terça-feira , 19 março 2024
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Privatização (Concessão) de Parques Estaduais?

por Rogério Reis Devisate.

Noticia o BNDES[1] que elabora projeto de concessão de parques estaduais à iniciativa privada, como modo de desestatizar serviços de visitação e melhoraria da experiência para os visitantes.

Esses espaços devem ser fonte de experiência para cada vez maior conscientização sobre a necessidade de proteção da natureza e da ações de sustentabilidade.

Todavia, é crível que os parques foram criados para proteção da natureza e esse motivo integra o ato legal da instituição de cada um, pela chamada ‘teoria dos motivos determinantes’[2], ficando em foco secundário a “visitação” de turistas e de destinação de espaços do parque para serviços de estrutura, como equipamentos atrativos para a recreação de visitantes.

Por isso e por outros motivos, nem todos os parques são abertos à visitação (em 2011, dos 73 parques nacionais, apenas 26 admitiam visitas de turistas).[3]

Aliás, com a “intenção de se reduzir os impactos ambientais e preservar a fauna e flora marinha”, o Ministério do Meio Ambiente, pelo Instituto Chico Mendes, em matéria de 28.7.2014, informava a redução do número de visitantes à piscina natural em Parque Nacional, na Serra da Bocaína.

De fato, estes parques estaduais são verdadeiras reservas e espaços de proteção de biomas.

O seu maior tesouro é o que ali se preserva.

Seu propósito não é gerar renda por visitação de turistas e nem em possuir equipamentos o atrativos para a recreação destes. Aliás, cada metro quadrado destinado a estruturas assim é menos um dentro do objetivo de conservação.

A Constituição Federal cuida do tema no seu artigo 225 e impõe ao Poder Público e à coletividade o “dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”:

“Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.”

Portanto, a diretriz constitucional está expressada no final do artigo citado, quando utiliza os verbos “defender” e “preservar”.

Além disso, o mesmo artigo da Constituição Federal ainda exige ações de preservação e restauração dos ecossistemas e do patrimônio genético do país, sendo vedada qualquer utilização que comprometa a sua integridade (§ 1º, inciso III, parte final) e exigido prévio estudo de manejo e de impacto para qualquer atividade que possa importar em degradação ambiental e ainda reafirma que são “indisponíveis” as terras devolutas que sejam “necessárias à proteção dos ecossistemas naturais” (§ 5º).

Nada há ali que priorize mexer com qualquer parte dos espaços dos parques para instalação de atrativos turísticos e o tema segue as diretrizes nacionais da Lei Federal 9.985, de 18 de julho de 2000, que regulamenta o citado art. 225, da Constituição Federal e institui o “Sistema nacional de Unidades de Conservação da Natureza”.

O artigo 4º da lei muito usa o verbo “proteger” ou fala em promoção de pesquisas científicas, em conservação da natureza, em manutenção da diversidade biológica, na preservação dos ecossistemas naturais etc. Apenas no final se fala em educação e interpretação ambiental e recreação em contato com a natureza, turismo ecológico e na proteção dos recursos naturais necessários à subsistência das populações tradicionais, respeitando a sua cultura e promovendo-se-as social e economicamente.

O objetivo prevalecente é, portanto, o da proteção do patrimônio biológico existente, resguardando os seus excepcionais atributos naturais.

A notícia nos leva a refletir, nesse primeiro momento, se a concessão envolveria todas as áreas dos parques ou se apenas a “área de visitação turística”, como trilhas, banheiros, recepção, lanchonete… Neste rumo, se envolver apenas a área destinada aos turistas, o lucro auferido com os ingressos etc reverteriam na conservação dos parques ou ficaria com a iniciativa privada?

A pergunta envolve diretriz da própria lei federal acima citada, que no inciso XII, do Artigo 5º, prevê que as áreas protegidas devem, nos casos possíveis, buscar autonomia financeira, mas aqui, cremos, para “todo” o parque, o que envolve recursos para a proteção e a segurança contra ilegais caçadores, grileiros[4], invasores[5] de toda forma, garimpeiros[6], mineradoras ou outras ações que possam interferir na integridade do conjunto sob proteção.

O objeto jurídico tutelado é a natureza e a biodiversidade na área de cada parque e tudo deve ser feito focando na sua proteção.

Outrossim, a “privatização” ou concessão de tais parques deveria ser precedida de (1) Plano de Manejo (Lei 9985, Art. 11, Parágrafo 2º) e de (2) estudos dos Tribunais de Contas dos Estados, identificando carência de capital humano ou de recursos para justificar tal circunstância, inclusive apontando se tais recursos seriam revertidos ao próprio parque ou a outros fins.

Ademais, o tema merece detida consideração também por estar sendo tratado contemporaneamente à tramitação do Projeto de Lei 2963/2019[7], já aprovado pelo Senado e que vai à apreciação da Câmara dos Deputados, tratando da venda de terras a estrangeiros e permitindo a venda de propriedades e também de posses e sabemos a notória situação de ocupações indevidas e ilegais[8] ações de incautos ou de grileiros[9] em terras públicas. Temos um tesouro natural e leis para protegê-lo e o mundo anseia por isso.

Por fim, damos exemplo de como nosso patrimônio histórico, natural e cultural tem sido predado: (1) recentemente se noticiou que o Ministério Público Federal[10] investiga a partida ilegal para a Alemanha de fóssil de dinossauro que foi encontrado no Ceará e (2) que o Governo Federal litigou nos Estados Unidos, para reaver uma esmeralda gigante[11],  de mais de 360 kg e avaliada em cerca de 372 milhões de dólares, encontrada na Bahia e irregularmente levada para o exterior.

