“O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), julgou improcedente ação na qual se questiona o tombamento de prédio de propriedade União por lei local. Na Ação Cível Originária (ACO) 1208, o ministro entendeu que é possível o tombamento por ato legislativo, e que o Estado pode tombar bem da União.
A discussão na ação envolve o prédio onde funciona o Museu da Força Expedicionária Brasileira, localizado no centro de Campo Grande (MS), de propriedade do Exército. O tombamento foi aprovado pela Assembleia Legislativa do Mato Grosso do Sul, por meio da Lei estadual 1.524/1994.
A União alegava que os estados não podem tombar bens da União, em decorrência do princípio da hierarquia verticalizada, que impede a desapropriação de bens federais pelos estados. Sustenta ainda que o Legislativo local é incompetente para a edição de ato de tombamento, o qual seria atribuição apenas do Executivo.
O ministro Gilmar Mendes afirma em sua decisão que a legislação federal de fato veda a desapropriação dos bens da União pelos estados, segundo o Decreto-Lei 3.365/1941, mas não há referência a tal restrição quanto ao tombamento, disciplinado no Decreto-Lei 25/1937. A lei de tombamento apenas indica ser aplicável a bens pertencentes a pessoas físicas e pessoas jurídicas de direito privado e de direito público interno.
‘Vê-se que, quando há intenção do legislador de que se observe a ‘hierarquia verticalizada’, assim o fez expressamente’, afirma a decisão. Assim sendo, os bens da União não foram excepcionados do rol de bens que não podem ser tombados por norma dos estados ou Distrito Federal.
O ministro relator entende que não há vedação ao tombamento feito por ato legislativo, porque tal providência possui caráter provisório, ficando o tombamento permanente, este sim, restrito a ato do Executivo.
‘A lei estadual ora questionada deve ser entendida apenas como declaração de tombamento para fins de preservação de bens de interesse local, que repercutam na memória histórica, urbanística ou cultural até que seja finalizado o procedimento subsequente’, afirma.
A decisão também entende que o tombamento provisório por ato legislativo não precisa ser precedido de notificação prévia da União, exigência restrita ao procedimento de tombamento definitivo promovido pelo Executivo”.
Fonte: STF, 18/05/2017.
Confira a íntegra da decisão:
AÇÃO CÍVEL ORIGINÁRIA 1.208 MATO GROSSO DO SUL
RELATOR :MIN. GILMAR MENDES
AUTOR(A/S)(ES) :UNIÃO
ADV.(A/S) :ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO
RÉU(É)(S) :ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL
PROC.(A/S)(ES) :PROCURADOR-GERAL DO ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL
Decisão:
Trata-se de ação cível originária movida pela União em face do Estado de Mato Grosso do Sul, na qual se discute o tombamento, realizado pelo mencionado estado de bem pertencente àquela por meio da Lei estadual 1.526/1994.
A União sustenta a vedação à desapropriação de seus bens pelos estados, em decorrência do princípio da hierarquia verticalizada e consoante o disposto no Decreto-Lei 3.365/1941.
Aduz que esse mesmo princípio também se aplica em relação ao tombamento, de forma que os estados não poderiam tombar bens da União, excepcionado o caso de o ente federativo interessado requerer o tombamento junto ao órgão federal competente.
Além disso, alega a incompetência formal e material da Assembleia Legislativa do Estado de Mato Grosso do Sul para edição de ato administrativo que, segundo defende, seria o único meio válido para a consecução do tombamento.
Em decorrência de o tombamento ter ocorrido mediante a Lei estadual 1.526/1994, assevera que houve ofensa ao devido processo legal, uma vez que o processo legislativo previsto na Constituição Estadual não contempla tal competência ao Poder Legislativo, além de não ter sido notificada para manifestar-se sobre a pretensão estadual.
Argumenta, ainda, que o ato de tombamento realizado pelo Estado de Mato Grosso do Sul não seguiu os procedimentos legais, visto que configurou ato unilateral sem notificá-la previamente.
Por fim, defende que o Poder Legislativo estadual pode estabelecer regras em abstrato em relação ao tombamento, ou seja, ato sem efeitos concretos. Todavia, no caso, aduz que a Lei 1.526/1994 possui, na verdade, natureza de ato administrativo, configurando a ilegalidade do ato emanado por aquele ente federativo.
Ao final, requer, em síntese: 1) a declaração de inconstitucionalidade da Lei estadual 1.526/1994; 2) a não averbação do imóvel objeto de tombamento ou, se já realizado, o seu cancelamento; e 3) a proibição de o Estado inscrever o referido imóvel no livro Tombo ou, se inscrito, seu cancelamento, sob pena de aplicação de multa diária.
O Estado de Mato Grosso do Sul contesta, alegando, em síntese, incompetência absoluta da Justiça Federal de Primeira Instância, uma vez que compete ao Supremo julgar situações hábeis a gerar instabilidade no equilíbrio federativo ou ruptura necessária da harmonia entre entes federativos. Além disso, afirma não se aplicar ao caso o art. 109, I, da Constituição Federal.
No mérito, aduz que, em decorrência da redação dos arts. 23, III, e 216, § 1º, da Constituição Federal, os Estados-membros possuem competência para preservar bens de valor histórico estadual, como no caso dos autos. Segundo alega, o bem em questão possui significação histórico-cultural local, devendo prevalecer o interesse da coletividade na conservação e na manutenção do referido bem.
