-se obrigação propter rem e ex lege. A propósito:
ADMINISTRATIVO. MEIO AMBIENTE. ÁREA DE RESERVA LEGAL EM PROPRIEDADES RURAIS: DEMARCAÇÃO, AVERBAÇÃO E RESTAURAÇÃO. LIMITAÇÃO ADMINISTRATIVA. OBRIGAÇÃO EX LEGE E PROPTER REM, IMEDIATAMENTE EXIGÍVEL DO PROPRIETÁRIO ATUAL.
1. Em nosso sistema normativo (Código Florestal – Lei 4.771/65, art. 16 e parágrafos; Lei 8.171/91, art. 99), a obrigação de demarcar, averbar e restaurar a área de reserva legal nas propriedades rurais constitui (a) limitação administrativa ao uso da propriedade privada destinada a tutelar o meio ambiente, que deve ser defendido e preservado “para as presentes e futuras gerações” (CF, art. 225). Por ter como fonte a própria lei e por incidir sobre as propriedades em si, (b) configura dever jurídico (obrigação ex lege) que se transfere automaticamente com a transferência do domínio (obrigação propter rem), podendo, em consequência, ser imediatamente exigível do proprietário atual, independentemente de qualquer indagação a respeito de boa-fé do adquirente ou de outro nexo causal que não o que se estabelece pela titularidade do domínio.
2. O percentual de reserva legal de que trata o art. 16 da Lei 4.771/65 (Código Florestal) é calculado levando em consideração a totalidade da área rural. 3. Recurso parcialmente conhecido e, nessa parte, improvido.
(REsp 1179316/SP, Rel. Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, PRIMEIRA TURMA, julgado em 15/06/2010, DJe 29/06/2010).
Da mesma forma, esta Corte Superior consagrou o entendimento de que a delimitação e a averbação da área de reserva legal independe da existência de floresta ou outras formas de vegetação nativa na gleba, sendo obrigação do proprietário ou adquirente do bem imóvel adotar as providências necessárias à restauração ou à recuperação das mesmas, a fim de readequar-se aos limites percentuais previstos na lei de regência. Nesse sentido:
ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. INSTITUIÇÃO DE RESERVA FLORESTAL. DEVER DE OBEDIÊNCIA. OBRIGAÇÃO DO PROPRIETÁRIO OU POSSUIDOR DO IMÓVEL RURAL. OMISSÃO. INEXISTÊNCIA. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. SÚMULA 211/STJ. ALEGAÇÃO DE QUE HOUVE CONSTITUIÇÃO DE RESERVA FLORESTAL E DE QUE NÃO OCORREU DEGRADAÇÃO AMBIENTAL. NECESSIDADE DE REEXAME DO CONTEXTO FÁTICO. SÚMULA 7/STJ.
1. Na hipótese em exame, o Tribunal de origem decidiu o ponto relativo à constituição da Reserva Legal de forma cabal e hialina. Portanto, não se configura ofensa ao art. 535 do Código de Processo Civil, uma vez que o Sodalício a quo julgou integralmente a lide e solucionou a controvérsia, tal como lhe foi apresentada.
2. O entendimento da Corte originária (fls. 536-540/STJ) está em conformidade com a orientação do STJ, de que a delimitação e a averbação da Reserva Legal configuram dever do proprietário ou adquirente do imóvel rural, independentemente da existência de florestas ou outras formas de vegetação nativa na gleba. Outrossim, constitui obrigação do proprietário ou adquirente tomar as providências necessárias à restauração ou à recuperação das formas de vegetação nativa para se adequar aos limites percentuais previstos nos incisos do art. 16 do Código Florestal. (EREsp 218.781/PR, Rel. Ministro Herman Benjamin, Primeira Seção, DJe 23/2/2012; no mesmo sentido, RMS 21.830/MG, Rel. Min. Castro Meira, DJ 1º/12/2008; RMS 22.391/MG, Rel. Min. Denise Arruda, DJe 3/12/2008; REsp 973.225/MG, Rel. Min. Eliana Calmon, DJe 3/9/2009, REsp 821.083/MG, Rel. Min. Luiz Fux, DJe 9/4/2008; REsp 1.087.370/PR, Rel. Ministra Denise Arruda, Primeira Turma, DJe 27/11/2009; EDcl no Ag 1.224.056/SP, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe 6/8/2010 ).
