Vem ganhando destaque no Pará a atuação conjunta do Ministério Público Federal e Estadual para anular o Emission Reduction Purchase Agreement (ERPA), o chamado contrato de compra de reduções de emissões, celebrado para comercializar, no mercado voluntário, créditos de carbono gerados por projeto REDD+.
A controvérsia é decisiva para o mercado brasileiro porque testa a aplicação da Lei Federal nº 15.042/2024, que instituiu o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões (SBCE) e passou a disciplinar tanto o segmento regulado quanto o voluntário.
Vários contratos de venda de créditos ainda se amparam em normas anteriores — não compatíveis com o novo marco — e, por isso, podem ser questionados ou até anulados, sobesando-se à luz da proteção ao ato jurídico perfeito e da segurança jurídica dos investidores.
Para o mercado voluntário de carbono, a luz vermelha se acende, já que a Recomendação nº 07/2025 do Ministério Público Federal e Estadual do Pará impacta diretamente os direitos decorrentes do referido contrato de compra de créditos de carbono futuros. O ponto central nesta discussão é a proibição da venda antecipada de créditos futuros em programas REDD+ jurisdicionais, uma vez que, na visão do Ministério Público, o contrato é nulo por ofensa direta ao artigo 2º, XXVI, que proíbe a venda antecipada de créditos REDD+ jurisdicionais.
Por se tratar de um mercado em construção e de relação entre empresas privadas e o Poder Público, bem como da proteção de interesses difusos e coletivos no Pará, há alto risco de que uma disputa judicial esvazie o valor desses créditos, impactando sua integridade.
Para compreender a celeuma e a importância deste caso, é indispensável entender que o Ministério Público Federal, conjuntamente com o Ministério Público Estadual do Pará, encaminhou recomendação ao Governo do Estado do Pará e à Companhia de Ativos Ambientais e Participações do Pará S.A. (CAAPP), para a imediata anulação do Contrato de Compra de Reduções de Emissões (ERPA) firmado em 23 de setembro de 2024 com a organização Emergent Forest Finance Accelerator Inc., coordenadora administrativa da Coalizão LEAF.
O contrato trata da compra e venda de 4.420.000 Reduções de Emissões iniciais e da concessão de direito de compra de até 7.580.000 Reduções de Emissões, distribuídas ao longo dos Anos Safra 2023, 2024, 2025 e 2026, no valor de US$ 15 (quinze dólares norte-americanos) por Redução de Emissões, sem prejuízo do pagamento de lucros provenientes de eventual revenda a terceiros.
A legitimidade da Companhia de Ativos Ambientais e Participações do Pará S.A. (CAAPP) para a assinatura do contrato no âmbito do Sistema Jurisdicional de REDD+ do Estado decorre do Decreto Estadual nº 4.150/2024, que delega as seguintes competências à Companhia: desenvolver, explorar, gerar e comercializar os créditos de carbono decorrentes de ativos ambientais no âmbito do Estado e, para tanto, firmar acordos e instrumentos, nacionais e internacionais, bem como eleger as metodologias e padrões de certificação dos créditos de carbono e demais atos inerentes a essa função. Observa-se que tal sistema jurisdicional ainda está em fase de construção, não havendo normativa específica que o regulamente.
Por outro lado, como compradora das Reduções de Emissões, a Emergent Forest Finance Accelerator Inc. é coordenadora administrativa da Coalizão LEAF (Lowering Emissions by Accelerating Forest Finance — em português, “Reduzindo as Emissões pela Aceleração do Financiamento Florestal”), coalizão público-privada composta pelos governos dos Estados Unidos, Reino Unido, Noruega, República da Coreia e por corporações globais como Amazon, Bayer, BCG, Capgemini, H&M Group e Fundação Walmart.
A recomendação de anulação do contrato pelo Ministério Público se ampara na proibição da venda antecipada de créditos de carbono referentes a período futuro, conforme disposto no artigo 2º, XXVI, da Lei Federal nº 15.042/2024, que institui o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE). Referido dispositivo define os programas jurisdicionais REDD+ com abordagem de mercado como sendo políticas e incentivos positivos para atividades relacionadas à redução de emissões por desmatamento e degradação florestal e ao aumento de estoques de carbono por regeneração natural da vegetação nativa, em escala nacional ou estadual, amplamente divulgados e passíveis de recebimento de pagamentos por meio de abordagem de mercado, incluindo captação no mercado voluntário.
A norma enfatiza a necessidade de alocação de resultados entre a União e as unidades da Federação, de acordo com norma nacional pertinente, e resguarda o direito dos proprietários, usufrutuários legítimos e concessionários de requerer, a qualquer tempo e de maneira incondicionada, a exclusão de suas áreas desses programas para evitar dupla contagem na geração de créditos de carbono com base nesses projetos. Esse pode ser, por exemplo, o caso de áreas de comunidades indígenas ou outras populações tradicionais. Além disso, proíbe-se, no âmbito dos programas jurisdicionais REDD+ com abordagem de mercado, em qualquer hipótese e para evitar dupla contagem, qualquer espécie de venda antecipada referente a período futuro.