Assevera que o art. 1º, § 2º, do Decreto-Lei 3.365/1941 refere-se apenas à desapropriação e não ao tombamento.
Argumenta, também, ser possível à Assembleia Legislativa, por meio de lei formal, tratar de tombamento, por existir norma geral autorizando tal procedimento (Lei 245/1981). Esta legislação, segundo aduz, embasou a edição da Lei 1.526/1994, de efeitos concretos, sem olvidar que o rol da Constituição Estadual (arts. 62 e 63) é meramente exemplificativo (fls. 41-55).
Em sua réplica à contestação, a União reafirma que cabe apenas a si estabelecer normas gerais sobre tombamento. Além disso, ao declarar que o tombamento decorreria de proteção a valor local, a consecução do ato de tombamento seria de competência municipal, e não estadual, que se circunscreveria ao âmbito regional.
Por fim, aduz que o Poder Legislativo apenas pode legislar supletivamente sobre tombamento e não realizar o ato em si, de proceder ao tombamento, que seria atribuição do Poder Executivo (fls. 58-60).
O juízo de primeiro grau reconheceu sua incompetência, consoante art. 102, I, “f”, da CF, remetendo os autos a esta Corte (fls. 61-62).
No despacho de fl. 105, as partes foram instadas acerca da remessa dos autos à Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal (CCAF), tendo ambas apresentado oposição (fls. 109-111 e 122-123).
As partes foram intimadas para especificarem as provas que pretendessem produzir (fl. 113), oportunidade em que afirmaram que o feito estava suficientemente instruído (fls. 116 e 122-123).
A Procuradoria-Geral da República, em seu parecer, opina pela procedência do pedido, sustentando, em síntese, que o tombamento é ato administrativo e, como tal, exige a notificação do proprietário do bem a ser tombado. Além disso, segundo alega, o art. 24, VII, da CF não inclui a edição de ato de efeitos concretos, os quais seriam impugnáveis quando restringissem o uso de determinado bem.
Assevera, entretanto, que o STF tem admitido, em ocasiões e processos distintos, ser possível o tombamento, por ente federativo, de bens da União. Conclui, dessa forma, que o “princípio da hierarquia verticalizada” inexiste no ordenamento jurídico nacional, diante da inexistência de hierarquia entre os entes federados.
Afirma que o tombamento é medida que visa a proteger o patrimônio cultural sem implicar perda do direito de propriedade, razão pela qual indica não se aplicar ao caso o art. 2º, § 2º, do Decreto-Lei 3.365/1941, porquanto referente apenas à desapropriação.
Por outro lado, aduz que deve ser analisada a adequação dos critérios utilizados no ato legal ora questionado. Ressalta que, à época do tombamento do bem da União, havia a necessidade de atuação da autoridade federal (art. 50 da Lei estadual 245/1981). Ademais, segundo entende, para concretizar-se o tombamento, necessita-se de edição de ato administrativo, de forma que apenas o Poder Executivo – e não o Legislativo – é competente para tanto.
Afirma que, apesar de a competência definida no art. 24, VII, da CF ser legislativa, ela abrange apenas a edição de normas abstratas suplementares, não incluindo as leis de efeitos concretos. Diz ser necessária a observância do procedimento administrativo e da notificação do proprietário do bem a ser tombado, o que não teria ocorrido no caso.
Alega ser a ação ordinária a via cabível, pois a Lei estadual 1.526/1994 seria norma de efeitos concretos, não se submetendo ao controle concentrado.
Por fim, pondera que, não obstante o acima asseverado, a Lei estadual 3.522/2008 revogou a Lei Estadual 25/1937, a qual passou a exigir a realização de procedimento administrativo de tombamento, a ser implementado pelo Chefe do Poder Executivo (fls. 134-145).
É o relatório. Passo a decidir.
1) Competência do STF
Preliminarmente, confirmo a existência de conflito entre o Estado de Mato Grosso do Sul e a União, razão pela qual reconheço a competência do Supremo Tribunal Federal para julgar e processar a ação cível originária, nos termos do art. 102, I, ”f”, da CF. Nesse sentido, os seguintes precedentes do Pleno:
“Reclamação. Processo de tombamento da região conhecida como ‘Encontro das Águas dos Rios Negro e Solimões’. Autonomia estatal na gestão de seus recursos naturais. Conflito federativo configurado. Competência do STF para julgar ‘as causas e os conflitos entre a União e os estados’ (art. 102, I, f, CF/88). Reclamação procedente. 1. Reclamação constitucional ajuizada com o fito de resguardar a competência originária do STF para julgar ‘as causas e os conflitos entre a União e os Estados, a União e o Distrito Federal, ou entre uns e outros, inclusive as respectivas entidades da administração indireta’ (art. 102, I, f, da CF/88). 2. Há contraposição da pretensão da União Federal em preservar o cenário paisagístico como patrimônio cultural brasileiro mediante o tombamento do ‘Encontro das Águas dos Rios Negro e Solimões’ com o interesse jurídico, econômico, financeiro e social do Estado do Amazonas de ter autonomia na gestão de seus recursos naturais. 3. O conflito entre os entes federados tem densidade suficiente para abalar o pacto federativo, e, portanto, está apto a deslocar a competência da ação para a Suprema Corte. 4. Reclamação julgada procedente para determinar a remessa à Suprema Corte da Ação Ordinária nº 780-89.2011.4.01.3200 e das Ações Civis Públicas nºs 10007-40.2010.4.01.3200 e 11-81.2011.4.01.3200, em trâmite na 7ª Vara Federal da Seção Judiciária do Amazonas”. (Rcl 12957, Rel. Min.
