Por Talden Farias[1] e Marcelo Bedoni[2]
Durante a realização da COP-27, em Sharm El-Sheikn, no Egito, um jurista brasileiro recebeu um importantíssimo prêmio internacional em reconhecimento à sua dedicação para o enfrentamento das mudanças climáticas pela perspectiva do Direito. Esse jurista é Caio Borges, coordenador do Programa de Direito e Clima do Instituto Clima e Sociedade (iCS) e com uma ampla formação acadêmica, sendo graduado em Direito pela UFPB, mestre em Direito e Desenvolvimento pela Escola de Direito de São Paulo da FGV-SP e doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP, com período sanduíche em Fudan University, em Xangai, na China. O prêmio, por sua vez, é o Climate Law & Governance Global Leadership Awards de 2022, na categoria direito climático, sociedade civil e líderes comunitários, sendo talvez o mais relevante da área no plano internacional.
Ele coordenou o programa de Empresas e Direitos Humanos e Desenvolvimento e Direitos Socioambientais da Conectas Direitos Humanos (2014-2019), lecionou no Master em Gestão da Sustentabilidade e foi pesquisador do Centro de Direitos Humanos e Empresas da FGV-SP e do Centro para Estudos sobre África, América Latina e Caribe da O. P. Jindal Global University, na Índia. Atuou no setor financeiro privado por mais de 10 anos, tendo experiência em finanças sustentáveis, empresas e direitos humanos e desenvolvimento internacional, quando então começou a atuar no terceiro setor. Caio Borges é um dos personagens mais influentes da atual e pioneira comunidade jurídica brasileira que busca, em suas próprias palavras, “cimentar um campo de direito das mudanças climáticas no país”. Entre seus campos de atuação estão litigância climática, participação da sociedade civil na governança climática, educação jurídica e justiça climática. Sua contribuição é ampla, englobando consultorias, capacitações, publicações e inúmeras palestras. A presente entrevista busca, então, apresentar um panorama geral de todas essas áreas de atuação e, dessa forma, sintetiza a experiência acadêmica e profissional de um verdadeiro porta-voz pelo clima no país e que agora foi, justamente, premiado internacionalmente.
Diante disso, o DireitoAmbiental.adv convidou o advogado e professor Caio Borges, um dos maiores especialistas no tema no país, e com renome internacional na área, para falar sobre o Direito do Clima.
1) Em primeiro lugar, qual foi o seu sentimento após a premiação e qual a importância do prêmio para a comunidade jurídica brasileira preocupada com a crise climática?
Caio Borges: Meu sentimento imediato foi de orgulho por todo o trabalho coletivo que a sociedade civil brasileira tem realizado para cimentar um campo de direito das mudanças climáticas no país. Espero que esta premiação incentive a comunidade jurídica brasileira, em toda a sua diversidade, a intensificar seus esforços no sentido da implementação efetiva do Acordo de Paris e seu objetivo central de limitar o aquecimento global a não mais que 1.5°C em relação aos níveis pré-industriais.
2) “Vocês são todos advogados climáticos agora, quer queiram ou não” (https://www.reuters.com/legal/litigation/you-are-all-climate-lawyers-now-john-kerry-tells-aba-2021-08-05/), essa é uma frase de John Kerry, primeiro enviado presidencial especial dos Estados Unidos para o clima. Esse também é o seu esse pensamento? Todos os advogados brasileiros, independentemente da área de atuação, também são – ou deveriam ser – advogados pelo clima?
Caio Borges: Costumo dizer que o direito terá de sofrer uma profunda transformação para que seja capaz de dar respostas efetivas e eficazes às mudanças climáticas. Nenhuma área do direito irá permanecer indiferente à mudança do clima, porque a transição para uma economia de baixo carbono – que é um dos objetivos centrais do Acordo de Paris – requer mudanças estruturais e sistêmicas nos planos econômico, político e social, que por sua vez dependem de profundas mudanças no plano institucional, que é onde o direito opera por excelência.
