Luciana Vianna Pereira
Em um de seus grandes textos, intitulado “Jupiter, Hércules, Hérmes: três modelos de juiz”, o autor francês François Ost trata do direito pós-moderno como um direito em rede em que há uma proliferação de informações e complexidades que não podem ser explicadas exclusivamente pelas visões antecedentes do Direito.
Imagine uma rede trançada, com diversos nós, conexões, interconexões. A cada nó que se apresenta, diversas possibilidades surgem. Não há linearidade. O direito em rede, de Ost, reflete a sociedade em rede de Manuel Castells[1], complexa, tecnológica, informacional, capaz de gerar efeitos não óbvios, externalidades.
Assim, não é suficiente e nem adequado seguir com uma visão “de cima para baixo”, do fenômeno transcendental de um Direito piramidal do Estado liberal, nem com a visão do Estado de Direito, do século XIX, como direito da jurisprudência, do juiz superpoderoso que decide conforme um conceito abstrato de justiça e sempre casuístico, como preconizado por Dworkin[2].
Segundo Ost, o direito pós-moderno, em rede, demandaria uma outra posição do juiz (nem de homem da lei, nem de engenheiro social[3]), equivalente à da figura mitológica de Hermes, que transita entre os céus, o inferno e a terra. Hermes, afinal é, na mitologia grega, o responsável pelas travessias entre os mundos, podendo ser entendido como um grande comunicador entre eles[4].
Hermes seria, assim, o “mediador universal”[5], que se posiciona “nem como transcendência, nem como imanência, mas entre uma e outra (dialética) ou, melhor, paradoxa (uma e outra)”[6], se esforçando “para integrar, na construção do sentido jurídico, as criações normativas que emanam de outras fontes, como a jurisprudência, os costumes, as convenções internacionais, os princípios gerais do Direito, a doutrina, etc”[7].
Ost escreve que o direito pós-moderno, especialmente sob a perspectiva do realismo jurídico de Holmes[8], fez com que se tenha mudado radicalmente o paradigma do comportamento social e, infelizmente, essa mudança de comportamento não foi para melhor.
Segundo o autor, “o ponto de vista clássico, impregnado de moralismo, que privilegia a regra e o dever de obediência (no direito moderno, piramidal e positivista) deu lugar a cultura da identificação do ‘bad man’ que se preocupa exclusivamente com as eventuais consequências desagradáveis de seus atos.
A questão deixa de ser “qual é o meu dever?” e passa a ser “qual é a probabilidade de que uma jurisdição sancione o meu comportamento?”[9] o que evidentemente não forma cidadãos mais conscientes e responsáveis, mas, ao contrário, hábeis serpentes, capazes de se esgueirar, contorcer e passar pelas mais estreitas brechas da lei.
Uma legislação focada no comando e controle estrito tem o condão de fazer com que cidadãos se tornem cada vez mais habilidosos na arte de esconder seus malfeitos. Afinal, é a adaptação ao meio que faz com que seres humanos sejam capazes de viver nas condições climáticas e alimentares mais diversas existentes no globo terrestre.
Na defesa de sua teoria lúdica sobre o direito, Ost entende que “ao encontro de certa retórica dos direitos do Homem que, em alguns casos, desviam essa categoria prestigiosa para encobrir reivindicações imediatas dos desejos mais individualistas, deve-se lembrar que uma comunidade descansa igualmente sobre as responsabilidades assumidas coletivamente”[10].
O autor trata dos direitos fundamentais de terceira geração e os concebe mais como deveres e responsabilidades do que como direitos. Estes são os chamados direitos da “fraternidade”, que impõem uma responsabilidade universal. Assim, regulamentações que pretendam lidar com os “novos perigos do nosso tempo […] não teriam a menor possibilidade de se impor se não puderem se apoiar sobre uma consciência ética ampliada às dimensões da comunidade universal”[11].
Pois bem.
– E o que tudo isso tem a ver com ESG? – Você pode perguntar.
Tudo! Quando se pensa em ESG, nesse conceito financeiro de inclusão das variáveis ambientais, sociais e de governança nas avaliações das empresas, cadeias de valores, ativos, bens e direitos, não se deveria pensar na criação de uma grande e pesada estrutura legislativa que obrigue empresas e empresários a rígidas normas de uma série de temas tratados no ESG. Nem na criação de um sistema que vise só punir ou responsabilizar o “homem mal” que não foi capaz de escapar criativamente das garras da norma, ou beneficiar aquele que avaliou a probabilidade de sanção e considerou que mais valia o risco que a adequação.
O que se pretende é que as variáveis sejam consideradas, mediante uma pré-avaliação de materialidade e, portanto, relevância, dos temas abrangidos nesse conceito, na forma de pensar a cadeia de valor dos produtos e serviços.
É no preço que o ESG entra.
É no dia a dia da tomada de decisão empresarial que o ESG toma seu assento.
É na escolha de parceiros comerciais, na disponibilidade de informações para identificar riscos e oportunidades, é na precificação das externalidades positivas que o ESG tem sua força.