Dias Toffoli, Primeira Turma, DJe 3.11.2014) – grifei
Há claro antagonismo que potencializa o conflito federativo entre a União e o Estado de Mato Grosso do Sul, envolvendo o tombamento de área de titularidade daquele ente federativo, utilizado pelo Ministério da Defesa/Exército brasileiro, sob a responsabilidade do Comando da 9ª região militar.
Posto isso, passo à análise da controvérsia.
2) Disciplina normativa do tombamento
Antes de adentrar os questionamentos arguidos pela União, é oportuno esclarecer que o tombamento constitui espécie de intervenção estatal na propriedade, na modalidade restritiva, a qual mantém as demais faculdades inerentes à condição de proprietário do bem não restringidas pelo ato instituidor.
Encontra substrato constitucional no § 1º do art. 216 da Lei Maior, a saber:
“Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
I – as formas de expressão;
II – os modos de criar, fazer e viver;
III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais
espaços destinados às manifestações artístico-culturais;
V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
§ 1º O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação”. – grifei
A expressão Poder Público possui como destinatárias todas as esferas de atuação estatal, seja federal, estadual ou municipal, incluindo a divisão tripartite de poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário).
A instituição do tombamento, em regra, não permite o pagamento de indenização, ante a observância do cumprimento da função sociocultural da propriedade, nos termos do § 1º do art. 1228 do Código Civil:
“Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.
§ 1o O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas”. – grifei
Constitui-se mediante a declaração do Poder Público Federal, Estadual, Distrital ou Municipal, reconhecendo o valor histórico, artístico, paisagístico, turístico, cultural ou científico de bem(ns), individual ou coletivamente considerados, que impõem ser preservados, culminandose, ao final, com a inscrição em livro próprio (Tombo) e averbação no registro no cartório de imóveis, se for o caso.
Os arts. 1º e 2º do Decreto-Lei 25/37 assim disciplinam:
“Art. 1º Constitui o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico.
§ 1º Os bens a que se refere o presente artigo só serão considerados parte integrante do patrimônio histórico o artístico nacional, depois de inscritos separada ou agrupadamente num dos quatro Livros do Tombo, de que trata o art. 4º desta lei.
§ 2º Equiparam-se aos bens a que se refere o presente artigo e são também sujeitos a tombamento os monumentos naturais, bem como os sítios e paisagens que importe conservar e proteger pela feição notável com que tenham sido dotados pelo natureza ou agenciados pelo indústria humana.
Art. 2º A presente lei se aplica às coisas pertencentes às pessoas naturais, bem como às pessoas jurídicas de direito privado e de direito público interno”.
Pode ser instituída de ofício (em caso de bem público – art. 5º do Decreto-Lei 25/37), bem como de forma voluntária (concordância do proprietário – art. 7º) ou compulsória (em caso de discordância – arts. 8º e 9º).
No âmbito da eficácia, pode ocorrer de forma provisória (iniciada com a notificação do proprietário – arts. 5º e 10) ou definitiva (bem inscrito no livro Tombo e registrado no Cartório de Imóveis – art. 10 c/c art. 13) e atingir destinatários de forma geral (atinge bens situados em rua, bairro ou cidade) ou individual (bem específico).
O tombamento gera deveres ao proprietário, ocasionando limitações de uso (necessidade de autorização prévia para reforma, destruição ou demolição – art. 17) e de disposição (comunicação da venda ao Poder Público – arts. 12 e art. 13, § 1º e § 3º), entre outros ônus (art. 19), que podem atingir inclusive propriedades circunvizinhas (art. 18).
3) Tombamento no rol do art. 62 da Constituição Estadual
Alega a União que a edição da Lei 1.526/1994 do Estado de Mato Grosso do Sul, a qual efetivou o tombamento, ofendeu o devido processo legal, uma vez que o processo legislativo que o instituiu não estaria discriminado na Constituição Estadual como sendo de competência da Assembleia Legislativa daquele ente federativo.
Todavia, ressalto que a norma do art. 62 da Constituição do Estado de Mato Grosso do Sul apresenta indiscutivelmente rol meramente exemplificativo e não taxativo. Por oportuno, reproduzo o art. 62 da Constituição Estadual, a saber:
“Art. 62 – Cabe à Assembleia Legislativa, com sanção do Governador, legislar sobre todas as matérias de competência do Estado, especialmente sobre:
I – tributos, arrecadação e distribuição de rendas;
II – plano plurianual, diretrizes orçamentárias, orçamento anual, operações de crédito e dívida pública;
III – planos e programas estaduais e regionais de desenvolvimento;
IV – criação e extinção de cargos públicos e fixação dos respectivos vencimentos;
V – transferência temporária da sede do governo estadual;
VI – aquisição, alienação, arrendamento e cessão de bens imóveis do Estado;
VII – criação, incorporação e subdivisão de Municípios;
VIII – fixação dos efetivos da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros Militar;
IX – concessão de anistia, isenção e remição tributária ou
previdenciária e incentivos fiscais;
X – organização administrativa e organização e divisão
judiciárias, do Ministério Público e da Defensoria Pública;
XI – criação, estrutura e atribuições das Secretarias de
Estado e órgãos da administração pública”. – grifei
Isso porque a redação do dispositivo contempla a expressão “especialmente”, antes de discriminar as matérias em seus incisos, bastando que a matéria seja de competência e interesse estadual.
