A legalidade de coexistência do Plano Diretor e da Lei de Uso e Ocupação do Solo
Por Maurício Fernandes*
Recentemente, críticas foram dirigidas ao Município de Porto Alegre por optar por uma estrutura legislativa que separa um Plano Diretor Estratégico de uma Lei voltada ao Uso e Ocupação do Solo. A acusação de que tal “fracionamento” seria ilegal carece, no entanto, de qualquer respaldo jurídico, técnico ou doutrinário — e ignora as boas práticas consolidadas no planejamento urbano de grandes cidades do país.
A Constituição Federal (art. 182, §1º) e o Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001) definem o Plano Diretor como o instrumento básico da política de desenvolvimento urbano. Contudo, a legislação não exige que este plano se esgote em um único diploma legal. Ao contrário: reconhece que o ordenamento territorial pode e deve ser complementado por leis específicas que detalhem seus parâmetros técnicos. O próprio Estatuto condiciona a aplicação de instrumentos urbanísticos à existência do plano diretor e de legislação municipal específica (art. 40, §1º), o que já demonstra a legitimidade do desdobramento normativo.
A separação entre diretrizes estratégicas e regras operacionais — como gabarito, recuos, coeficientes de aproveitamento e usos permitidos — é prática adotada em cidades como São Paulo, Curitiba e Santa Maria. Nessas, o Plano Diretor cumpre sua função político-estratégica, enquanto a Lei de Uso e Ordenamento do Solo traduz essas diretrizes em comandos técnicos precisos e adaptáveis à realidade urbana em constante mutação.
A crítica ao modelo de Porto Alegre parte de uma leitura literalista e sobremaneira limitada do ordenamento jurídico, bem como ignora princípios fundamentais da técnica legislativa, como a especialização normativa e a clareza regulatória. Além disso, despreza o fato de que o planejamento urbano envolve necessariamente a integração entre visão estratégica e normatização técnica, cuja separação metodológica favorece a gestão pública, o controle social e a participação democrática.
Mais grave ainda, se vingar a tese de que todas as regras de uso do solo deverem constar somente no Plano Diretor, estar-se-ia negando validade a centenas de normas regulamentares editadas desde 1999 — instrumentos amplamente utilizados por municípios brasileiros para disciplinar zonas especiais de interesse social, usos específicos, critérios ambientais e parâmetros construtivos. Essa posição levaria ao absurdo de considerar como ilegítima uma prática administrativa consolidada e necessária à execução eficiente do plano diretor.
Defender que a cidade deva conter todo o conteúdo urbanístico em um único diploma, sob pena de ilegalidade, é restringir indevidamente a competência constitucional do Município para organizar seu território conforme o interesse local (art. 30, I e VIII da CF/88).
Porto Alegre pode e deve optar por uma estrutura moderna, articulada e funcional. Dividir não é fragmentar — é especializar, integrar e qualificar o ordenamento urbano com segurança jurídica e eficácia normativa. Ao adotar essa postura, a cidade reafirma seu compromisso com o planejamento técnico, a gestão democrática e o desenvolvimento sustentável.
*Maurício Fernandes, advogado na área ambiental e urbanística, foi Secretário do Meio Ambiente e Sustentabilidade de Porto Alegre (2017/2019).