terça-feira , 19 março 2024
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Do dolo ou da culpa no Direito Administrativo Sancionador Ambiental

por Franco Cristiano da Silva Oliveira Alves e Ana Beatriz Gomes Santos.

 

I – INTRODUÇÃO

 

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) consolidou o entendimento acerca da responsabilidade administrativa ambiental e sua natureza subjetiva, o que foi decidido no âmbito do EREsp no 1318051[1], da 1ª Turma, sob a Relatoria do Ministro Mauro Campbell Marques, publicado em 08.05.2019.

Trata-se de precedente jurisprudencial de significativa relevância para o Direito Ambiental, na medida em que pacifica a questão, sobremodo, no que tange ao exercício do poder de polícia pelos órgãos ambientais, que em algumas oportunidades exacerbam a aplicação de penalidades em desfavor dos supostos praticantes de ilícitos ambientais, por considerarem a responsabilidade administrativa como objetiva, isto é, independente da demonstração dos elementos anímicos que envolvem a prática da conduta reputada ilegal.

Sobremodo os que militam no Direito Ambiental sabem que a celeuma decorreu da indevida interpretação da Lei nº 6.938/1981, que ao estabelecer a Política Nacional de Meio Ambiente, cuidou de prever a responsabilidade ambiental objetiva do poluidor para fins de reparação dos danos ambientais, o que erroneamente foi estendido ao Direito Administrativo Sancionador, eliminando-se a necessidade de demonstração dos aspectos anímicos do suposto transgressor da ordem jurídica ambiental.

Diante de divergências sobre a matéria, inclusive no âmbito da própria Corte, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), a quem cabe a interpretação da legislação federal, acabou por consolidar o entendimento acerca do tema, fixando o entendimento no sentido de que a responsabilidade administrativa ambiental é subjetiva e, portanto, requer a demonstração de dolo ou culpa daquele que é acusado, para que se configure de forma plena, o ilícito ambiental na seara administrativa.

Assim, se revela de fundamental importância, a distinção entre os elementos constitutivos da responsabilidade civil ambiental, que é objetiva, e a responsabilidade administrativa ambiental, que é subjetiva, na medida em que esta ultima espera pela clara demonstração dos elementos subjetivos do tipo administrativo sancionador, para que venham a se revelar a configuração da infração ambiental administrativa.

A frente da consagração deste entendimento, parece ser de significativa pertinência, portanto, a melhor compreensão da estrutura da responsabilização administrativa ambiental, por meio da demonstração de seus elementos subjetivos.

A compreensão superficial deste aspecto, parecer ser capaz de remanescer o esforço estatal em punir de forma objetiva; a exemplo de práticas processuais administrativas abomináveis e incompatíveis com o modelo subjetivista, como a presunção de culpa e a inversão do ônus da prova em desfavor do acusado, o que não se deve admitir em respeito as garantias individuais inerentes a todo acusado em processo judicial ou administrativo.

Sabe-se que, por exemplo, que com significativa frequência, sob o argumento de detenção de fé-publica e presunção de legitimidade dos atos da administração, os agentes estatais acabam por pregar a inversão do ônus da prova em desfavor dos acusados, o que por via obliqua acaba por se traduzir em verdadeira subversão do modelo acusatório vigente no país, a que igualmente está submetido o regime administrativo de responsabilização.

Arraigado o entendimento de que é a responsabilidade administrativa ambiental subjetiva, há de se considerar que cabe ao Estado acusador, a demonstração dos elementos objetivos e, sobremodo, subjetivos do tipo que venham a compor a norma administrativa destinada a punição dos infratores da Lei, inclusive em matéria ambiental.

Repisa-se, que parece ser terapêutico, portanto, a melhor compressão dos elementos estruturantes da responsabilidade subjetiva no contexto administrativo ambiental, para que se mire e se aplique com firmeza, o entendimento consagrado pelo Superior Tribunal de Justiça.

Se faz necessário afastar as distorções do sistema, que acabam por submeter os acusados a verdadeiros regimes de exceção, o que deve ser fortemente repelido em um Estado Democrático de Direito, como assinala o entendimento consagrado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).

 

II – DA TIPICIDADE NO DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR

 

É de fundamental importância compreender que a imputação de sanções administrativas se estrutura de forma similar as imputações penais, notadamente pelo caráter punitivista que cercam os dois campos de atuação estatal.

