Por Marcus Lima
Vivemos em uma Federação no auge de uma crise de identidade.
O legislador-constituinte, ao confeccionar a Constituição de 88, optou por um modelo de Federalismo Cooperativo, e delineou de que forma se daria essa “cooperação”. Talvez não tenha sido suficientemente claro sobre essa intenção, dadas as repetidas interpretações por parte do judiciário, na linha da centralização de poderes normativos. Em especial, nos temas relacionados com a proteção do meio ambiente.
Além de serem obrigados a “se virar” para cobrir seus gastos, dada a injusta distribuição da receita fiscal arrecadada pela União, nossos 25 Estados, Distrito Federal e mais de 5.500 municípios, acabam sempre sendo forçados a se adequar às normas definidas pela União, com quase nenhuma margem para legislar de forma “suplementar”. Mas a obrigação de investir em saneamento básico, de exercer atividades de comando e controle para evitar a degradação do meio ambiente (fiscalização, monitoramento e licenciamento ambiental), dessa obrigação raramente é possível se livrarem sem punição rápida e firme dos órgãos de controle.
Isso é exatamente o que acontece na República, assim chamada “Federativa” do Brasil, principalmente depois do advento da chamada “Constituição Cidadã”. Lá em 1988, o constituinte buscava um modelo nitidamente descentralizador de poder, mas lutando na contramão desses princípios, a União tem criado todas as dificuldades possíveis para “largar o osso”.
Um dos mais recentes exemplos desse comportamento, está demonstrado na recente promoção pela Procuradoria Geral da República de mais uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, a ADI 6618, em que questiona a constitucionalidade de dispositivos das Leis estaduais 15.434/2020 e 14.961/2016 do Rio Grande do Sul, que instituíram novas regras de licenciamento ambiental.
Esse tipo de comportamento, já pode ser considerado uma tendência, e parece encontrar respaldo em nossos ministros do Supremo Tribunal Federal, que em decisões recentes – ADI 6288 contra o Estado do Ceará (essa promovida por um partido político, sobre o mesmo tema), e mais anteriormente a ADI 5475 contra o Estado do Amapá, que também tratava de licenciamento ambiental, em especial sobre instrumentos alternativos de licenciamento ambiental.
Para desânimo daqueles que defendem uma atuação legislativa com mais autonomia por parte dos entes estaduais, o resultado dessas ações tem sido desastroso. Ainda mais porque a instituição que deveria servir de mediadora dessa relação federalista-cooperativa, atuando como balizadora desse aparente “conflito” de competências, o Supremo Tribunal Federal, tem agido, na maioria dos casos quando o tema é ambiental, no sentido de favorecer uma centralização do poder normativo, e dessa forma anulando as iniciativas dos Estados que acabam não podendo sequer legislar sobre seus procedimentos internos.
Age de forma autoritária a União quando “se defende” das iniciativas legislativas do Estado que são necessárias para permitir a implementação de políticas públicas na área ambiental, de acordo com as peculiaridades de cada região, de acordo com suas vocações econômicas, e dessa forma acaba prejudicando o desenvolvimento econômico.
Quando o tema é meio ambiente, o STF demonstra uma nítida dificuldade em aceitar os poderes normativos conferidos pela Constituição Federal, por meio do Artigo 24 e seus parágrafos, aos Estados e Municípios. Em especial aquele parágrafo que assim dispõe: “No âmbito da legislação concorrente a União limitar-se-á a estabelecer normas gerais”.
No caso citado da ação que levou à declaração de inconstitucionalidade parcial (Artigo 8º) da Resolução 2/2019 do Conselho Estadual do Meio Ambiente do Ceará, que trata de procedimentos relacionados com o licenciamento ambiental no âmbito do órgão ambiental daquele Estado, prevaleceu esse mesmo entendimento equivocado, a nosso ver, de que a competência da União para “estabelecer normas gerais” é simplesmente ILIMITADA!!
Mais relevante do que isso, o raciocínio do STF, o qual também é utilizado pelo Procurador-Geral Augusto Aras, na ADI contra o RS traz um erro conceitual, compreensível para quem desconhece os demais instrumentos de controle ambiental, na alegação de que a dispensa de licenciamento implica necessariamente na perda do controle ambiental. Esse pensamento reproduz uma noção geral, a nosso ver equivocada, mas por muito tempo adotada por um grande número de órgãos ambientais. Trata-se da ultrapassada idéia de que o licenciamento é o único instrumento de controle ambiental. Além de aprovar um projeto em uma determinada localização, o licenciamento por si só não garante o efetivo controle ambiental. Controle ambiental só é exercido de forma eficiente quando a atividade licenciada é vistoriada, fiscalizada, monitorada, auditada, quanto ao cumprimento das suas condicionantes, quanto ao atendimento das normas e parâmetros ambientais.