O ESG não deve nunca ser pensado ou entendido – como muitos ainda fazem – como um novo conceito para punir os que alguém (o juiz Jupiter ou Hércules, a opinião pública, o ativista defensor de uma única causa) considera como o grande vilão da humanidade.
Enquanto não entendermos que ESG não segue essa lógica e não é um nome novo para um conceito velho, infelizmente não seremos capazes de dar a ele toda a sua potencialidade de uso e ação.
O ESG não foi criado para o direito piramidal ou para o direito jurisprudencial. Ele foi desenhado para o direito em rede.
Tomemos o exemplo sempre atual da precificação de carbono. E vejam que, embora o ESG não se resuma a carbono, não se pode negar que o mercado de carbono é um dos instrumentos do ESG, seja porque é uma das formas simples de lidar com um dos elementos do “E”, seja porque gera um ativo que pode integrar uma cadeia de valor ou constar do balanço de uma empresa.
A partir do momento em que somos capazes de compreender a sociedade em rede, fica evidente que a solução da precificação de carbono dificilmente passará pela simples taxação do carbono no interior de um território.
O que se pretende ao criar ou aumentar a tributação de uma empresa poluente é estimulá-la a produzir de forma menos poluente. O que se consegue, contudo, é que ela vá para outro lugar no planeta e o Estado tributador passe a ter que importar aquele mesmo insumo, que continua poluente, mas que agora sequer gera receita no seu território. Isso explica em parte a crise energética europeia.
Do mesmo modo, quando se pensa em criar obrigações de redução de emissão, há também uma divergência entre o que se pretende e o que se consegue na prática. Diga-se de passagem que, também por isso, o Decreto nº 11.075/22 optou por estabelecer planos setoriais e delegar aos próprios setores a responsabilidade de dizer quanto e como irão reduzir suas emissões.
Essa divergência entre a ideia e o resultado efetivo, ou entre o “feel good” e o “do good” é prova de que Ost está certo quanto à falta de linearidade do direito, sua complexidade e necessidade de se ponderar e avaliar os efeitos em rede gerados a partir de cada decisão, de cada lei editada.
O texto de Ost trata da concretização do Direito, do seu último intérprete e seu papel na solução de casos complexos e que reflitam conflitos éticos, para os quais a solução não esteja posta em norma.
Contudo, a visão serve também ao legislador, à fase inicial de produção dos direito, base do nosso direito de raiz civilista – por mais que muitos julgadores muitas vezes tenham uma imensa dificuldade de compreender que não vivemos em um sistema de common law em que o direito é produzido, desde sua origem, por suas decisões e precedentes.
Como última nota, é preciso esclarecer somente que não acreditamos em medidas puramente pragmáticas e reativas para resolver nenhum problema ambiental ou como forma de implementação do ESG.
Como diz Chesterton, “quando as coisas não estão funcionando, é preciso do pensador, do homem com uma doutrina que explica por que elas não estão funcionando”[12] e não de um prático, “acostumado à mera prática cotidiana, à maneira como as coisas funcionam normalmente”[13].
Quando surgem problemas complexos, não precisamos de práticos, mas de teóricos que possam efetivamente pensar o problema e pensar, pensar muito, sobre todos os aspectos de qualquer decisão antes de (e sem o compromisso de nunca) ter que implementá-la.
E é nesse sentido que cremos que criar normas e mais normas, leis e mais leis para tentar induzir comportamentos, ou para reagir a uma circunstância que se coloca, de forma pragmaticamente reativa, sem refletir detidamente sobre as reais consequências da sua adoção e edição é um equívoco terrível.
Voltando à Ost, em questões ético-jurídicas, colocadas à análise do Direito, o autor lembra de “uma mensagem antiga, tão velha como o próprio Direito” para endereçá-las: a regra da “prudência”. O juiz Hermes, de Ost, na dúvida, se absteria.
No ESG, da mesma forma, na dúvida, deve-se agir com prudência.
[1] CASTELLS, Manuel – Sociedade em rede, 23ª ed., Ed: Paz & Terra, 2013.
[2] DWORKIN, Ronald – Taking rights seriously, Ed. Bloomsbury (E-book).
[3] OST, François – Júpiter, Hércules, Hermes: três modelos de juez. Alicante: Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes. Edición digital a partir de Doxa : Cuadernos de Filosofía del Derecho. núm. 14 (1993), pp. 169-194, 2005. [Em linha] Disponível em http://www.cervantesvirtual.com/nd/ark:/59851/bmcsj1v8. [ Acesso em 05.03.2020], p. 177.
[4] Op. Cit.
[5] Op. Cit., p. 171.
[6] Op. Cit., p. 172.
[7] Op. Cit., p. 172, nota de rodapé 3.
[8] HOLMES, O. W. – The path of the law, The Bobbs-Merril law reprint series, 1987.
[9] OST, François – Op. Cit., p. 177-178.
[10] Idem, p. 192.
[11] Idem, p. 193.
[12] CHESTERTON, G. K. – O que há de errado com o mundo. Ed. Ecclesiae, 2013, p. 31.
[13] Idem.
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