3. Em matéria ambiental, a adoção do princípio tempus regit actum impõe obediência à lei em vigor quando da ocorrência do fato ilícito. (AgRg no REsp 1.367.968/SP, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, DJe 12/3/2014; REsp 1.090.968/SP, Rel. Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, DJe 3/8/2010; REsp 625.024/RO, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 4/5/2011). 4. Agravo Regimental não provido. (AgRg no AREsp 231.561/MG, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 16/12/2014, DJe 03/02/2015).
Em caso análogo ao dos autos, a Segunda Turma assim decidiu:
AMBIENTAL. PROCESSUAL CIVIL. OMISSÃO INEXISTENTE. INSTITUIÇÃO DE ÁREA DE RESERVA LEGAL. OBRIGAÇÃO PROPTER REM E EX LEGE. SÚMULA 83/STJ. APLICAÇÃO DO ART. 68 DO NOVO CÓDIGO FLORESTAL. IMPOSSIBILIDADE. DESRESPEITO AOS PERCENTUAIS EXIGIDOS PARA A ÁREA DE RESERVA LEGAL. VERIFICAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 7/STJ. DEVER DE AVERBAÇÃO DA RESERVA LEGAL. IMPOSIÇÃO. PROVAS SUFICIENTES. DESNECESSIDADE DE REALIZAÇÃO DE PERÍCIA. CONJUNTO PROBATÓRIO. SÚMULA 7/STJ. PREJUDICADA A ANÁLISE DA DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL. AUSÊNCIA DE SIMILITUDE FÁTICA.
1. Não há violação do art. 535 do CPC quando a prestação jurisdicional é dada na medida da pretensão deduzida, com enfrentamento e resolução das questões abordadas no recurso.
2. A jurisprudência desta Corte está firmada no sentido de que os deveres associados às APPs e à Reserva Legal têm natureza de obrigação propter rem, isto é, aderem ao título de domínio ou posse, independente do fato de ter sido ou não o proprietário o autor da degradação ambiental. Casos em que não há falar em culpa ou nexo causal como determinantes do dever de recuperar a área de preservação permanente.
3. Este Tribunal tem entendido que a obrigação de demarcar, averbar e restaurar a área de reserva legal nas propriedades rurais configura dever jurídico (obrigação ex lege) que se transfere automaticamente com a mudança do domínio, podendo, em consequência, ser imediatamente exigível do proprietário atual.
4. A Segunda Turma desta Corte firmou a orientação de inaplicabilidade de norma ambiental superveniente de cunho material aos processos em curso, seja para proteger o ato jurídico perfeito, os direitos ambientais adquiridos e a coisa julgada, seja para evitar a redução do patamar de proteção de ecossistemas frágeis sem as necessárias compensações ambientais.
5. Ademais, o art. 68 da Lei 12.651/2012 prevê a dispensa da recomposição, da compensação ou da regeneração, nos percentuais exigidos nesta Lei, nos casos em que a supressão de vegetação nativa tenha respeitado os percentuais de reserva legal previstos na legislação vigente à época dos fatos, o que não ocorreu na hipótese, uma vez a determinação do Tribunal de origem consistiu na apresentação de projeto de demarcação da área de reserva legal, com especificação de plantio, observadas as disposições do Decreto n. 6514/08 e do Decreto n. 7029/09 (fl. 696, e-STJ). Rever o decidido pela Corte estadual encontra óbice na Súmula 7 do STJ.