Nem tudo é passível de simples atração de investimentos.

Há valores que o dinheiro  não compra[12] e o meio ambiente protegido e íntegro é um deles.

Notas:

[1] BNDES vai conceder parques estaduais para melhorar experiência dos visitantes. Fonte, site do BNDES, 26.1.2021 – https://www.bndes.gov.br/wps/portal/site/home/imprensa/noticias/conteudo/bndes-vai-conceder-parques-estaduais-para-melhorar-experiencia-dos-visitantes

[2] “Quando a Administração Pública declara a motivação de um ato administrativo discricionário, a validade do ato fica vinculada à existência e à veracidade dos motivos por ela apresentados como fundamentação. […] No caso, embora seja discricionário, o ato administrativo de exoneração foi motivado. Assim, constatada a inexistência de pedido de exoneração da autora, a Turma concluiu que ficou demonstrada a incompatibilidade entre o motivo expresso no ato e a realidade fática; por isso, declarou a nulidade do ato de exoneração. Acórdão n. 932849, 20140110639549APO, Relatora: GISLENE PINHEIRO, Revisor: J. J. COSTA CARVALHO, 2ª Turma Cível, Data de Julgamento: 6/4/2016, Publicado no DJE: 13/4/2016. Pág.: 194.” (nossos os grifos e destaques)

[3] Fonte Internet. Wikipedia. https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_parques_nacionais_do_Brasil, consulta em 28.1.2021, às 16:03h.

[4] Acampamento de grileiros em parque nacional de Rondônia é desmontado – Instituto Chico Mendes estima que nos dois últimos anos, no Parque Nacional do Pacaás, mais de dois mil hectares viraram capim para o gado. – 28.2.2018. http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2018/07/acampamento-de-grileiros-em-parque-nacional-de-rondonia-e-desmontado.html; consulta em 28.1.2021, às 16:42h.

[5] Polícia Civil acaba com grilagem dentro do Parque Nacional de Brasília – Os grileiros vendiam os lotes e depois cobravam taxas, quem não pagava era expulso do local – Francine Marquez. 27.6.2019 – https://diariodopoder.com.br/brasil-e-regioes/policia-civil-acaba-com-grilagem-dentro-do-parque-nacional-de-brasilia; consulta em 28.1.2021, às 13:14h.

[6] Imagens aéreas mostram resgate de vítimas de confronto durante ação para destruir garimpo ilegal em SP – Um dos vigilantes do Parque Estadual Intervales, em Sete Barras, no interior de São Paulo, foi baleado na cabeça e não resistiu. – Por G1 Santos – 03/05/2020 15h09  Atualizado há 8 meses – https://g1.globo.com/sp/santos-regiao/noticia/2020/05/03/imagens-aereas-mostram-resgate-de-vitimas-de-confronto-durante-acao-para-destruir-garimpo-ilegal-em-sp.ghtml; 28.01.2021, às 09:38h.

[7] DEVISATE, Rogerio Reis. Raul Seixas cantava Aluga-se e vaticinava o presente. Artigo publicado no Site direitoagrario.com – https://direitoagrario.com/raul-seixas-cantava-aluga-se-e-vaticinava-o-presente/

[8] Inea e polícia fazem operação após denúncias de construções irregulares da milícia na Zona Oeste do Rio – Às 7h10, agentes haviam apreendido duas retroescavadeiras e encontrado 4 condomínios irregulares na reserva ambiental com mais de 4 mil hectares, que abrange Rio, Nova Iguaçu e Mesquita. Por Guilherme Peixoto, Bom Dia Rio – 29/05/2020 07h38  Atualizado há 8 meses – https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/05/29/policia-faz-operacao-apos-denuncias-de-construcoes-irregulares-da-milicia-na-zona-oeste-do-rio.ghtml – consulta em 28.1.2021, às 13:01h.

[9] DEVISATE, Rogerio Reis. Grilagem das Terras e da Soberania. Rio de Janeiro. Ed. Imagem. 2017, 412 fls.

[10] MPF investiga saída ilegal de fóssil cearense de dinossauro para Alemanha (Segundo os autores do estudo, há uma autorização, emitida em 1995 para levar o material para a Alemanha. Segundo comunidade científica brasileira, documento não tem validade.) Por Antonio Rodrigues, G1 CE, 23/12/2020 – https://g1.globo.com/ce/ceara/noticia/2020/12/23/mpf-investiga-saida-de-fossil-de-dinossauro-do-ceara-material-estaria-irregular-na-alemanha.ghtml; consulta em 27.01.2021, às 21:03h.

[11] Decisão judicial pode repatriar ‘Esmeralda Bahia’ – Quinta, 14 de Setembro de 2017 – 21:40 – https://www.bahianoticias.com.br/noticia/212279-decisao-judicial-pode-repatriar-esmeralda-bahia.html; consulta em 28.01.2021, às 16:29h.

[12] SANDEL, Michael J. O que o dinheiro não compra: os limites morais do mercado – tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro. Ed Civilização Brasileira, 2012.

Rogério Reis Devisate
Advogado/RJ. Membro da Academia Brasileira de Letras Agrárias e da Academia Fluminense de Letras. Presidente da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários da UBAU, Membro da Comissão de Direito Agrário da OAB/RJ. Defensor Público/RJ junto ao STF, STJ e TJ/RJ. Associado ao IBAP e à UBE. Autor de vários artigos e dos livros Grilos e Gafanhotos Grilagem e Poder, Diamantes no Sertão Garimpeiro e Grilagem das Terras e da Soberania. Instagram @rogeriodevisate

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