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Desmonte do Ibama? Uma análise crítica da IN 08/2019 do Ibama

por Marcus de Almeida Lima.

 

Existe uma mistificação associada a um certo grau de desinformação quanto ao que seria um “desmonte do Ibama”, a partir da publicação da Instrução Normativa nº 8 do Ibama, em 20 de Fevereiro de 2019.  Ao contrário do que tem sido alardeado por alguns órgãos de imprensa, pretende-se demonstrar neste estudo que, não há qualquer ameaça de redução de poderes do Ibama.  A IN-08 não transfere poder para Estados ou Municípios, apenas regulamenta e estabelece critérios para a delegação de competências conforme já previsto em lei.

Neste sentido, não deixa dúvida a Instrução Normativa, que logo em seu primeiro artigo manifesta o seu objetivo:

 

Art. 1º Estabelecer os procedimentos administrativos no âmbito do Ibama para a delegação de licenciamento ambiental de competência federal para Órgão Estadual de Meio Ambien- OEMA ou Órgão Municipal de Meio Ambiente – OMMA

 

A intenção do Ibama em apenas regulamentar um instrumento de delegação de competência que já existe no ordenamento jurídico, fica bem clara na leitura dos dispositivos da Instrução Normativa.

Importante frisar que apenas a Constituição Federal detém o poder de estabelecer repartição de competências entre os entes federados, no caso União, Estados, Distrito Federal e Municípios, isso desde a CF de 1988.  No caso das competências para execução das políticas de proteção e conservação do meio ambiente, essas estão previstas no Artigo 23 da CFRB, que as distribui entre União, Estados, DF e Municípios como uma “competência comum” entre eles.  Porém, quis o legislador constituinte que através de Lei Complementar, o legislador ordinário, ao longo do tempo definisse com mais detalhe, de que forma os entes federados exerceriam essa cooperação entre eles, na divisão das competências administrativas comuns.

Apenas 23 anos depois da promulgação da chamada “Constituição Cidadã”, o legislador finalmente cumpriu o seu “dever de casa” e atendendo à expressa determinação do legislador constituinte de 1988 através do parágrafo único acima, editou a Lei Complementar 140.  A partir daquele momento, estavam estabelecidas as “regras” de distribuição de competência para licenciamento ambiental e fiscalização, dando segurança jurídica para órgãos ambientais estaduais, municipais e para o próprio Ibama identificarem suas atribuições no âmbito do poder de polícia ambiental, de forma mais clara.

Dentre essas “normas para a cooperação” entre os entes federativos, a LC-140 também se preocupou em deixar alinhadas regras para possíveis e eventuais delegações de competência entre os entes, o que o fez através dos Artigos 4º e 5º.

Art. 5o  O ente federativo poderá delegar, mediante convênio, a execução de ações administrativas a ele atribuídas nesta Lei Complementar, desde que o ente destinatário da delegação disponha de órgão ambiental capacitado a executar as ações administrativas a serem delegadas e de conselho de meio ambiente. 

Tendo discorrido rapidamente sobre a repartição de competências ambientais a partir do modelo de Federalismo Cooperativo em que nosso ordenamento jurídico se estabelece, pode-se perceber que está perfeitamente dentro da legalidade, a edição de norma interna (frise-se este aspecto, com relação ao alcance legal das Instruções Normativa) que meramente discipline o procedimento para essa delegação de competência, conferindo mais transparência e segurança jurídica ao processo.

A partir dessa premissa, de que a delegação de competência de um ente para o outro tem previsão legal expressa, passaremos a analisar a forma como o Ibama conduz esse procedimento, na expectativa de demonstrar que o formato criado pelo Ibama para executar uma delegação de competência, praticamente mantém com a União o poder de decisão de concessão ou não da licença, podendo-se inclusive questionar se o que se propõe configura de fato, uma delegação de “competência”, ou apenas de “trabalho”.

Logo em seu Artigo 10, a IN deixa claro que a decisão sobre essa delegação de competência sobre o licenciamento de um empreendimento em específico será embasada em manifestações de áreas técnicas do próprio Ibama (SERAD, DILIC e Coordenação Geral responsável pela tipologia, esta última se for o caso).  Ou seja, não é uma decisão de caráter político, mas sim técnico.  Após a manifestação técnica, o processo ainda passa por um crivo jurídico, da parte da Procuradoria Federal Especializada junto ao Ibama, antes de seguir para a aprovação do Presidente do órgão.