6. A jurisprudência do STJ é firme no sentido de que o art. 16, c/c o art. 44 da Lei 4.771/1965, impõe a averbação da reserva legal, independentemente de haver área florestal ou vegetação nativa na propriedade
7. A Corte estadual consignou que a falta de reserva legal por si só acarreta degradação ambiental e asseverou que as provas produzidas seriam suficientes para a composição do conflito, sendo desnecessária a realização de perícia técnica. Nesse aspecto, não há como aferir eventual violação dos dispositivos infraconstitucionais invocados sem que se proceda ao reexame do conjunto probatório dos presentes autos (Súmula 7/STJ).
8. Prejudicada a análise da divergência jurisprudencial apresentada, porquanto a negatória de seguimento do recurso pela alínea “a” do permissivo constitucional baseou-se em jurisprudência recente e consolidada desta Corte, aplicável ao caso dos autos. Ademais, não há similitude fática e jurídica apta a ensejar o conhecimento do recurso, em face do confronto da tese adotada no acórdão hostilizado e na apresentada nos arestos colacionados, uma vez que cada um deles, individualmente, traz uma das teses abarcadas no recurso especial e não todas ao mesmo tempo, o que lhe retira a identidade necessária ao conhecimento do recurso. Agravo regimental improvido. (AgRg no REsp 1367968/SP, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 17/12/2013, DJe 12/03/2014).
De acordo com esse entendimento, não é possível aplicar-se o disposto no art. 68 do Novo Código Florestal. Em primeiro lugar, porque a dispensa da recomposição florestal, consoante esse normativo, estaria limitada aos casos em que a supressão da vegetação nativa tenha observado os percentuais de reserva legal previstos na legislação vigente à época dos fatos, o que não ocorre in casu, pois a determinação constante do acórdão refere-se à implantação da reserva legal, mediante projeto a ser aprovado pelas autoridades competentes, de acordo com as disposições do Decreto 6514/08 e do Decreto 7029/09. Revisar esse entendimento esbarra no óbice da Súmula 7/STJ. Em segundo lugar, porque não se emprega norma ambiental superveniente de cunho material aos processos em curso, seja para proteger o ato jurídico perfeito, os direitos ambientais adquiridos e a coisa julgada, seja para evitar a redução do patamar de proteção de ecossistemas frágeis sem as necessárias compensações ambientais.
Assim, considerando-se que os pontos ora trazidos já foram objeto de amplo debate por esta Corte Superior e prestigiando-se os precedentes já exarados em casos análogos, deve ser mantido o acórdão proferido na origem.
Ante o exposto, conheço em parte do recurso especial e, nessa extensão, nego-lhe provimento.
É como voto
VOTO
MINISTRA ASSUSETE MAGALHÃES: Também cumprimento o ilustre advogado, bem como o digno representante do Ministério Público Federal, pelas sustentações orais, que deitaram luzes sobre o tema ora em debate. Como já se destacou, a matéria não é nova, no âmbito desta Segunda Turma. Sabe-se que as normas processuais têm incidência imediata, mas não é o que ocorre, em regra, com as regras de direito material. Aqui cuidamos de norma de direito material e matéria ambiental. Esta Turma tem precedentes, aliás, em caso específico, dessa mesma recorrente, que foi relatado pelo Ministro Humberto Martins, no qual se entendeu que essa norma não tem efeito sobre os processos em curso, tal como ocorre, nesse caso.
Diante disso, não tenho dúvida em acompanhar o voto da eminente Relatora.
RECURSO ESPECIAL Nº 1.381.191 – SP (2012/0048885-8)
RELATORA : MINISTRA DIVA MALERBI (DESEMBARGADORA CONVOCADA TRF 3ª REGIÃO)
RECORRENTE : AGROPECUÁRIA IRACEMA LTDA
ADVOGADO : JOSÉ MARIA DA COSTA E OUTRO(S)
RECORRIDO : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO
EMENTA
PROCESSO CIVIL. AMBIENTAL. CPC/73. RESERVA LEGAL. JULGAMENTO ANTECIPADO DA LIDE. REEXAME. SÚMULA 7/STJ. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. AUSÊNCIA. ALEGATIVA DE OFENSA AO ART. 6º DA LINDB. AUSÊNCIA. FUNÇÃO ECOLÓGICA DA PROPRIEDADE. DEMARCAÇÃO. REFLORESTAMENTO. OBRIGAÇÃO PROTER REM E EX LEGE. ART. 68 DO NOVO CÓDIGO FLORESTAL. INAPLICABILIDADE.