Embora o direito ambiental seja tradicionalmente a porta de entrada para a maioria dos profissionais e estudiosos do direito que se interessam pelo assunto, uma análise jurídica robusta da mudança do clima requer a mobilização – e, em muitos casos, revisão – das teorias, institutos, categorias e conceitos das mais diversas disciplinas jurídicas, como o direito administrativo, direito civil, direito penal, direito empresarial, direito constitucional, direito internacional etc.
Um exemplo de instituto jurídico que é sumamente importante para destravar a governança climática é o da responsabilidade civil. À medida em que as negociações internacionais começam a ser mais permeáveis ao tema das perdas e danos, será preciso repensar quais são os critérios jurídicos para a alocação de deveres e responsabilidades no contexto das mudanças climáticas, tanto nas relações jurídicas entre Estados como entre partes privadas. Conceitos que já sofreram transformações ao longo do tempo, como a responsabilidade solidária e o nexo de causalidade, adquirem contornos ainda mais complexos diante da mudança do clima, pois este é um fenômeno global, porém de efeitos locais, e multifatorial, porém cada vez mais atribuível a fontes isoladas de emissões. No campo do direito societário, há um vivo debate sobre o escopo dos deveres fiduciários dos administradores e conselheiros de sociedades empresariais, se estes abarcam ou não aspectos ambientais, climáticos e sociais, para além dos financeiros.
Estes são apenas alguns exemplos de dilemas jurídicos que derivam da mudança do clima, há inúmeros outros que envolvem o nexo entre mudanças climáticas e direitos fundamentais, a responsabilidade internacional dos Estados, a aplicação da lei penal a delitos que contribuem com o aquecimento global etc.
3) A sociedade civil organizada no mundo todo vem desenvolvendo um papel de protagonismo no enfrentamento das mudanças climáticas. Nessa linha, você pode apresentar um breve panorama acerca da atuação da sociedade civil na agenda climática brasileira?
Caio Borges: A agenda climática avançou bastante em praticamente todos os segmentos da sociedade civil brasileira. Houve um significativo crescimento e diversificação do perfil de organizações engajadas com o tema. Além de mais atores, há também muito mais colaboração, com diversas iniciativas intersetoriais que congregam organizações não governamentais, empresas, think-tanks, centros de pesquisa, dentre outros.
Nos últimos anos, em que lamentavelmente a política climática deixou de ser uma prioridade na esfera governamental federal, a sociedade civil brasileira desempenhou um papel fundamental na manutenção da integridade do arcabouço jurídico-institucional que alicerça a política climática. Além disso, a sociedade civil fomentou compromissos políticos e econômicos junto a atores subnacionais e privados, articulou visões para um desenvolvimento alinhado a uma economia de baixo carbono e trouxe mais vozes para o centro do debate climático.
Apesar dos percalços, a sociedade civil brasileira – e a sociedade em geral – possui hoje uma maior compreensão a respeito da importância da agenda climática para a concretização de agendas igualmente importantes, como a de efetivação dos direitos fundamentais e a do desenvolvimento econômico e social.
4) Nos últimos três anos, observou-se a consolidação da litigância climática no Brasil, que foi usada, principalmente, como um instrumento para superar a inércia do governo federal no desenvolvimento da política climática nacional. Na sua opinião, qual a contribuição da sociedade civil organizada para esses litígios climáticos?
Caio Borges: Nesse contexto que mencionei anteriormente de mudança da orientação do governo federal quanto à agenda climática, que ocorreu paralelamente a uma maior assimilação da mensagem da comunidade científica sobre a emergência climática, floresceu na sociedade civil brasileira o uso mais estratégico das ferramentas jurídicas para o enfrentamento da crise climática. A aproximação entre o direito e a mudança do clima pode ser evidenciada pelo crescente número de estudos que conectam questões climáticas com análises jurídicas, pelo aumento significativo de litígios climáticos e pela consolidação de redes jurídicas sobre o clima, como é o caso da LACLIMA.