Neste sentido, é possível entender que em determinados casos, com base na tipologia da atividade, no porte, e até mesmo de acordo com o local de sua implantação, o exercício de um controle ambiental presencial, ou a partir de instrumentos de monitoramento (cada vez mais eficazes) pode ser muito mais eficiente e de certa forma até dispensar o chamado controle “burocrático” ao que muitas vezes se limita o licenciamento ambiental, ou o licenciamento ambiental tradicional representado pelo sistema trifásico, copiado da legislação norte-americana há mais de 50 anos por técnicos ambientais do Estado do RJ, e depois utilizados como referência na legislação nacional, a partir da Resolução 237/97 do CONAMA.
É importante que se esclareça isso. O sistema trifásico ao qual a União parece querer se agarrar, foi criado e implementado pelos Estados, antes de se tornar uma Resolução do colegiado federal. Vale lembrar que o modelo nunca sequer ganhou respaldo de uma Lei Federal.
Atenção senhores Ministros do Supremo: o licenciamento ambiental existente no Brasil já não se restringe ao modelo trifásico, há décadas!!! Cabe lembrar que pelo menos 80% das atividades potencialmente poluidoras hoje em funcionamento foram licenciadas por Estados e Municípios, e não pela União. Há razões de ordem prática e de eficiência que levaram a essa descentralização. Razões que estão relacionadas com princípios que nortearam a edição de grande parte da Constituição Federal de 1988, como o Princípio da Subsidiariedade. O Artigo 24 e seus parágrafos, são a expressão mais reveladora do espírito do Federalismo Cooperativo. A quem predomina o interesse de criar instrumentos mais versáteis e adequados ao licenciamento ambiental do Rio Grande do Sul, senão ao povo que mora no Rio Grande do Sul?
As reiteradas decisões do STF nesse sentido demonstram uma falta de confiança geral na capacidade dos Estados de legislarem de forma complementar. A idéia descabida e invertida de que se a norma é federal então ela é “norma geral”, é uma maneira demasiadamente simplista de resolver conflitos. Tal pensamento impede a efetiva implementação de um federalismo verdadeiramente cooperativo. O raciocínio mais adequado nesse caso seria o seguinte: se a CF determina que a União se atenha a estabelecer normas gerais nos temas elencados nos incisos do Artigo 24, então que esta não extrapole no detalhamento dessas normas. Faria um bem muito maior à evolução da nossa democracia, e em especial, ao desenvolvimento de uma proteção ambiental mais eficaz, se essas decisões do nosso Supremo, ao invés de limitar o poder dos Estados, passassem a impor à União um respeito maior ao parágrafo 1º do Artigo 24.
Em sua peça inicial, o Procurador Geral Augusto Aras, segue esse mesmo raciocínio negacionista do nosso modelo federativo. Ao defender o poder centralizador da União em emitir “normas gerais”, se utiliza de uma interpretação totalmente equivocada do Princípio da Predominância do Interesse. “ Apesar de ter contornos fluidos, a repartição de competências legislativas entre os entes federativos ditada pela Constituição, em matéria de competência concorrente, norteia-se pelo princípio da predominância do interesse”, argumenta o Procurador, citando o jurista José Afonso da Silva, segundo quem “à União caberão aquelas matérias e questões de predominante interesse geral, nacional, ao passo que aos Estados tocarão as matérias e assuntos de predominante interesse regional, e aos Municípios concernem os assuntos de interesse local”. E necessária uma leitura maior sobre aonde está a predominância do interesse em determinados casos, para que se aplique de forma adequada este princípio que é tão caro para o nosso federalismo,
Ora, aonde está o interesse nacional prejudicado, quando um Estado ou mesmo Município, define REGRAS DE PROCEDIMENTO (grifo proposital) para realização de um ato administrativo, no caso, a concessão de uma licença ambiental?? O interesse nacional é prejudicado quando os Estados e Municípios não conseguem desempenhar o seu papel de controle ambiental de forma adequada e eficiente. Não quando estes resolvem regulamentar a forma como pretendem executar o seu papel, como faz o Estado do RS, e diga-se de passagem, praticamente a integralidade dos Estados da Federação, todos com normas sobre procedimentos de licenciamento ambiental criados a partir de suas peculiaridades locais, rompendo as amarras do licenciamento por LP, LI e LO. O próprio Estado do RJ, em norma recente (Decreto 46.890/2019) institui instrumentos de licenciamento praticamente idênticos a estes criados pelas leis 15.434/2020 e 14.961/2016. Sem nenhum questionamento de constitucionalidade, até o momento.
Precisamos de Estados e Municípios mais fortalecidos, se quisermos de fato garantir para as presentes e futuras gerações, um ambiente ecologicamente equilibrado. É hora de se acabar com essa crise de desconfiança, a partir da qual os Estados e Municípios não tem capacidade, ou competência. Se for assim, é melhor esquecer o tal “SISNAMA”, que desse jeito, nunca vai sair do papel. Quem perde com isso? A sociedade. O meio ambiente.
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