por Leandro Eustáquio.
O surgimento de um novo vírus identificado em Wuhan, província de Hubei na China, em dezembro de 2019 é o responsável pela disseminação da doença denominada Covid-19. Inicialmente declarada como Emergência de Preocupação Internacional em 30/01/20, foi posteriormente reconhecida como pandemia pela Organização Mundial de Saúde[1] em 11/03/2020.
A pandemia atingiu o território tupiniquim em cheio. Enquanto este artigo estava sendo redigido, 555.383 brasileiros já tinham sido contaminados e mais de trinta mil já tinham sido levados a óbito[2]. Em números absolutos de casos, o Brasil é o segundo país no mundo com o maior número de contaminações e isso comprova a ineficiência do Poder Público. Basta lembrar medidas risíveis, como a mal sucedida expansão do rodízio no Município de São Paulo[3].
A Pandemia também atacou o Estado do Amazonas com muita força. Do início de março de 2020 para cá, o Amazonas passou a ser pauta diária dos noticiários televisivos e também do noticiário jurídico. Essas matérias vêm publicizando os desafios impostos ao Estado e à população amazonense pelo Covid 19, que já atingiu mais de quarenta e dois mil casos confirmados.
No dia 13 de março, foi reportado o primeiro caso de COVID-19 no estado amazonense e no dia 16 do mesmo mês o governador decretou situação de emergência de saúde pública[4]. Esse ato determinou em 23 de março algumas medidas de distanciamento social[5]. Assim, a atenção do país[6] mirou a capital amazonense que registrava o maior número de mortes por habitantes na primeira fase de infecção no Brasil. Há estudos[7] que apontam que em Manaus um em cada dez habitantes já teve Covid-19. As reportagens contam também sobre o colapso do Sistema Público de Saúde, narrando o caos nos hospitais e nos cemitérios da capital onde já morreram mais de 1.390 pessoas.
Muito rapidamente, a chave girou para o interior, complicando a realidade dos municípios amazonenses durante a pandemia, especialmente pela ausência de leitos de UTI, o que só contribuiu para agravar a situação da capital. Sem hospital por perto, contaminados ficaram sem tratamento, correndo risco de vida e aumentando a possibilidade de espalhar o vírus. Diante disso, chamou atenção a logística do deslocamento dos infectados para Manaus.
Pouco mais de dez cidades do interior do estado Amazonas, de um total de quase setenta, conseguem chegar a Manaus por rodovias. Esse é o caso de Novo Aripuanã-Amo, que registou cerca de 63 pessoas[8] contaminadas e que distancia-se 226 km de Manaus em linha reta. Porém, embora estejam relativamente próximas, o deslocamento terrestre entre a capital do estado e a cidade mostra um percurso que atinge cerca de 1.374 km por vias terrestres. Isso faz de Novo Aripuanã-Amo a cidade brasileira mais distante de um leito de UTI por vias terrestres. Ademais, ressalta-se que a viagem desse cidade a Manaus dura em torno de trinta horas.
A dificuldade do deslocamento em busca da Unidade de Tratamento mais próxima parece não incomodar a própria prefeitura, que vem executando uma obra de revitalização da orla fluvial do Município, listada como essencial para Novo Aripuanã.
No final do mês de maio, atendendo ao pedido do Ministério Público e da Defensoria Pública Estadual, o juiz Rosberg Souza Crozara determinou[9] que a Prefeitura de Novo Aripuanã apresentasse em 72 horas os atos de fiscalização e os protocolos sanitários implementados pela vigilância sanitária municipal para evitar a propagação do novo coronavírus.
Segundo os autores da ação, na obra de revitalização realizada pela Prefeitura não estariam sendo adotadas medidas de prevenção contra a Covid-19, uma vez que o empreendimento contribui para a aglomeração de pessoas, dada a quantidade de cem operários no local.
O magistrado entendeu que determinar a suspensão imediata da obra seria uma medida drástica, dada a irreversibilidade dos efeitos de eventual decisão nesse sentido, visto os prazos de execução a serem seguidos no projeto e os efeitos sociais da perda do emprego dos operários.
Apesar desse imbróglio jurídico e do tempo do percurso, a opção de se deslocar de Novo Aipuranã para Manaus de carro existe, o que é um alento. Para outras cinquenta cidades do Estado, só é possível chegar até a capital amazonense de avião ou de barco.
É o caso de Parintins na divisa com o Pará. O deslocamento até a capital, distantes aproximadamente 400 km em linha reta, pode ser feito em duas horas e meia de viagem por meio de avião. Pelo rio, as viagens costumam durar 20 horas, a depender da embarcação escolhida.
Para aumentar o isolamento social, Parintins decretou[10] toque de recolher logo que a pandemia começou a preocupar na capital amazonense. Na cidade, testaram positivo alguns internos da unidade prisional municipal[11] e também o chefe de enfrentamento à pandemia no município que foi removido para tratamento em São Paulo em 28 de maio. Em Parintins[12], mais de 673 pessoas já tiveram o Covid-19.
