A Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) registra em média oito mortes diárias devido à poluição atmosférica, segundo dados do Laboratório de Pesquisas da Poluição Atmosférica da USP. A maior fonte é a queima de combustíveis fósseis pela frota veicular. Uma falha regulatória na exigência da garantia de durabilidade dos catalisadores exporá, somente na RMSP, cerca de 20 milhões de cidadãos a uma contaminação atmosférica ainda mais alarmante, oriunda de uma frota de mais de um milhão de motocicletas em crescimento acelerado.
Não resta dúvida sobre a necessidade de um eficiente controle da poluição para diminuir o impacto à vida humana. Mas a irresponsabilidade com relação a esse tema está tomando proporções inaceitáveis, diante dos destinos do controle de poluentes emitidos por motocicletas, propostos no PROMOT-4 (Programa de controle da Poluição do ar por Motocicletas) Fase 4, ora em curso no CONAMA (Conselho Nacional do Meio Ambiente).
Os catalisadores são o coração e a alma do Programa de Controle da Poluição do Ar por Veículos Automotores – PROCONVE e do PROMOT. Sem catalisador operante não existe PROCONVE eficiente para os automóveis, nem PROMOT para as motocicletas.
Os catalisadores, eficientes para controlar poluição, tem seu interior revestido por substâncias nobres, com capacidade de agregar moléculas de oxigênio. Quando os poluentes saem do motor e são lançados contra as paredes internas do catalisador, ocorre uma reação química que transmuta poluentes em substâncias não tóxicas. A eficiência do catalisador está ligada à durabilidade de sua vida útil, onde menos material nobre – consumido com o desgaste natural – significa menor taxa de conversão dos poluentes.
Com catalisadores inoperantes devido à inadequação do requisito de durabilidade, ocorreria uma carga adicional anual de poluentes de centenas de milhares de toneladas – considerados, de forma conservadora, os dados publicados no Relatório de Qualidade do Ar da CETESB de 2009. Isso seria uma licença para matar, pois teríamos o retorno às emissões de antigamente – dez a vinte vezes maiores do que o supostamente permitido hoje em dia. As mortes por poluição do ar em São Paulo seriam elevadas a patamares ainda mais altos.
Como chegamos a isso? A norma foi votada no CONAMA, dia 25 de maio, apesar do pedido de vistas regimental feito pelos ambientalistas, que foi politicamente rejeitado, já que toda a secretaria executiva e o corpo técnico tinham conhecimento dos absurdos contidos na proposta de resolução. A informação sobre as irregularidades foram prestadas pelos ambientalistas na reunião do dia anterior, com a secretaria executiva e técnicos governamentais envolvidos.
O cálculo de rodagem das motocicletas nas grandes concentrações urbanas brasileiras, baseou-se na legislação de controle de emissões dos Estados Unidos e Europa, onde a contribuição das motos é menor que 5% do total de poluentes emitidos por veículos em geral. Além disso, lá elas rodam muito menos e, assim, optou-se nesses locais por garantir a durabilidade das emissões por apenas 30 mil km, que equivale a cerca de três anos de uso – pois a quilometragem média das motos lá não ultrapassa os 10mil km/ano.
No Brasil, assim como nos países asiáticos, a situação é completamente diferente. A frota de motocicletas apresenta crescimento explosivo e persistente nas áreas urbanas e sua participação na contribuição total da frota veicular com as emissões atmosféricas é cada vez mais crítica: segundo o inventário nacional de emissões veiculares publicado pelo próprio Ministério do Meio Ambiente (MMA) em 2009, 35% das emissões totais nacionais para monóxido de carbono (CO) e 25% para hidrocarbonetos (HC), são oriundas das motocicletas. Nesse ritmo, as emissões de motos no Brasil poderão ser nos próximos anos similares às de países asiáticos. Segundo o estudo do International Council on Clean Transportation (ICCT) “Air Emissions Issues Related to Two-and Three-Wheeled Motor Vehicles”, em algumas cidades da Ásia a contribuição relativa das emissões das motocicletas já atinge 50% para CO, e 70% para HC. Nós, somos eles, amanhã.