O Ministério Público aponta que a natureza jurídica dos créditos de carbono adotada no contrato consiste em commodity a ser entregue por Ano Safra, enquanto a legislação federal atribuiu natureza jurídica diversa, suprindo a lacuna de definição antes existente no país. Ainda que se adotem definições diferentes ao redor do mundo, após profunda discussão em âmbito nacional, a legislação fixou o entendimento de que os créditos de carbono possuem natureza jurídica de fruto civil, ou seja, rendimentos provenientes de bens corpóreos, que, apenas após a efetiva redução de emissões ou remoção de GEE de 1 tCO₂e (uma tonelada de dióxido de carbono equivalente) — ou seja, após sua devida certificação e constituição enquanto patrimônio incorpóreo do Estado — são considerados valores mobiliários.
No caso, de acordo com o órgão ministerial, como o objeto contratual é o certificado de emissão real reduzida — isto é, algo que ainda não está garantido enquanto patrimônio do Estado — e sendo, na verdade, valor mobiliário, bem incorpóreo e infungível, ele não pode integrar contrato futuro como se commodity fosse.
Além disso, o Ministério Público considera que: o modelo de Contrato ERPA, objeto da recomendação, configura contrato futuro, ou seja, concordância entre duas partes para firmar acordo sobre algo que ainda virá a existir; há alto grau de especulação gerado por essa modalidade contratual, o que influencia diretamente os efeitos no mercado financeiro, na regulação do mercado e na corrida empresarial pela compra desses ativos, uma vez que são países do Norte Global e suas megacorporações — historicamente responsáveis pela degradação ambiental e desigualdades sociais — que estão definindo o valor da tonelada de carbono de florestas paraenses, desconsiderando seu custo social do ponto de vista da gestão pública; essa mesma especulação pode gerar abordagens assediantes e pressão sobre povos indígenas e comunidades tradicionais no interior do Estado do Pará, sendo que algumas comunidades já se manifestaram publicamente afirmando não considerar o programa uma política pública ampliativa de direitos, mas sim uma forma rentista e colonialista de negociação e privatização de seus territórios, sem a devida consulta e consentimento livre, prévio e informado; e que tal especulação pode causar uma corrida para a aprovação do sistema de REDD+ jurisdicional, gerando efeitos deletérios concretos nos territórios tradicionais, em razão da pressa para a realização das consultas — intermediadas por organizações privadas — sem o adequado entendimento sobre a proposta e o mecanismo, o que pode acarretar divisões internas e ruptura da confiança e da organização social comunitária.
Note-se que, embora já em discussão no Congresso Nacional, a legislação federal que fundamentou a Recomendação do Ministério Público foi editada após a assinatura do contrato, realizada com base no arcabouço normativo estadual existente sobre a matéria, qual seja, a Política Estadual sobre Mudanças Climáticas (PEMC), instituída pela Lei Estadual nº 9.048/2020, o Plano Estadual Amazônia Agora (PEAA), instituído pela Lei Estadual nº 10.750/2024, e normas infralegais relacionadas.
Assim, ainda que se considere que o contrato tenha nascido válido sob a legislação vigente à época, a edição de norma nacional geral posterior traz à tona a contestação da sua forma e das disposições nele estipuladas, tanto sobre a natureza jurídica atribuída às reduções de emissões quanto sobre a titularidade daquelas geradas em áreas ocupadas por comunidades tradicionais e locais, sem prejuízo da necessidade de verificação do atendimento aos procedimentos prescritos em normas relativas a povos indígenas e tribais, em especial sobre a consulta livre, prévia e informada prevista na Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho.
Não se pode perder de vista, que na estruturação de tais operações, de alta complexidade e inovação, o risco da ocorrência de alterações legislativas ou regulatórias — denominadas “Mudança na Lei” ou “Mudança nas Regras do Programa” já é previsto em negociações de crédito de carbono bem como previsto em cláusula contratual para que tais situações possam ser dirimidas no âmbito contratual.
Normalmente, a parte afetada deverá notificar a outra com razoável detalhamento e, enquanto perdurar a incerteza normativa, as obrigações contratuais permanecem suspensas na medida do impacto. As partes comprometem-se, então, a renegociar de boa-fé os termos afetados. Assim, a Recomendação do Ministério ´Público o que reforça a relevância da alocação contratual de riscos regulatórios em mercados ambientais ainda em consolidação, como é o caso brasileiro.
Diante dos parâmetros estabelecidos pela Lei Federal nº 15.042/2024 para o funcionamento dos mercados regulado, jurisdicional e voluntário de carbono, torna-se essencial acompanhar os desdobramentos jurídicos dos contratos já firmados e revisar suas condições à luz da nova legislação. Ao mesmo tempo, é igualmente necessário que as novas negociações sejam estruturadas com base em critérios técnicos claros, segurança jurídica e respeito aos direitos das comunidades envolvidas. A consolidação de um mercado de carbono robusto e confiável no Brasil dependerá da harmonização entre os instrumentos normativos federais e estaduais, da transparência nos contratos e do engajamento legítimo das populações que vivem nos territórios onde as emissões estão sendo reduzidas.
Luciana Camponez Pereira Moralles, advogada especializada em direito ambiental e sustentabilidad
Marcela Cioffi Sgarbi, advogada especializada em direito ambiental e sustentabilidade.