Conforme leciona Guido Zanobini, citado por Costa Júnior e Denari[2], em um contexto axiológico, “enquanto os ilícitos penais traduzem turbação da ordem pública e social – substractum do Estado soberano –, os ilícitos administrativos implicam a violação dos deveres de colaboração com a Administração Pública.”

O centro da distinção entre as duas esferas punitivas, portanto, se localiza no preceito das competências e ou procedimentos voltados a tutela de valores específicos; o que denota, por outro lado, similaridade de efeitos no que tange as restrições de direitos que podem recair sobre os acusados em sede penal ou administrativa.

É de suma importância dizer que ao Direito Administrativo e ao Direito Penal competem o exercício do poder repressivo estatal, ainda que objetivando a persecução de bens jurídicos distintos, como parece lecionar Fábio Medina Osório[3]. Filia-se aqui, portanto, a corrente que compreende Direito Administrativo Sancionador e o Direito Penal como filhos da mesma mãe, isto é, da supremacia do Estado em matéria punitivista.

Extrai-se da doutrina de José Júlio Lozano Júnior[4] que o ius puniendi, deve ser compreendido como um poder dividido em dois orbes distintos. Em uma primeira abordagem, se tem o poder repressivo em abstrato, que tem como foco a atuação preventiva do Estado. Em sua segunda dimensão está a concretização da atuação repressiva do Estado, fazendo nascer a ideia de punibilidade; o que é comum ao Direito Penal e ao Direito Administrativo Sancionador, que a manifesta sobre a concepção de exercício de poder polícia administrativa.

Ensina Pedro Gullermo[5] que se traduz no exercício do poder de polícia a “atividade estatal de condicionar a liberdade e a propriedade ajustando-as aos interesses coletivos” ou em outros termos, é o conjunto de intervenções estatais que tendem a disciplinar a atuação dos particulares e a vida em sociedade; de onde surge a supremacia do Estado, inclusive, mediante a infringência de punições de natureza administrativa.

O poder de polícia, portanto, tem como objetivo primordial, o ius puniendi do Estado, contra aquele que desobedece a Lei, assim como ocorre, portanto, no Direito Penal.

E não se desconhece que, a exemplo dos ilícitos ambientais, é significantemente tênue a linha divisória entre os ilícitos tratados como crimes e aqueles tratados como ilícitos propriamente administrativos; revelando a unidade do poder repressivo do Estado em ambos os casos.

E não é por outra razão que o legislador constituinte consagrou, assim como nos processos judiciais penais, a extensão do due processo of law aos processos administrativos sancionatórios, conforme se lê do art. 5º, LV da Constituição Federal.

A exemplo da Constituição Espanhola de 1978, o Brasil optou por estender e fortalecer as garantias individuais aos acusados em processos administrativos, reconhecendo o que a doutrina alemã chamava de Direito Penal Administrativo, isto é, a forte relação entre as sanções administrativas e as penalidades advindas do Direito Penal[6].

E aqui pede-se vênia para discordar daqueles que enxergam no Direito Administrativo Sancionador, possibilidades como a inversão do ônus da prova, a presunção de violação do dever de cuidado pelo acusado ou, ainda, que na lei administrativa sancionatória, ao contrário do Direito Penal, todas as previsões normativas se referem a condutas culposas; inexistindo a necessidade de demonstração de dolo.

Como restará mais bem detalhado em momento próprio do texto, assim como no Direito Penal, os tipos administrativos sancionatórios, por regra, estão submetidos analogicamente ao art. 18, Parágrafo Único do Código Penal., no sentido de que somente são puníveis as condutas dolosas, salvo, se a Lei fizer previsão no sentido de punir a modalidade culposa do fato reputado ilícito.

E afirmação decorre do próprio princípio da legalidade. Na aplicação de sanções administrativas, assim como no Direito Penal, o que prevalece é o princípio da tipicidade, segundo o qual só é possível haver infração, se houver lei anterior que a defina em suas dimensões objetivas e subjetivas. De forma ainda mais específica, conforme leciona o Prof. Celso Antônio Bandeira de Mello[7], tem-se sobre o enaltecido princípio o seguinte conceito:

“c) Princípio da tipicidade – A configuração das infrações administrativas, para ser válida, há de ser feita de maneira suficientemente clara, para não deixar dúvida alguma sobre a identidade do comportamento reprovável, a fim de que, de um lado, o administrado possa estar perfeitamente ciente da conduta que terá de evitar ou que terá de praticar para livrar-se da incursão em penalizações e, de outro, para que dita incursão, quando ocorrente, seja objetivamente reconhecível.”

