terça-feira , 19 março 2024
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O calcanhar de Aquiles do novo marco do saneamento: a instituição de garantias pelos municípios ao parceiro privado em contratos de PPP e concessões

por Renata Caroline Kroska.

 

  1. Marco do saneamento e o oferecimento de garantias

A aprovação do novo marco do saneamento trouxe consigo a expectativa de atrair investimentos para o setor estimados entre R$ 500 e R$ 700 bilhões no prazo de 10 anos.

O marco redesenhou as competências da Agência Nacional de Águas, previu a contratação dos serviços de água e esgoto mediante concorrência, pondo fim nos contratos programa, instituiu metas de universalização dos serviços entre outras medidas.

Contudo, para atrair tais investimentos o governo brasileiro das três esferas da federação precisa oferecer garantias idôneas ao parceiro privado e apresentar uma proposta sólida de redução do risco político, pois, infelizmente colecionamos episódios de descumprimento contratual.

O episódio recente protagonizado pelo prefeito da cidade do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, que ordenou a demolição da praça de pedágio causando prejuízos à contratada LAMSA[1] ilustra bem a instabilidade política enfrentada pelos parceiros privados.

É importante mencionar que contratos de longo prazo, com vigência de mais de 10 (dez) anos, tem um desenho totalmente diferente dos contratos instantâneos, pois envolvem vultosos investimentos que precisam ser pesados sob a ótica da teoria dos incentivos econômicos, por isso, a expressão engenharia de contratos.

Nesses contratos, as garantias contratuais atuam como mitigadores de riscos, entre eles o risco político. Caso a remuneração do parceiro privado seja interrompida ou o contrato seja rompido abruptamente, a garantia contratual é executada.

  1. O problema das garantias contratuais municipais

Recentemente publiquei um artigo em que problematizei as garantias municipais. Em resumo, os Municípios não podem emitir títulos da dívida pública própria e o oferecimento do fundo de participação dos municípios como garantia é de constitucionalidade questionável em face da interpretação conferida pelo Supremo Tribunal Federal ao art. 167, IV, da Carta Política.

Sem o oferecimento de uma garantia idônea os municípios terão dificuldades em atrair o investimento privado e as alterações legislativas não serão suficientes para resolver os problemas de infraestrutura.

 

  1. Fundos de investimento como possível solução

Estudar os sistemas de garantias das linhas amarela e laranja do metrô de São Paulo durante o mestrado fez perceber a instituição de fundos de investimentos pelos entes públicos como possível solução.

Os fundos de investimento não são produtos novos no mercado, há tempos são regulados pela CVM (Comissão de Valores Mobiliários)[2], porém, não tinham nenhum tratamento legal. Foi então que a Lei nº 13.874/2019 introduziu os artigos 1.368-C a 1.368-F no Código Civil.

O art. 1.368-C do Código Civil definiu fundo de investimento como “uma comunhão de recursos, constituído sob a forma de condomínio de natureza especial, destinado à aplicação em ativos financeiros, bens e direitos de qualquer natureza”.

Os fundos de investimentos são criados por iniciativa de um administrador, geralmente uma instituição financeira que “formalmente o constitui e define o seu objetivo, política de investimento, as categorias de ativos financeiros em que poderá investir, as taxas que cobrará pelos serviços e outras regras de participação, funcionamento e organização[3]”.

O Administrador é responsável por elaborar o regulamento do fundo e por leva-lo a registro na CVM. O regulamento do fundo contém o objetivo, a política de investimento, a categoria de ativos, as taxas cobradas pelo serviço, as regras de participação, funcionamento e organização.

O Administrador do Fundo de Investimento delega a gestão dele a uma pessoa física ou jurídica credenciada como administradora de carteiras de valores mobiliários na CVM[4]. O gestor pode ser o próprio administrador do fundo ou um terceiro contratado para a função.

Os fundos de investimentos são amplamente regulados pela CVM que entre outras regras prevê limites por emissor e limites por ativo financeiro.

Sobre os limites é conveniente destacar o limite de 20% do patrimônio líquido do fundo para investimento em títulos de emissão do próprio administrador, a ausência de limites para investimentos em títulos públicos federais e a possibilidade de investimento em fundos no exterior desde que prevista no regulamento.

  1. Nem tão simples como receita de bolo nem tão complicado como nave aeroespacial

Transportar essa realidade do âmbito privado para o âmbito público não é tão simples, mas não é coisa de outro mundo e com certo planejamento é bem possível. Minha recomendação é que os municípios comecem a se preparar já no próximo PPA (Plano Plurianual).