Sob essa ótica, ao utilizar tal advérbio, o Poder Constituinte estadual consignou que a Assembleia Legislativa pode legislar sobre as matérias que a Constituição Federal atribui à competência dos Estados, ressaltando exemplificativamente as matérias que mereceriam maior atenção e relevo em seus incisos, todavia sem qualquer pretensão exauriente.
A seu turno, prevê o art. 24, VII, da Lei Maior:
“Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
(…)
VII – proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico”.
Assim, não há qualquer incompatibilidade material com as Constituições Federal e Estadual na atribuição de o Estado-membro proteger os bens de valor histórico, artístico e cultural, turístico ou paisagístico, impedindo a sua destruição ou descaracterização.
Nesse ponto, é oportuno registrar que o termo “local” utilizado pelo Estado de Mato Grosso do Sul foi empregado no sentido de resguardo de valores cultural e/ou histórico de interesse “local”, isto é, com o escopo de diferenciar o valor de interesse nacional do estadual.
Em razão de o bem tombado ser relatado como parte do patrimônio histórico do Estado de Mato Grosso do Sul, a qualificação “valor local” refere-se ao valor que o bem possui para tal estado da Federação.
Desse modo, sendo o rol do art. 62 da Constituição Estadual meramente exemplificativo e não taxativo, pode a Assembleia legislar sobre tombamento de bem de interesse local sem ofensa às Constituições Estadual ou Federal.
4) Possibilidade de ente federativo tombar bem da União
A União assevera que o Decreto-Lei 3.365/1941, o qual trata da desapropriação, veda que os Estados desapropriem bens da União, em decorrência do princípio da hierarquia verticalizada.
Aduz, sob essa ótica, que esse mesmo princípio também se aplica em relação ao tombamento, de forma que os Estados não poderiam tombar bens da União, com única exceção: caso o Estado requeresse o tombamento junto ao órgão federal competente.
Sem razão a União, conforme passo a expor.
Inicialmente, destaque-se que o tombamento possui disciplina própria, qual seja, o Decreto-Lei 25/1937. Em razão disso, é necessário realizar a devida diferenciação entre o que se encontra disposto na mencionada norma e o que previsto no Decreto-Lei 3.365/1941, o qual trata de desapropriação.
Os arts. 2º e 5º do Decreto-Lei 25/1937 expressam que:
“Art. 2º. A presente lei se aplica às coisas pertencentes às pessoas naturais, bem como às pessoas jurídicas de direito privado e de direito público interno”.
(…)
Art. 5º. O tombamento dos bens pertencentes à União, aos Estados e aos Municípios se fará de ofício, por ordem do diretor do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, mas deverá ser notificado à entidade a quem pertencer, ou sob cuja guarda estiver a coisa tombada, afim de produzir os necessários efeitos”. – grifei
Claramente a referida norma aplica-se aos bens de todas as pessoas jurídicas de direito público interno, ante a expressa menção ao tombamento de bens pertencentes à União.
Por outro lado, o art. 2º, § 2º, do Decreto-Lei 3.365/1941 excepcionou os bens da União de desapropriação pelos Estados e pelos Municípios, in verbis:
“Art. 2º. Mediante declaração de utilidade pública, todos os bens poderão ser desapropriados pela União, pelos Estados, Municípios, Distrito Federal e Territórios.
(…)
§ 2o. Os bens do domínio dos Estados, Municípios, Distrito Federal e Territórios poderão ser desapropriados pela União, e os dos Municípios pelos Estados, mas, em qualquer caso, ao ato deverá preceder autorização legislativa”. – grifei
Vê-se que, quando há intenção do legislador de que se observe a “hierarquia verticalizada”, assim o fez expressamente, ao referir-se como desapropriáveis os bens dos Municípios pelos Estados e pela União, e os bens dos Estados e do Distrito Federal, apenas pela União.
Portanto, da interpretação literal dos dispositivos, extrai-se que os bens da União não são excepcionados do rol de bens que não podem ser tombados, tal como são excluídos do rol dos bens passíveis de serem desapropriados pelos Estados e pelo Distrito Federal, motivo pelo qual se conclui que os bens da União podem ser, em tese, tombados pelos Estados, Distrito Federal e Municípios.
O art. 11 do Decreto-Lei 25/1937, contido no Capítulo III – “Dos Efeitos do Tombamento”, ao incluir a União entre os entes federados que podem ter bens objeto de tombamento, indubitavelmente manifesta a possibilidade de os bens da União serem tombados, a saber:
“Art. 11. As coisas tombadas, que pertençam à União, aos Estados ou aos Municípios, inalienáveis por natureza, só poderão ser transferidas de uma à outra das referidas entidades”. – grifei
Não cabe alegar que a interpretação sistemática desse dispositivo conduziria ao raciocínio de competir apenas à própria União tombar seus bens, tendo em vista que, no mesmo sentido acima analisado, o legislador não excepcionou os bens da União quando se referiu sobre a possibilidade de transferência de bens entre os entes federados (União, Estados ou Municípios), se for o caso, tampouco excepcionou da norma do caput do art. 5º.
