Por Rodrigo Birkhan Puente
O Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao julgar o Recurso Especial N° 2.205.709 – MG, afetado sob o rito dos repetitivos (Tema 1.377), proferiu uma decisão de vasto impacto para a aplicação do Direito Penal Ambiental no Brasil. A Terceira Seção da corte fixou uma tese que redefine os contornos probatórios do crime de poluição, previsto no artigo 54 da Lei n. 9.605/1998.
A tese firmada foi a seguinte:
“O tipo previsto na primeira parte do caput do artigo 54 da Lei n. 9.605/1998 possui natureza formal, sendo suficiente a potencialidade de dano à saúde humana para a configuração da conduta delitiva, não sendo exigida a efetiva ocorrência do dano, nem a realização de perícia técnica, podendo a comprovação se dar por qualquer meio de prova idôneo.”
Embora fundamentada nos princípios constitucionais de prevenção e precaução ambiental, a decisão representa uma relativização de garantias penais e processuais mínimas, esvaziando a necessidade de comprovação da materialidade delitiva e flertando perigosamente com a responsabilidade penal objetiva.
A Flexibilização do Perigo: Do Concreto ao Abstrato Total
O caso que deu origem ao recurso tratava de poluição sonora. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) havia desclassificado a conduta do art. 54 da Lei de Crimes Ambientais para a contravenção penal de perturbação do sossego (art. 42 do Decreto-Lei n. 3.688/1941). O TJMG entendeu que, para o crime ambiental, seria necessária a comprovação de uma poluição de “considerável magnitude”, apta a causar ou potencialmente causar danos à saúde, o que não foi demonstrado nos autos.
A decisão do tribunal estadual, embora reformada, buscava manter um lastro mínimo de materialidade. O tipo penal do art. 54 exige “poluição […] em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana”8. A expressão “possam resultar” já configura o crime como de perigo concreto ou, no mínimo, de perigo abstrato com um nível de ofensividade demonstrável. Exige-se a potencialidade do dano.
O STJ, contudo, ao acolher o recurso do Ministério Público, classificou o delito como de natureza formal e perigo abstrato. Na prática, a corte entendeu que a mera conduta de poluir (no caso, emitir ruídos acima dos limites) é suficiente, presumindo-se de forma absoluta (juris et de jure) o perigo para a saúde humana.
Essa interpretação dispensa o órgão acusador de provar que a poluição específica tinha a potencialidade de causar dano. O perigo deixa de ser um elemento do tipo que precisa ser provado (perigo concreto) e passa a ser uma presunção legislativa (perigo abstrato).
A Relativização da Prova: A Desnecessidade da Perícia
O ponto mais crítico da tese fixada pelo STJ é a afirmação de que “não sendo exigida… a realização de perícia técnica”.
Em crimes que deixam vestígios (delicta facti permanentis), como a poluição, o exame de corpo de delito (perícia) é, via de regra, indispensável para a comprovação da materialidade, conforme o art. 158 do Código de Processo Penal. No caso da poluição sonora, a perícia (medição com decibelímetro) é o que estabelece se a conduta atingiu “níveis tais” que a caracterizam como poluição, distinguindo-a de um mero incômodo.
Ao dispensar a perícia e afirmar que a comprovação pode se dar por “qualquer meio de prova idôneo”1, o STJ abre um precedente perigoso. Como se pode provar “poluição sonora” acima dos níveis legais sem uma medição técnica? A decisão sugere que provas testemunhais ou relatórios de fiscalização não periciais seriam suficientes.
Isso rebaixa drasticamente os elementos mínimos de prova. Troca-se a prova técnica e objetiva, que afere se o “nível” de poluição foi atingido, por provas subjetivas e, muitas vezes, falíveis. O que impede, agora, que alguém seja condenado criminalmente por poluição sonora com base unicamente no testemunho de vizinhos que afirmam que “o som estava muito alto”, sem qualquer medição objetiva?
Conclusão: O Risco da Eficiência Punitiva sobre o Garantismo
A decisão do STJ no Tema 1.377, embora alinhada a uma visão de máxima proteção ao meio ambiente, o faz ao custo de garantias fundamentais do Direito Penal, que deve operar como ultima ratio.
Ao fundir os conceitos de “perigo abstrato” com a “dispensa de perícia técnica”, a corte não apenas dispensa a prova do resultado (dano efetivo), mas também a prova da potencialidade do dano (perigo concreto) e, mais grave, a própria prova técnica da materialidade da conduta (aferição dos “níveis” de poluição).
O resultado é um alargamento desproporcional do tipo penal do art. 54. A tese transforma um crime que exigia a demonstração de um risco (ao menos potencial) em um crime de mera conduta, onde a prova técnica da própria conduta é flexibilizada. Isso aproxima a punição ambiental de uma responsabilidade objetiva, onde basta a acusação de poluir — provada por “qualquer meio” — para que se presuma o perigo e se justifique uma condenação criminal, relativizando o princípio da necessidade de prova robusta da materialidade para além de qualquer dúvida razoável.
Rodrigo Birkhan Puente – Advogado, Especialista em Direito Ambiental pela Unisinos, Consultor Jurídico da Sociedade Brasileira de Arborização Urbana – SBAU (2014 – 2017)
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