Mas a primeira pergunta que eu tenho que responder como Procuradora é o famoso: Pode isso Renata? Sim, pode. A questão é como.

O art. 35, §2º, da Lei de Responsabilidade Fiscal autoriza expressamente que Estados e Municípios comprem títulos da dívida da União como aplicação de suas disponibilidades.

Voltando ao PPA, é preciso prever que parte do superávit primário será destinado à instituição de um fundo de investimento municipal com o objetivo de prestar garantia em contratos de longo prazo.

Paralelo ao PPA, uma lei de iniciativa do executivo cria o fundo observando as diretivas gerais da CVM e delegando para regulamento aspectos mais minuciosos.

Atenção!! Mesmo quando instituído por lei o regulamento do fundo é registrado na CVM, nos termos do art. 1.368-F do Código Civil.

Sugiro que a lei preveja a possibilidade de aquisição títulos da dívida pública municipal, respeitando-se o limite de 20% de títulos emitidos pelo próprio administrador, para um futuro em que os Municípios possam emitir os títulos.

O Município é o instituidor do fundo, enquanto a gestão dele pode ser confiada à instituição pública oficial em atenção ao art. 164, §3º, da Constituição Federal.

Em harmonia com o PPA, a LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias) e a LOA (Lei Orçamentária Anual) devem prever as aquisições com os referidos graus de especificidade.

A lei que cria o fundo deve prever ainda quem pode ser titular das quotas, deve ser restritiva em relação aos resgates do fundo e prever a instituição de um comitê técnico desvinculado de critérios políticos para a tomada de decisão e mecanismos de governança.

É possível também estabelecer a alienação de quotas por autarquia com autonomia administrativa e orçamentária, empresa pública, sociedade de economia mista, bancos de investimento e de fomento não necessariamente municipais.

Caso o fundo seja instituído por um consórcio público, este é o Administrador e os quotistas são os participantes do consórcio.

Penso ainda ser possível a pulverização para investidores privados, porém, isso agrega a complexidade de critérios de oferta pública próprios da CVM que são diferentes para investidores qualificados e do mercado de varejo.

Recorde-se que o objetivo do fundo é oferecer uma garantia de pagamento ao privado ao mesmo tempo em que reduz o risco político. Assim, quanto mais submetido à lógica privada o fundo estiver, mais segura será a garantia.

O último ponto para o qual chamo a atenção é em relação a possibilidade de investimento no exterior, pois qualquer operação externa de natureza financeira depende de autorização do Senado Federal, nos termos do art. 52, V, da CF.

Contudo, prever a possibilidade de investimento no exterior pode ser interessante para viabilizar um projeto mais audacioso junto ao BID ou algum outro organismo internacional de financiamento[5].

  1. Considerações finais

Evidentemente que há vários detalhes a serem tratados nessas operações e os profissionais da Administração Pública recrutados para esse tipo de tarefa devem aliar conhecimentos do setor público com o setor privado.

É importante ponderar que um diagnóstico prévio do município em relação às metas fiscais, transparência e mecanismos de governança é fundamental para a implantação desse tipo de solução estratégica.

Os fundos de investimentos também podem ser instituídos por consórcios públicos com mesma finalidade.

Por fim, fica a advertência de que é preciso superar a obscuridade própria das decisões puramente políticas em matéria de garantias contratuais, pois, sem a instituição de salvaguardas idôneas em favor da iniciativa privada ela vai continuar vendo o poder público como um parceiro de alto risco e quem perde são todos os brasileiros.

Notas:

[1] https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/10/crivella-rompe-contrato-com-concessionaria-e-manda-derrubar-pedagio-da-linha-amarela.shtml

[2] CVM – conteúdo sobre fundos de investimento: http://www.cvm.gov.br/menu/regulados/fundos/sobre.html

[3] Comissão de Valores Mobiliários.  Fundos de investimento. 3. ed. Rio de Janeiro: Comissão de Valores Mobiliários, 2016. Disponível em: <https://www.investidor.gov.br/publicacao/ListaCadernos.html>

[4] Idem.

[5] https://www.iadb.org/pt/bid-financas/capital-e-fundos-administrados

Renata Caroline Kroska -Procuradora do Município em Quatro Barras, membra da Comissão de Inovação e Gestão da OAB/PR, membra do Comitê Executivo da Saúde do CNJ no Paraná, mestranda em Políticas Públicas pela UFPR, Especialista em Direito Empresarial e Civil pela Associação Brasileira de Direito Constitucional, bacharel em Direito pela UFPR e Tecnóloga em Comunicação Empresarial e Institucional pela UTFPR.

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