Na linha da inexistência de hierarquia verticalizada, o Superior Tribunal de Justiça manteve o tombamento de bem de ente federativo estadual realizado por município, cuja ementa segue:
“ADMINISTRATIVO – TOMBAMENTO – COMPETÊNCIA MUNICIPAL.
1. A Constituição Federal de 88 outorga a todas as pessoas jurídicas de Direito Público a competência para o tombamento de bens de valor histórico e artístico nacional.
2. Tombar significa preservar, acautelar, preservar, sem que importe o ato em transferência da propriedade, como ocorre na desapropriação.
3. O Município, por competência constitucional comum – art. 23, III –, deve proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos.
4. Como o tombamento não implica em transferência da propriedade, inexiste a limitação constante no art. 1º, § 2º, do DL 3.365/1941, que proíbe o Município de desapropriar bem do Estado.
5. Recurso improvido”. (RMS 18.952/RJ, Rel. Min. Eliana Calmon, Segunda Turma, DJ 30.5.2005) – grifei
Reproduzo, ainda, trecho do voto da Relatora:
“Tombamento é a forma de o Poder Público proteger o patrimônio histórico-cultural, ato que não importa em transferência da propriedade. Portanto, não se confunde tombamento com desapropriação, porque na última existe a compulsória transferência da propriedade para o patrimônio do expropriado.
Se assim é, não se pode estender a vedação constante do art. 1º, § 2º, do Decreto-lei 3365, de 21 de junho de 1941, específico para as desapropriações, à hipótese de tombamento.
O dispositivo mencionado proíbe que o Município desaproprie bem do Estado, ou que o Estado desaproprie bem da União, devendo-se respeitar a hierarquia entre pessoas jurídicas.
Como não há dispositivo expresso proibindo a hierarquização para o tombamento, a solução que se afigura pertinente é partir de uma construção jurídica.
De acordo com a Constituição Federal, têm os Municípios competência para legislar sobre assuntos de interesse local ou peculiar interesse, como constava na Constituição antecedente. E, em relação a tombamento, há competência comum às três unidades da federação, cada um dentro da sua esfera de atribuições”. – grifei
Outrossim, é importante ressaltar que, à época da edição do Decreto-Lei 25/37, vigorava a Constituição Federal de 1937, que foi outorgada no Regime do Estado Novo, de sorte que, caso fosse intenção excluir os bens da União de serem passíveis de tombamento pelos Estados, DF ou Municípios, o regime ditatorial não teria nenhuma dificuldade de assim regular, tendo em vista que editou aquele decreto-lei amparado no art. 180 da CF/37, a recordar:
“Art. 180 – Enquanto não se reunir o Parlamento nacional, o Presidente da República terá o poder de expedir decretos-leis sobre todas as matérias da competência legislativa da União”.
Diante desse cenário, a única interpretação que se extrai, seja através dos métodos histórico, teleológico, sistemático e/ou literal, é a de que os Estados podem tombar bens da União, desde que obedeçam aos ditames do Decreto-Lei 25/37.
5) Tombamento através de ato legislativo
A União argumenta que a Assembleia Legislativa seria incompetente para a edição de ato de tombamento, o qual seria atribuição apenas do Poder Executivo.
Afirma, ainda, que a Assembleia Legislativa pode apenas estabelecer regras em abstrato em relação ao tombamento, mas não com efeitos concretos.
Não desconheço que esta Corte, no julgamento da ADI 1.706/DF, decidiu pela inconstitucionalidade de Lei Distrital 1713/97, cuja ementa está redigida nos seguintes termos:
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI DISTRITAL N. 1.713, DE 3 DE SETEMBRO DE 1.997. QUADRAS RESIDENCIAIS DO PLANO PILOTO DA ASA NORTE E DA ASA SUL. ADMINISTRAÇÃO POR PREFEITURAS OU ASSOCIAÇÕES DE MORADORES. TAXA DE MANUTENÇÃO E CONSERVAÇÃO. SUBDIVISÃO DO DISTRITO FEDERAL. FIXAÇÃO DE OBSTÁCULOS QUE DIFICULTEM O TRÂNSITO DE VEÍCULOS E PESSOAS. BEM
DE USO COMUM. TOMBAMENTO. COMPETÊNCIA DO PODER EXECUTIVO PARA ESTABELECER AS RESTRIÇÕES DO DIREITO DE PROPRIEDADE. VIOLAÇÃO DO DISPOSTO NOS ARTIGOS 2º, 32 E 37, INCISO XXI, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL.
1. A Lei n. 1.713 autoriza a divisão do Distrito Federal em unidades relativamente autônomas, em afronta ao texto da Constituição do Brasil — artigo 32 — que proíbe a subdivisão do Distrito Federal em Municípios.
2. Afronta a Constituição do Brasil o preceito que permite que os serviços públicos sejam prestados por particulares, independentemente de licitação [artigo 37, inciso XXI, da CB/88].
3. Ninguém é obrigado a associar-se em condomínios não regularmente instituídos.
4. O artigo 4º da lei possibilita a fixação de obstáculos a fim de dificultar a entrada e saída de veículos nos limites externos das quadras ou conjuntos. Violação do direito à circulação, que é a manifestação mais característica do direito de locomoção. A Administração não poderá impedir o trânsito de pessoas no que toca aos bens de uso comum.
5. O tombamento é constituído mediante ato do Poder Executivo que estabelece o alcance da limitação ao direito de propriedade. Incompetência do Poder Legislativo no que toca a essas restrições, pena de violação ao disposto no artigo 2º da Constituição do Brasil.