A Instrução Normativa traz ainda diversos instrumentos que garantem ao Ibama o controle sobre o desdobramento do processo licenciatório junto ao ente delegatário:

 

Art. 14 O exercício das atividades de licenciamento ambiental delegadas terá seu acompanhamento realizado pelo Serad, a quem compete supervisioná-lo e auditá-lo, por meio da manutenção do processo administrativo ordinário, em trâmite no Ibama

 

Atente-se para o detalhe da preocupação do órgão federal em manter um controle, talvez até excessivo, sobre a condução processual da análise do requerimento de licença, a partir do Acordo de Cooperação Técnica firmado entre este e o ente delegatário: “supervisioná-lo e auditá-lo”.   Cabe um questionamento: se o objetivo da delegação é melhor aproveitar o recurso humano do Ibama, objetivo esse mais do que justo diante da insuficiência de quadros técnicos do órgão, no sentido de empreender maior esforço e dessa forma diminuir o tempo de análise dos licenciamentos de maior complexidade e maior importância estratégica para a União, este objetivo fica prejudicado no momento em que o Ibama se obriga a manter equipe dedicada a “supervisionar” e “auditar” aquele processo que sem a delegação eles estariam mesmo tendo que conduzir.  Não me parece haver diminuição de “trabalho” do Ibama nesse caso, muito menos de controle.  Tal situação não parece caracterizar o chamado “desmonte” do Ibama.

Seguindo adiante na análise da IN-08/2019, observamos outros instrumentos criados aparentemente com a finalidade de evitar a perda de controle da União sobre licenciamentos de atividades delegadas a partir dos chamados ACT – Acordo de Cooperação Técnica.  Isso fica bastante claro na leitura dos artigos 15 e 16, abaixo transcritos:

 

Art. 15 O OEMA ou OMMA celebrante de ACT deverá produzir todos os atos administrativos inerentes à execução do licenciamento ambiental a ele delegado, devendo encaminhar ao Ibama o Relatório Técnico Anual de Atividades – RTAA, até o dia 31 de março de cada ano, conforme orientações constantes no Anexo IV desta Instrução Normativa.

Art. 16 Para a realização de atividades de supervisão e auditagem, o Ibama poderá, a qualquer tempo, realizar vistorias de acompanhamento ao empreendimento e/ou atividade cujo licenciamento foi delegado a OEMA ou OMMA.

 

Mais uma vez, fica evidenciada a plena condição do Ibama de manter o controle bem próximo do procedimento de licenciamento conduzido pelo OEMA ou OMMA delegatário, o qual, em tese, teria muita dificuldade de praticar qualquer ato de ilegalidade na condução do processo, que pudesse passar “despercebido”.  Além do Ministério Público, órgão de controle natural de legalidade do processo, o órgão ambiental estadual (OEMA) ou municipal (OMMA) delegatário, ganha mais um ente “fiscalizador”: o Ibama.  Este, que por muitos se vê vitimado por uma suposta política de “desmonte”, não tem absolutamente nada a perder, sob o ponto de vista da centralização de poderes.  Afinal, se um ente conduz o processo de licenciamento, fazendo vistorias, análises de estudos e projetos, etc, e outro detém o poder de “supervisionar” e “auditar”, é possível afirmar que este último é quem tem a competência legal sobre o licenciamento.  Essa percepção se torna ainda mais evidente ao se analisar as “medidas corretivas, da interrupção e do término da delegação” às quais a Instrução Normativa recorre para justamente manter esse “poder” sobre o processo e consequentemente sobre a decisão final quanto à concessão ou não da licença.

Sobre essa questão, assim se pronuncia a IN nos artigos seguintes:

 

Art. 17 É assegurada ao Ibama a prerrogativa de retomar a execução do licenciamento ambiental de empreendimento ou atividade delegada a qualquer tempo.

Art. 18 Constatadas irregularidades e/ou omissões cometidas durante a vigência de ACT, o Ibama poderá adotar as seguintes medidas:

I – Notificação;

II – Sessão de Conciliação;

III – Rescisão do Acordo.

 

Notem, que diante de uma interpretação livre, o Artigo 17 confere ao Ibama essa prerrogativa de retomar a execução do licenciamento ambiental delegado, a qualquer tempo, e sem muitas condições para isso, a não ser a do embasamento através de uma manifestação técnica, o que pelos princípios do Direito Administrativo já seria uma condição si ne qua non para qualquer ato praticado pelo agente público.

Para garantir ao Ibama o efetivo “controle” sobre o ente delegatário do licenciamento em específico, a Instrução Normativa prevê medidas corretivas que podem ser aplicadas de forma gradativa “de acordo com a gravidade dos fatos e/ou omissões”, sendo que a continuidade dessas irregularidades supostamente cometidas pelo órgão licenciador que assume essa condição – OEMA ou OMMA – pode levar à rescisão do que a norma se refere como Acordo de Cooperação Técnica, ou ACT.

 

Art. 21 A Rescisão do Acordo compete à Presidência do Ibama e poderá ser aplicada nas seguintes situações:

I – descumprimento de quaisquer cláusulas do ACT;

II – constatação de graves irregularidades e/ou omissões cometidas pelo partícipe delegatário;

III – denúncia por interesse de uma das partes;

IV – não entendimento entre as partes na Sessão de Conciliação;

V – por conveniência e oportunidade.