Se a Parintins é possível chegar de barco e/ou de avião saindo de Manaus com relativa facilidade, há cidades amazonenses para as quais o trajeto é mais complicado. Serve como exemplo o percurso para São Gabriel da Cachoeira, na fronteira do Brasil com a Colômbia e com a Venezuela, distante 872 km em linha reta da capital. São quase quatro horas de voo ou mais de três dias viajando de barco.
São Gabriel tem um território maior do que o de Portugal e por lá foi decretado um toque de recolher que vai de 15 horas até às 6 horas da manhã do dia seguinte. Essa foi uma das medidas tomadas pelas autoridades para proteger os mais de 45 mil habitantes da região, conhecida como “cabeça do cachorro”, pela semelhança entre o mapa geográfico e a face do animal. Também com o objetivo de isolar a região, todo transporte aéreo e fluvial foi interrompido por decretos estadual e municipal[13]. Por lá, não há nenhuma unidade de tratamento intensivo ou respirador mecânico.
Mesmo com a interrupção, alguns barcos continuavam a vir de Manaus com destino a São Gabriel, trazendo pessoas que precisavam voltar para suas casas. A notícia[14] conta que os passageiros ficariam em quarentena dentro das próprias embarcações, até que se fizesse a necessária testagem.
Vale lembrar que São Gabriel é a cidade mais indígena do Brasil. Lá, nove entre dez habitantes são indígenas, sendo o município com maior predominância deles no país. São vinte e três etnias diferentes e, de acordo com informações do Comitê de Enfrentamento à covid 19, pelo menos treze indígenas morreram por causa da pandemia. São mortes de pessoas das etnias Baré (4), Piratapuia (3), Desana (2), Baniwa (1), Tariano (1), Tukano (1) e Wanano (1).
A vulnerabilidade dos povos indígenas amazonenses levou até mesmo o Papa a se preocupar com eles[15]. Em sua oração dominical no dia 31 de maio, a primeira nos últimos três meses, o Pontífice relembrou o sínodo da região da região amazônica que havia terminado há sete meses.
Também preocupada com os povos indígenas, em 21 de Maio, a juíza Jaiza Maria Pinto Fraxe, da 7ª Vara Federal Ambiental e Agrária do Amazonas, concedeu tutela de urgência para obrigar União, Ibama, ICMbio e Funai a estabelecerem plano emergencial contra o desmatamento e a infecção de comunidades indígenas pelo coronavírus.
Na decisão[16], a magistrada anotou que “Não há que se falar em falta ou limitação de recursos orçamentários, uma vez que o estado de calamidade justifica e autoriza a adoção de medidas urgentes que visam a exatamente proteger e preservar a sóciobiodiversidade amazônica para não agravamento da Covid-19 e não retrocesso do status quo ambiental”.
Vindo para o campo religioso, também no início de maio, a Assembleia Legislativa do Estado do Amazonas aprovou a reabertura de todas as igrejas em todo o Amazonas[17], o que parece sem muito sentido, já que com a abertura desses espaços provocará aglomerações. Cabe lembrar que o projeto ainda segue para sanção-veto pelo Governador do Estado.
Infelizmente, o Estado do Amazonas também foi notícia por motivos de “corrupção” de um sistema de saúde fragilizado pela má gestão e desvios de verbas que ocorrem há vários governos[18].
Apesar da corrupção que une o Amazonas ao restante do Brasil, apesar dos desafios impostos a Manaus, apesar da logística do deslocamento entre a capital e o interior do estado; o território amazonense é maravilhoso e completamente diferente de tudo que se vê Brasil afora. Quem conhece, sabe disso. Quem não conhece, passada a pandemia, precisa fazê-lo.
Há inúmeros exemplos da diversidade única do estado amazonense e alguns deles vêm das próprias cidades para as quais a pandemia chamou atenção. Parintins é mundialmente conhecida pelo festival folclórico, reconhecido como Patrimônio Cultural brasileiro[19] pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN. O evento envolve a apresentação dois bois “contrários”, o Garantido (vermelho) e Caprichoso (azul). Os bois e os seus apoiadores são contrários, mas não são inimigos, diga-se de passagem.
A cidade, sobretudo no mês de junho, se divide entre as cores azul e vermelho. Basta pesquisar pelo google e conferir que por lá o Bradesco e a Coca-cola também se vestem de azul. Isso mostra o respeito que há pelas diversidades, em detrimento da polarização inútil pela qual o Brasil vem passando. Parintins dá um belo exemplo para o país e para o mundo.