6. É incabível a delegação da execução de determinados serviços públicos às Prefeituras das quadras, bem como a instituição de taxas remuneratórias, na medida em que essas Prefeituras não detêm capacidade tributária.
7. Ação direta julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei n. 1.713/97 do Distrito Federal”.
Entretanto o principal argumento – acolhido pela Corte – dizia respeito à impossibilidade de subdivisão do território do Distrito Federal em municípios, o que seria vedado pelo art. 32 da CF.
Os demais pontos suscitados pelo relator (violação à necessidade de licitação, o direito à livre associação, em sua acepção negativa, coexistência de tombamentos) foram apreciados de forma supletiva.
Vejamos trecho do voto do Rel. Min. Eros Grau:
“3. O Ministro NELSON JOBIM, relator à época, apontou em seu voto o fato de que a lei hostilizada promove uma subdivisão do território do Distrito Federal em entidades ‘relativamente autônomas’, o que não se coaduna com o disposto no artigo 32 da Constituição do Brasil, que veda a divisão do Distrito Federal em Municípios.
4. Esse argumento já seria suficiente para o acolhimento do pedido de declaração de inconstitucionalidade, como afirmaram o Advogado-Geral da União e o Procurador-Geral da República. Mas há outros fundamentos igualmente relevantes a serem ponderados”. – grifei
Além disso, a matéria referente ao tombamento ficou limitada à questão do uso comum de bem público (sistema viário do DF) e à coexistência de tombamentos, sendo o primeiro proveniente de ato do Poder Executivo e o segundo, mais restritivo, advindo de ato do Legislativo.
Transcreva-se trecho do voto do Min. Rel. Eros Grau:
“22. De outra banda, o tombamento é constituído mediante ato do Poder Executivo que, observada a legislação pertinente, estabelece o alcance da limitação ao direito de propriedade, ato emanado do Poder Legislativo não podendo alterar essas restrições.
23. Esta Corte iniciou, sob a égide da Constituição de 1967, o julgamento da Rp n. 1.312, na qual era questionada a constitucionalidade de lei gaúcha que instituía tombamento sobre a casa historicamente conhecida como Solar dos Frosser. O julgamento da mencionada representação não foi concluído, vez que sobreveio a promulgação da Constituição de 1988, mas entenderam o Ministro CÉLIO BORJA, relator, bem como o Ministro FRANCISCO REZEK, que apenas o Poder executivo poderia instituir tombamento, razão pela qual julgavam procedente o pedido.
24. Assim, o ato do Poder Legislativo que efetive o tombamento e, de igual modo, aquele que pretenda alterar as condições de tombamento regularmente instituído pelo Poder Executivo, é inconstitucional, dada a dual incompatibilidade com o princípio da harmonia entre os poderes”. (ADI 1706, Rel. Min. Eros Grau, Tribunal Pleno, DJe 11.9.2008) – grifei
Os fundamentos utilizados não permitem a generalização de que esta Corte teria vetado a edição de ato legislativo estipulando tombamento sobre determinado bem, tendo em vista que se referiu à julgamento não finalizado na Representação 1312, na qual apenas dois ministros da época haviam se manifestado, além de envolver questão de conflito entre os Poderes Legislativo e Executivo.
Relembre-se que, naquele caso, entendeu-se que o ato legislativo de tombamento teria conflitado com tombamento anteriormente regulamentado pelo Poder Executivo, sendo inconstitucional por ofensa à harmonia entre os poderes.
Ou seja, o que estava em julgamento era a coexistência de dois atos de tombamentos sobre o mesmo bem: 1) o pretérito realizado pelo Poder Executivo; e 2) o posterior e mais restritivo aprovado pelo Poder Legislativo. Na oportunidade, esta Corte concluiu haver ofensa ao postulado da separação dos poderes, em razão de o Legislativo ter alterado as condições de restrição à propriedade impostas pelo Executivo.
Assim, aquele julgado não pode servir de precedente para análise deste caso concreto ou para concluir-se genericamente que haveria impedimento da realização de tombamento através de ato legal.
Pois bem.
Rememore-se que o procedimento do tombamento se divide em duas fases, quais sejam: provisória e definitiva.
A fase provisória constitui-se mediante ato de natureza declaratória e ostenta caráter preventivo, de sorte que se consiste em etapa preparatória para sua implementação posterior pelo Poder Executivo, que cientificará o proprietário e dará sequência ao procedimento definitivo, a depender do caso (de ofício, voluntário ou compulsório).
Reproduz-se, nesse sentido, ementa de julgado do Superior Tribunal de Justiça:
“PROCESSO CIVIL. ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. TOMBAMENTO PROVISÓRIO. EQUIPARAÇÃO AO DEFINITIVO. EFICÁCIA.
1. O ato de tombamento, seja ele provisório ou definitivo, tem por finalidade preservar o bem identificado como de valor cultural, contrapondo-se, inclusive, aos interesses da propriedade privada, não só limitando o exercício dos direitos inerentes ao bem, mas também obrigando o proprietário às medidas necessárias à sua conservação. O tombamento provisório, portanto, possui caráter preventivo e assemelha-se ao definitivo quanto às limitações incidentes sobre a utilização do bem tutelado, nos termos do parágrafo único do art. 10 do Decreto-Lei nº 25/37.