Na litigância climática mais especificamente, a sociedade civil promoveu, muitas vezes em articulação com atores do sistema político e de justiça, ações-chave para a contenção de retrocessos na política e na governança climática que estavam desviando o Brasil de seus compromissos assumidos perante o Acordo de Paris. Nesses casos, destaca-se tanto o papel técnico-jurídico da sociedade civil, que trouxe dados e teses jurídicas inovadoras para o Judiciário, quanto o papel mobilizador, que se revela, por exemplo, na liderança e protagonismo de jovens ativistas climáticos em algumas ações, como a da “pedalada climática”.
Os resultados desses esforços são tangíveis. Temos hoje um dos principais precedentes judiciais em matéria de mudança do clima no mundo, que é a decisão da ADPF 708 sobre o Fundo Clima, de relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso. Nela, o Supremo Tribunal Federal (STF) equiparou, de modo inédito, os tratados em matéria ambiental e climática aos tratados de direitos humanos, colocando-os assim em posição de supralegalidade, conforme jurisprudência da Corte.
5) “Aqueles que menos contribuíram para a crise climática estão colhendo a desordem semeada por outros”, alertou António Guterres, Secretário-Geral da ONU, na COP-27. Além disso, ele relacionou o tema de perdas e danos, que pode ser considerado uma das conquistas da conferência no Egito, como uma questão fundamental de justiça climática (https://www.metropoles.com/mundo/na-cop27-guterres-alerta-que-mundo-caminha-para-inferno-climatico). Como você analisa a relação de justiça climática com a litigância internacional, transnacional e nacional?
Caio Borges: A concepção de justiça climática, sob um viés político e social, é bastante multifacetada e maleável. Ao longo das últimas décadas, diferentes atores têm invocado a justiça climática para pautar suas reivindicações perante os demais, desde os Estados mais atingidos pelos efeitos das mudanças climáticas até os grupos mais vulneráveis e expostos aos riscos e impactos da mudança do clima, como povos indígenas e comunidades tradicionais. A juventude, os movimentos antirracistas e os que lutam pela igualdade de gênero também têm se apropriado da linguagem da justiça climática, dando-lhe novos contornos e significados.
Do ponto de vista jurídico, esse caráter expansivo que caracteriza a justiça climática tem como principal efeito o de abarcar um número cada vez maior de relações jurídicas, como as relações Estado-Estado, as relações entre Estados e particulares em geral, as relações entre atores empresariais e titulares de direitos fundamentais individuais ou coletivos, e as relações entre as atuais e futuras gerações.
A partir disso é que se pode compreender os diferentes tipos de litígio climático relacionados à justiça climática da atualidade. É o caso, por exemplo, da iniciativa capitaneada por Vanuatu, endossada por uma coalizão de quase vinte Estados, para que a Corte Internacional de Justiça emita uma opinião legal sobre as responsabilidades dos Estados, perante o direito internacional, pelas mudanças climáticas. Nesse caso, busca-se firmar uma base legal para que os países mais afetados possam exigir medidas legalmente vinculantes de mitigação, adaptação e implementação por parte dos países que historicamente mais contribuíram com as mudanças climáticas.
É sob essa ótica que também é possível compreender um dos casos mais instigantes de litígio climático na atualidade, o caso Lliuya v. RWE. Nele, um pequeno agricultor da região andina do Peru pede que a justiça alemã condene a empresa ré, sediada no país europeu, a pagar uma parte dos custos necessários para a construção de obras necessárias para evitar que sua vila seja inundada pelo derretimento de geleiras das montanhas. O caso, de caráter transnacional, suscita questões como a existência de uma obrigação jurídica de reparar danos climáticos por parte de uma fonte emissora e a individualização e quantificação do dano, a partir de uma base científica sobre as emissões históricas das chamadas “Carbon Majors”.
Na litigância doméstica, o “leading case” é o caso Neubauer v. Alemanha, em que o Tribunal Constitucional alemão fincou o entendimento de que a ausência de medidas legislativas efetivas e claras para a redução das emissões de gases de efeito estufa impõe às futuras gerações restrições indevidas sobre suas liberdades individuais.