 

 Analisando o Artigo 21, transcrito acima, pode-se perceber que a União, através do Ibama, não pretende deixar nenhuma possibilidade de ao longo do desenrolar do processo de análise de um licenciamento ambiental delegado a outro ente, não ter como retomar para si essa tarefa.  Ora, quando uma norma enumera uma série de situações que venham a justificar um ato da administração pública (ver incisos I a IV) através de uma lista taxativa e encerra essa lista com um ítem como “por conveniência e oportunidade”, que simplesmente permite ao agente público praticar o ato em questão – no caso, a rescisão do acordo – fica claro que o legislador no caso deixou livre o caminho desse agente para tomar uma decisão que não esteja fundada em nenhuma das circunstâncias previstas nos incisos iniciais.

No caso concreto, isso significa dizer que a Presidência do Ibama pode rescindir um desses ACTs unilateralmente, sem que o ente delegatário sequer venha a descumprir qualquer cláusula do ACT, nem cometido grave irregularidade ou omissão no deslinde do processo de licenciamento a este delegado.

Desmonte do Ibama? Ao contrário, me parece que o espírito centralizador da União, no âmbito das competências ambientais, permanece mais vivo do que nunca.  Mesmo assim, ainda que após todas essas constatações acerca da recente publicação desta Instrução Normativa, passemos a analisar um último aspecto da IN, de forma a elucidar de vez as dúvidas dos leitores que tenham se deixado levar pela visão de determinados órgãos de imprensa que publicaram matérias que chegavam ao extremo de argumentar em seu subtítulo que o Ibama estaria “delegando competência para órgãos estaduais e municipais”[1].  Cabe esclarecer que a informação foi corrigida pelo próprio G1 após “esclarecimentos do órgão”.

Esse último aspecto, previsto no Artigo 26 da IN-08/2019, estabelece regras para uma das ferramentas do licenciamento ambiental que é da maior importância para o órgão licenciador, principalmente quando este é o ente afetado fisicamente pelos impactos do licenciamento. Trata-se da compensação ambiental.

De acordo com a norma,  apesar da delegação[2], o Ibama permanece com a prerrogativa de definir a forma e o local da compensação ambiental.   Pela interpretação “fria” do dispositivo acima, o que se conclui é que apesar de todos os recursos aplicados – horas de trabalho de seus analistas, combustível, equipamento, etc. – o órgão ambiental delegatário não terá o poder de decidir sobre a aplicação dos recursos da compensação ambiental.  Constata-se aqui um exemplo de afastamento do Princípio da Predominância do Interesse, também conhecido como Princípio da Subsidiariedade, que são essenciais à proteção do bem ambiental.

Em resumo, há que se aguardar e observar quais serão os resultados desse procedimento. Até que ponto, Municípios e Estados terão interesse em assumir competência de licenciamento que não suas de origem, se tiverem que se enquadrar nessas regras?  É necessário acompanhar esses Acordos de Cooperação Técnica para que se possa apurar qual percentual deles foi levado a cabo sem serem eventualmente rescindidos por “conveniência e oportunidade” do Ibama, ou por “irregularidades” constatadas pelos analistas do Ibama ao longo do processo.  E mais importante, é preciso averiguar, ao final de um período, se os objetivos da proposta de delegação terão sido atendidos.  Imagina-se que a razão por trás desse movimento de descentralizar competências de licenciamento seja o de dar mais capilaridade ao licenciamento de atividades potencialmente poluidoras, ao mesmo tempo “desafogando” o corpo técnico do Ibama para atividades de maior relevância nacional, ou maior impacto.

Só o tempo dirá.  Vamos acompanhar.

Notas:

[1] Ver https://g1.globo.com/natureza/noticia/2019/02/28/ibama-delega-licenciamento-ambiental-para-orgaos-estaduais-e-municipais.ghtml

[2] Instrução Normativa 08/2019: “Art. 26. Os procedimentos para fins de definição e destinação da Compensação Ambiental, aplicáveis a empreendimentos ou atividades com significativo impacto ambiental, ficarão, salvo previsão expressa em sentido contrário, sob a responsabilidade do Ibama”.

marcus Lima - Desmonte do Ibama
Marcus de Almeida Lima
Advogado graduado em direito pela Universidade Católica de Petrópolis e com mestrado em Direito da Cidade pela Uerj. Foi Presidente do Inea/RJ de 2015 até 2018, período em que representou o Estado do RJ no CONAMA, e também na ABEMA (Associação Brasileira de Entidades Estaduais de Meio Ambiente). Ocupou o cargo de Secretário Municipal de Meio Ambiente no período entre 2001 e 2004 no município de Petrópolis, RJ. Foi professor de Direito Ambiental na UCP entre os anos de 2012 a 2015. Atualmente atua como consultor jurídico de empresas, na área ambiental.

 

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