2. O valor cultural pertencente ao bem é anterior ao próprio tombamento. A diferença é que, não existindo qualquer ato do Poder Público formalizando a necessidade de protegê-lo, descaberia responsabilizar o particular pela não conservação do patrimônio. O tombamento provisório, portanto, serve justamente como um reconhecimento público da valoração inerente ao bem.
3. As coisas tombadas não poderão, nos termos do art. 17 do Decreto-Lei nº 25/37, ser destruídas, demolidas ou mutiladas. O descumprimento do aludido preceito legal enseja, via de regra, o dever de restituir a coisa ao status quo ante. Excepcionalmente, sendo manifestamente inviável o restabelecimento do bem ao seu formato original, autoriza-se a conversão da obrigação em perdas e danos.
4. À reforma do aresto recorrido deve seguir-se à devolução dos autos ao Tribunal a quo para que, respeitados os parâmetros jurídicos ora estipulados, prossiga o exame da apelação do IPHAN e aplique o direito consoante o seu convencimento, com a análise das alegações das partes e das provas existentes.
5. Recurso especial provido em parte”. (REsp 753.534, Rel. Min. Castro Meira, Segunda Turma, DJe 10.11.2011) – grifei
No âmbito doutrinário, Paulo Affonso Leme Machado assevera que:
“O tombamento provisório acarreta para a Administração o dever de proteger o bem, aplicando sanções administrativas”. (MACHADO, Paulo Affonso Leme. Ação Civil Pública (ambiente, consumidor, patrimônio cultural e Tombamento. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1986, pág. 84)
Salvo a transcrição no cartório de registro de imóveis e no livro Tombo, aliado à necessidade de cientificação do proprietário ente público (art. 5º), os efeitos do tombamento provisório de bem público equiparam-se ao definitivo, nos termos do parágrafo único do art. 10, in verbis:
“Art. 10. O tombamento dos bens, a que se refere o art. 6º desta lei, será considerado provisório ou definitivo, conforme esteja o respectivo processo iniciado pela notificação ou concluído pela inscrição dos referidos bens no competente Livro do Tombo.
Parágrafo único. Para todas os efeitos, salvo a disposição do art. 13 desta lei, o tombamento provisório se equiparará ao definitivo”.
É nesse contexto de tombamento provisório que deve ser interpretado o ato legislativo que considera relevante, do ponto de vista histórico ou cultural, determinado bem.
A esse respeito, Pontes de Miranda sustenta que:
“[…]Não é preciso que haja qualquer ligação da beleza natural, em amplo sentido, à história humana, à vida do povo, para que possa o Estado protegê-la quanto ao que a desfaça, a prejudique, ou a altere. A imponência, a monumentalidade, a extraneidade do recanto, ou da anfratura, ou do cômoro, ou da altitude, basta para que o ato estatal protectivo – legislativo, ou executivo, de acordo com a lei – seja permitido”. (sic) (MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda n° 1 de 1969. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977, pág. 369) – grifei
No mesmo sentido, defende Paulo Affonso Leme Machado:
“Não há nenhuma vedação constitucional de que o tombamento seja realizado diretamente por ato legislativo federal, estadual ou municipal. […] O tombamento concreto de um bem oriundo diretamente da lei pode ficar subordinado somente ao conteúdo dessa lei ou às normas já estabelecidas genericamente para a proteção dos bens culturais.
[…] Segundo nos parece, não há proibição de legislar-se casuisticamente sobre o tombamento, pois se tal se admitisse seria praticamente amputar-se uma atividade legislativa, sem qualquer amparo constitucional.
Poderia argumentar-se que não houve consulta a órgão técnico para a classificação conservativa pretendida. Parece-nos mais importante a intervenção de um corpo técnico na gestão do bem tombado do que na instituição dessa medida. Não é preciso ser um perito de nomeada para ter sensibilidade de que um bem deva ser conservado. Além disso, o Legislativo, nos seus três níveis, pode ser assessorado, como em outras matérias, também relevantes para o País, por especialistas de notória sabedoria e idoneidade.
A vantagem do tombamento originar-se de lei, é que o desfazimento da medida somente pode vir através de ato do Poder Legislativo. Maior o consenso de vontades tanto no iniciar-se a conservação de um bem, como, no cancelamento da proteção, em sentido necessário. Ademais, o tombamento provisório já existente por ato da Administração não perderia seu cabimento, funcionando até que o Poder Legislativo deliberasse”. (MACHADO, Paulo Affonso Leme. Idem, 1986, p. 75-76) – grifei
Ressalte-se, todavia, que, no caso de ato declaratório legal, para a consecução do tombamento definitivo, é necessário que haja continuidade do procedimento pelo Poder Executivo, competindo-lhe dar seguimento aos demais trâmites do tombamento, a depender do tipo: de ofício (bem público – art. 5º), voluntário (acordado com o proprietário – art. 7º) ou compulsório (independentemente da aquiescência do proprietário – art. 8º e 9º).
A lei ora questionada deve ser entendida apenas como declaração de tombamento para fins de preservação de bens de interesse local, que repercutam na memória histórica, urbanística ou cultural até que seja finalizado o procedimento subsequente.
Sob essa perspectiva, o ato legislativo em questão (Lei 1.526/94), que instituiu o tombamento, apresenta-se como lei de efeitos concretos, a qual se consubstancia em tombamento provisório – de natureza declaratória –, necessitando, todavia, de posterior implementação pelo Poder Executivo, mediante notificação posterior ao ente federativo proprietário do bem, nos termos do art. 5º do Decreto-Lei 25/37.