6) Fala-se em federalismo climático, mas a LC 140 não aborda diretamente esse assunto, de forma que a responsabilidade dos entes em matéria de clima ainda está muito em aberto. Na sua opinião, como essa questão da atuação climática dos entes federativos poderia ser regulamentada no país?
Caio Borges: Estamos na chamada década da “implementação” dos compromissos climáticos firmados nos períodos anteriores. A ciência é clara quanto à necessidade de se limitar severamente as emissões globais de gases de efeito estufa até 2030 para que o planeta não se aqueça além do 1.5 °C. A questão que permanece em aberto é exatamente a alocação de ônus e encargos entre os diferentes atores e níveis da governança climática. Em outras palavras, a pergunta é: qual deveria ser a contribuição justa e individual de cada um dos atores que formam a governança multinível da política climática?
A Lei da Política Nacional sobre Mudança do Clima – PNMC (Lei N° 12.187/2009) diz que as “ações de âmbito nacional para o enfrentamento das alterações climáticas, atuais, presentes e futuras, devem considerar e integrar as ações promovidas no âmbito estadual e municipal por entidades públicas e privadas”. Tal como já se havia evidenciado em países como Estados Unidos, os últimos quatro anos apenas tornaram mais evidente o papel fundamental dos entes subnacionais na agenda climática.
Por um lado, ficou claro que as decisões tomadas no plano federal podem repercutir diretamente sobre a capacidade dos estados e municípios de implementarem políticas, programas e ações locais para o enfrentamento à mudança do clima. O pacto federativo esteve presente, por exemplo, nas duas ações constitucionais sobre a paralisação dos instrumentos de financiamento climático: a ADPF 708, sobre o Fundo Clima, e a ADO 59, sobre o Fundo Amazônia. O STF ouviu, em audiências públicas, representantes dos entes subnacionais, pois estes foram diretamente afetados por decisões como a reformulação da governança dos órgãos deliberativos, que em alguns casos excluíram a sua participação, e a suspensão das operações dos respectivos fundos, inclusive desembolsos para projetos já em curso e paralisação de novas aprovações.
Por outro lado, as iniciativas lideradas por entes subnacionais no período, que abarcam desde a proteção florestal até a eletrificação de frotas de ônibus urbanas, mostraram que é possível avançar mesmo em um cenário desfavorável no plano federal.
Acredito que a maior presença dos entes subnacionais na política climática de fato merece um tratamento jurídico mais adequado que o disposto atualmente na PNMC. A atual lei não trata a política climática dos entes subnacionais com a relevância que ela de fato possui para a implementação dos compromissos brasileiros no Acordo de Paris, o que pode resultar em um baixo grau de efetividade dessas políticas. Da mesma forma que a política climática federal tem suas lacunas e limitações, as políticas subnacionais também podem ser acometidas por problemas como a capacidade insuficiente de implementação, o baixo grau de participação e a fragilidade dos mecanismos de accountability.
Importante mencionar o papel da litigância climática na regulação indireta do assunto, pela definição mais clara de papéis e responsabilidades, mesmo quando se trata da judicialização de casos concretos, e não de ações de controle abstrato. Ações de litigância propostas em face de decisões tomadas no plano estadual, como a concessão de licenças para projetos de combustíveis fósseis que agravariam a mudança do clima, têm contribuído para jogar luz sobre a extensão do poder decisório de autoridades subnacionais em determinar a política climática nos limites de suas respectivas competências. Em alguns casos, os tribunais extraíram, diretamente da lei federal e/ou das leis estaduais, o dever de que os entes subnacionais passem a integrar a dimensão climática às mais diversas políticas públicas locais.
[1] Advogado e professor de Direito Ambiental da UFPB e da UFPE. Pós-doutor e doutor em Direito da Cidade pela UERJ. Membro da CONDA/CFOAB, do IAB e Vice-Presidente da UBAA. Autor de publicações nas áreas de Direito Ambiental e Urbanístico.
[2] Advogado. Mestrando em Ciências Jurídicas pela UFPB e bacharel em Direito pela UFRR. Membro da CDA/OAB-PB, do Laclima e do FFF/PB. Autor de publicações na área de Direito Ambiental.
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