São Gabriel da Cachoeira é também conhecida por possuir cerca de 5,5 bilhões de toneladas de nióbio em sua região, sendo a maior reserva desse minério em todo o mundo[20] e foi o primeiro município brasileiro, por lei municipal, a reconhecer idiomas indígenas como línguas oficiais[21]. Além do Português, são línguas co-oficiais o Nheengatu, que dá nome ao 14º disco dos Titãs[22], uma das melhores Bandas de Rock do Brasil, o tucano e o baníua. A norma municipal garante, entre outras coisas, que as repartições públicas tenham atendimento, oral e escrito, nas quatro línguas.
Há outras cidades que também são encantadoras, como Humaitá, próxima ao Estado de Rondônia. Lá nasceu Almino Afonso[23], ex-Ministro e ex-vice Governador do Estado de São Paulo, pai do titã Sérgio Britto.
Mas o melhor do Amazonas é o povo Amazonense. Ele te receberá de braços abertos, vai te levar para tomar um caldo “quente” em Manaus, para comer um tambaqui ou um baião de dois em um restaurante da cidade ou para tomar cachaça em uma das unidades do Dedé ou mesmo te contar as histórias folclóricas e as músicas maravilhosas de lá. Radyr, Luciana, Savio, Esmael, Dona Martha, Josefran e Thiago Flores estão te esperando.
De certa forma, é importante agradecer a Pandemia, pois ela (re)descobriu o Estado do Amazonas e o povo amazonense também.
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Notas:
[1]https://www.who.int/dg/speeches/detail/who-director-general-s-opening-remarks-at-the-media-briefing-on-covid-19—11-march-2020. Acesso em 01/06/2020.
[2]https://covid.saude.gov.br/ – Acesso em 03/06/2020
[3] https://direitoambiental.com/o-rodizio-de-carros-em-sao-paulo-a-politica-de-mobilidade-urbana-fracassou-no-combate-ao-corona-virus/ – Acesso em 01/06/2020
[4] https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=391375 – Acesso em 01/06/2020
[5] https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=391363 – acesso em 01/06/2020
[6] https://www.youtube.com/watch?v=BTwo5cj4C3A – Acesso em 01/06/2020
[7] https://oglobo.globo.com/sociedade/coronavirus/em-manaus-um-em-cada-dez-habitantes-ja-teve-covid-19-diz-estudo-24433139 – acesso em 02/06/2020
[8] https://d24am.com/coronavirus-no-amazonas/casos-confirmados-de-covid-19-no-amazonas-chegam-a-20-913/ – acesso em 03/06/2020
[9] https://amazonasatual.com.br/juiz-pede-explicacoes-sobre-obra-em-novo-aripuana-que-pode-violar-regras-contra-covid-19/ – acesso em 02/06/2020
[10] https://www.conjur.com.br/2020-jun-01/estados-municipios-criaram-10-mil-leis-durante-epidemia – acesso em 02/06/2020
[11] https://d24am.com/coronavirus-no-amazonas/unidade-prisional-de-parintins-confirma-mais-sete-casos-de-covid-19/ – acesso em 02/06/2020
[12] https://d24am.com/coronavirus-no-amazonas/casos-confirmados-de-covid-19-no-amazonas-chegam-a-20-913/ – acesso em 03/06/2020
[13] https://amazonia.org.br/2020/03/cidade-mais-indigena-do-brasil-sao-gabriel-da-cachoeira-se-isola-contra-o-covid-19/ – acesso em 03/06/2020
[14] https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/cidade-mais-indigena-do-brasil-sao-gabriel-da-cachoeira-se-isola-contra-a-covid-19 – acesso em 02/06/2020
[15] https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/rfi/2020/05/31/papa-expressa-preocupacao-com-indigenas-da-amazonia-ao-retomar-oracoes-diante-de-fieis-no-vaticano.htm – Acesso em 01/06/2020
[16] https://www.conjur.com.br/dl/juiza-determina-plano-emergencial.pdf – acesso em 01/06/2020
[17] https://amazonasatual.com.br/assembleia-do-amazonas-aprova-projeto-que-reabre-igrejas-e-tempos-na-pandemia/ – Acesso em 01/06/2020
[18] https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,no-amazonas-corrupcao-e-ma-gestao-agravam-situacao-durante-pandemia-do-coronavirus,70003300938 – acesso em 03/06/2020
[19] http://cultura.gov.br/boi-bumba-recebe-certificado-de-patrimonio-cultural-do-brasil/ – acesso em 03/06/2020
[20] https://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%A3o_Gabriel_da_Cachoeira – acesso em 03/06/2020
[21] https://www.ebc.com.br/cultura/2014/12/linguas-indigenas-ganham-reconhecimento-oficial-de-municipios – acesso em 03/06/2020
[22] https://pt.wikipedia.org/wiki/Nheengatu_(%C3%A1lbum) – acesso em 03/06/2020
[23] https://pt.wikipedia.org/wiki/Almino_Monteiro_%C3%81lvares_Afonso – acesso em 03/06/2020.
Veja também:
– Efeitos da Covid-19 quanto aos resíduos contaminados