6) Necessidade de notificação do proprietário do bem a ser tombado
Afirma a União que o ato de tombamento versado na Lei estadual 1.526/1994 ofende o princípio do devido processo legal, uma vez que não houve a sua notificação – proprietária do bem.
Tal como evidenciado no item anterior, não há que se falar em violação ao devido processo legal, apesar de o art. 10 do Decreto-Lei 25/1937 apontar que o tombamento provisório inicia-se com a notificação do proprietário:
“Art. 10. O tombamento dos bens, a que se refere o art. 6º desta lei, será considerado provisório ou definitivo, conforme esteja o respectivo processo iniciado pela notificação ou concluído pela inscrição dos referidos bens no competente Livro do Tombo”.
Todavia, na realidade, esse artigo é aplicável ao tombamento de bem particular (voluntário ou definitivo) e não ao tombamento de bem público, uma vez que para este há norma específica, qual seja, o art. 5° do Decreto-Lei 25/37, a saber:
“Art. 5º O tombamento dos bens pertencentes à União, aos Estados e aos Municípios se fará de ofício, por ordem do diretor do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, mas deverá ser notificado à entidade a quem pertencer, ou sob cuja guarda estiver a coisa tombada, afim de produzir os necessários efeitos”.
Da leitura desse dispositivo conclui-se que, ao se referir à modalidade de tombamento de ofício, a notificação é posterior ao ato de tombamento provisório. O objetivo da notificação é que os efeitos do tombamento sejam plenos, o qual se finalizará com a averbação no cartório de imóveis, ocasião em que restará perfectibilizado o tombamento definitivo.
Não é outra a doutrina de Maria Sylvia Di Pietro, in litteris:
“Pelo Decreto-Lei nº 25/37, o tombamento distingue-se conforme atinja bens públicos ou particulares. Quando incide sobre bens públicos, tem-se o tombamento de ofício, previsto no art. 5º, que se processa mediante simples notificação à entidade a quem pertencer (União, Estado ou Município) ou sob cuja
guarda estiver a coisa tombada; com a notificação a medida começa a produzir efeitos”. (PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di, Direito Administrativo, 15 ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 135) – grifei
A notificação, por conseguinte, é posterior ao ato declaratório de tombamento, consistindo em condição de eficácia da medida. Nessa ótica, a Lei estadual 1.526/1994 configura tombamento provisório, o qual é possível de ocorrer por ato legislativo, necessitando, de posterior implementação pelo Poder Executivo, mediante notificação ao ente federativo proprietário do bem, nos termos do art. 5º do Decreto-Lei 25/37.
Consequentemente, afigura-se como constitucional a Lei 1.526 de 1994, do Estado de Mato Grosso do Sul, que instituiu o tombamento do imóvel da União, situado na Av. Afonso Pena, n° 2.270, Centro, Campo Grande/MS, merecendo rejeição a alegação da União quanto ao ponto.
Por fim, registre-se que, não obstante haja informação no parecer ministerial de que a Lei estadual 1526/94 teria sido revogada pela Lei estadual 3.522/2008, não há comprovação nos autos de sua ocorrência, de sorte que se aplica a regra do art. 337 do CPC/73 (norma repetida no art. 376 do CPC/15).
E mais: em 13.12.2012 (fl. 80), as partes foram instadas sobre a persistência do interesse em prosseguir com o feito, tendo ambas afirmado, em 2013, que subsistia a necessidade de julgamento da matéria posta à apreciação (fls. 99 e 109-111 e 125).
7) Dos honorários advocatícios
Por fim, em relação aos honorários advocatícios, inexistem dúvidas acerca da aplicação do novo Código de Processo Civil, seja pela literalidade de seus arts. 14 e 1.046, seja pelo fato de ser a decisão final (sentença/decisão monocrática no caso dos Tribunais Superiores) o ato jurídico que faz surgir a obrigatoriedade do pagamento de tal verba sucumbencial, a teor do caput do art. 85 da Lei 13.105/15 (CPC), in verbis:
“Art. 85. A sentença condenará o vencido a pagar honorários ao advogado do vencedor”.
Vê-se, pois, que é a decisão terminativa ou definitiva o marco jurígeno da condenação ao pagamento dos honorários advocatícios, mormente pela impossibilidade de saber-se, até então, quem seria o vencedor ou o vencido.
Assim, o valor atribuído à causa (R$ 10.000,00), corrigido monetariamente pelo IPCA-E de janeiro de 2006 até abril de 2017, alcança por volta de R$ 19.020,87 (extraído da “calculadora do cidadão” do Banco Central do Brasil) (https://www3.bcb.gov.br/CALCIDADAO/publico/corrigirPorIndice.do?
method=corrigirPorIndice). O percentual de 10%, correspondente aos honorários, totaliza R$ 1.902,08.
8) Conclusão
Isso posto, julgo improcedentes os pedidos, condenando a União ao pagamento de honorários advocatícios em favor do Estado de Mato Grosso do Sul, no importe de 10% do valor atualizado da causa, R$ 1.902,08, diante do teor dos §§ 2º , 3º e 6º do art. 85 do CPC.
Custas pela lei.
Publique-se. Intimem-se.
Brasília, 3 de maio de 2017.
Ministro GILMAR MENDES
Relator