1. O aresto recorrido reconheceu ser desnecessária a realização de perícia técnica, uma vez que as provas já produzidas nos autos seriam suficientes para o julgamento da lide. Para revisar essas conclusões e reconhecer a ofensa ao art. 331, I, do CPC/73, por seu turno, faz-se necessário o revolvimento dos elementos fático-probatórios da lide, o que não é permitido na instância extraordinária, nos termos da Súmula 7/STJ.
2. Não há ofensa ao art. 535 do CPC/73 quando a Corte de origem soluciona integralmente a lide, com base em fundamentação suficiente, sendo desnecessária a menção expressa de todos os normativos invocados pela parte.
3. A garantia do direito adquirido não pode ser invocada para mitigar o dever de salvaguarda ambiental, não servindo para justificar o desmatamento da flora nativa, a ocupação de espaços especialmente protegidos pela legislação, tampouco para autorizar a continuidade de conduta potencialmente lesiva ao meio ambiente. O dever de assegurá-lo, por seu turno, não se limita à proibição da atividade degradatória, abrangendo a obrigatoriedade de se conservar e regenerar os processos ecológicos.
4. A existência da área de reserva legal no âmbito das propriedades rurais caracteriza-se como uma limitação administrativa necessária à tutela do meio ambiente para as presentes e futuras gerações e se encontra em harmonia com a função ecológica da propriedade, legitimando a existência de restrições aos direitos individuais em benefício dos interesses de toda a coletividade.
5. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça consignou que a obrigação de demarcar, averbar e restaurar a área de reserva legal constitui dever jurídico que se transfere automaticamente ao adquirente ou possuidor do imóvel, consubstanciando-se obrigação propter rem e ex lege. Trata-se de dever que independe da existência de floresta ou outras formas de vegetação nativa na gleba, cumprindo ao proprietário ou adquirente do bem imóvel a adoção das providências necessárias à restauração ou à recuperação das mesmas, a fim de readequar-se aos limites percentuais previstos em lei.
6. Não é possível aplicar-se o disposto no art. 68 do Novo Código Florestal. Primeiramente, porque a dispensa da recomposição florestal, consoante esse normativo, estaria limitada aos casos em que a supressão da vegetação nativa tenha observado os percentuais de reserva legal previstos na legislação vigente à época dos fatos, o que não ocorre in casu, pois a determinação constante do acórdão refere-se à implantação da reserva legal, mediante projeto a ser aprovado pelas autoridades competentes, de acordo com as disposições do Decreto 6514/08 e do Decreto 7029/09. Revisar esse entendimento esbarra no óbice da Súmula 7/STJ. Em segundo lugar, porque não se emprega norma ambiental superveniente de cunho material aos processos em curso, seja para proteger o ato jurídico perfeito, os direitos ambientais adquiridos e a coisa julgada, seja para evitar a redução do patamar de proteção de ecossistemas frágeis sem as necessárias compensações ambientais. Precedente em caso análogo: AgRg no REsp 1367968/SP, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, DJe 12/03/2014. 6. Recurso especial conhecido em parte e, nessa extensão, não provido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, conhecer em parte do recurso e, nessa parte, negar-lhe provimento, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a)-Relator(a).” Os Srs. Ministros Humberto Martins, Herman Benjamin, Mauro Campbell Marques e Assusete Magalhães (Presidente) votaram com a Sra. Ministra Relatora.
Dr. JOSÉ MARIA DA COSTA, pela parte RECORRENTE: AGROPECUÁRIA IRACEMA LTDA
Dr. MARIO LUIZ BONSAGLIA, pelo MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
Brasília, 16 de junho de 2016(Data do Julgamento).
Ministra Assusete Magalhães
Presidente
Ministra Diva Malerbi
(Desembargadora Convocada TRF 3ª Região)
Relatora