Segundo dados do Sindicato dos Trabalhadores Motociclistas da Cidade de São Paulo, na média, constatou-se que um motoboy chega a rodar entre 200 e 300 km por dia. Algumas empresas, que também trabalham com entregas em cidades próximas, apresentaram médias para esse grupo de 300 km/dia. Isso significa, que a quilometragem média anual das empresas de moto-frete é da ordem de 90 mil km por ano, sempre utilizando motos pequenas.
Para o nicho dos que utilizam a motocicleta em São Paulo somente para se deslocarem para o trabalho e lazer, a km média anual é da ordem de 20.000 km/ano (semelhante aos automóveis). Ou seja, para esse grupo, o catalisador seria obrigado, por garantia, a operar apenas durante os primeiros 10 meses de sua vida útil. Depois disso, teria licença do CONAMA para poluir em excesso a vida toda – relativamente aos padrões normais de emissão previstos no PROMOT.
O erro grosseiro de subestimar o uso das motos formalizou-se em uma proposta para a quarta fase do PROMOT que estabelece a garantia de durabilidade de emissões de somente 18 mil km, sem qualquer justificativa técnica para esse valor. Isso que significaria menos de seis meses de uso em nossa realidade metropolitana. Motos novíssimas, ainda em período de revisão pela concessionária, terão a licença oficial do CONAMA para poluir muito acima do padrão permitido.
Segundo as discussões na Câmara Técnica de Qualidade e Controle Ambiental do CONAMA, a maioria absoluta das motocicletas novas e reguladas, equipadas com injeção eletrônica e catalisadores, tem níveis de emissão típicos de marcha-lenta próximos de ZERO. Assim, mesmo com os catalisadores inoperantes, podem ser aprovadas na inspeção veicular. Isso porque, de acordo com a proposta de revisão dos limites da Resolução 418/2009, que tramita atualmente no CONAMA, a inspeção veicular das motos menores poderá ter limites de aprovação/reprovação excessivamente lenientes (2,5% e 600ppm para CO e HC em marcha-lenta), conforme equivocadamente deliberado pela Câmara Técnica do CONAMA no início de maio de 2011. Por sua vez, os limites internacionais para inspeção de motos com catalisadores em países que levam seus programas de controle de poluição veicular a sério, são em geral da ordem de 1,0% para CO e 100 ppm para HC. Dessa forma, a inspeção das motos mais modernas – mesmo se emitindo 10 vezes mais emissões do que os valores normais do veículo regulado – será praticamente inócua, no que concerne à reprovação de motocicletas com catalisador inoperante. O proprietário não será obrigado a substituir o catalisador vencido por um novo (também de qualidade questionável). Além disso, deve-se lembrar que 50% das motos nem sequer apareceram para fazer a inspeção veicular no Município de São Paulo em 2010, daí a importância vital do requisito de durabilidade dos catalisadores.
Há um consenso entre autoridades ambientais da Câmara Técnica do CONAMA e fabricantes de catalisadores, que o impacto da melhoria da qualidade dos catalisadores no preço dos veículos seria insignificante e traria benefícios sócio-ambiental-econômicos relevantes, inclusive poupando vidas. Além disso, não há justificativa plausível para que a garantia de durabilidade das emissões das motocicletas no Brasil seja menor que a dos automóveis (80 mil km), que aliás, por outra aparente falha da legislação ambiental emanada do CONAMA, é extremamente baixa, se comparada com aquela em vigor na Europa e EUA para os automóveis (160 mil km).
O tema da curta garantia de durabilidade dos catalisadores de automóveis e motos brasileiras foi apontado por seguidas vezes no seminário de 28 de abril sobre as realizações e caminhos futuros do PROCONVE e PROMOT, promovido pela Associação de Engenharia Automotiva (AEA), como um aspecto negativo desses programas a ser avaliado. Assim como os engenheiros automotivos, a sociedade brasileira deve ficar atenta no acompanhamento desse processo, em especial as dezenas de milhões de cidadãos que habitam as grandes concentrações urbanas do País, principalmente os com maior susceptibilidade a doenças cárdio-respiratórias, os que correm mais riscos caso o CONAMA persista no erro atual, os efeitos poderão consistir em uma licença para matar.
Carlos Bocuhy é Presidente do PROAM (Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental) e conselheiro do Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente).
O Eco