Para atribuir ou não a responsabilidade administrativa ambiental ao agente reputado infrator, portanto, é de necessidade examinar sua conduta frente ao tipo sancionador previamente fixado em lei, o que exigirá, igualmente, a análise da mesma conduta em sua dimensão subjetiva (dolo ou culpa), como decorrência do próprio princípio da tipicidade. Assim, por regra, a conduta para ser punida, precisará ser a conduta dolosa, admitindo-se a modalidade culposa e não o contrário. Ainda porque, com a devida vênia, parece ser teratológico imaginar que o agente possa ser responsabilizado por negligência (forma de culpa) e não por dolo, por exemplo. A responsabilização por dolo como regra e por culpa, de forma subsidiária, é uma questão que parece ser lógica e estruturante do próprio modelo acusatório.

Dispensada, por tanto, a análise da reprovabilidade da conduta em sua dimensão comportamental, a subsunção do fato reputado ilícito diante da norma sancionadora restará marcado pela imperfectibilidade, o que não se admite. É justamente por meio da análise da conduta do agente que se apresentará a correta interpretação da sua vontade na produção de determinado fato reputado ilícito do ponto de vista tipológico.

 

III – DA IMPRESCINDIBILIDADE DO DOLO OU DA CULPA NO DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR

 

Infere-se do exposto até aqui, que a aplicação de sanções administrativas por órgãos ambientais é uma decorrência lógica e natural do exercício do poder de polícia inerente a própria Administração Pública, quando tomada por seu espírito regulatório, como mencionado. Do que se conclui sem maiores dificuldades que a atuação punitivista dos órgãos ambientais está claramente submetida a princípios como o devido processo legal e tipicidade.

O caráter constitucional e fundamental da tutela ambiental, não atribui aos órgãos ambientais autorização para que penalidades sejam imputadas aos administrados, sem a observância dos demais princípios fundantes do Estado Democrático de Direito. Pelo contrário, o pretenso exercício da tutela ambiental a margem destes princípios, apenas enfraquece o próprio microssistema de proteção ambiental, na medida em que impõe ao Poder Judiciário, a declaração de nulidade dos atos da administração, erigidos em descompasso com a própria ordem constitucional; produzindo a sensação de descaso e impunidade frente ao meio ambiente.

A imposição de quaisquer penalidades aos infratores da ordem jurídica ambiental, portanto, prescinde da contundente análise dos elementos objetivos e subjetivos do respectivo tipo administrativo sancionador, sob pena de grave violação dos princípios previamente enaltecidos.

Assim, inexistem dúvidas, que caberá ao agente fiscalizador, a adequada demonstração do fato antijurídico e passível de subsunção a norma e, sobremodo, o animus do agente infrator na prática do ato reputado ilícito, visando submeter o fato apurado a norma punitivista ambiental em suas dimensões objetivas e subjetivas.

Do ponto de vista da análise subjetiva do tipo, a doutrina especializada em matéria penal define o animus da conduta como a ação ou omissão humana, consciente e voluntaria, dirigida a uma finalidade específica.

Com efeito, para que se verifique o ilícito, se faz necessário que a conduta materializada pelo agente infrator seja típica, antijurídica e, de forma imprescindível, se faz necessária a análise da circunstância de sua culpabilidade, isto é, se atuou o agente com dolo ou culpa.

Não basta, portanto, que a conduta do agente seja típica do ponto de vista objetivo e antijurídica para que seja penalizado. Para que seja viável a responsabilização do indicado como infrator, se revela essencial a demonstração de sua culpabilidade, como explica Guilherme Nucci[8]:

“Significa que ninguém será́ penalmente punido, se não houver agido com dolo ou culpa, dando mostras de que a responsabilização não será́ objetiva, mas subjetiva (nullum crimen sine culpa). Trata-se de conquista do direito penal moderno, voltado à idéia de que a liberdade é a regra, sendo exceção à prisão ou a restrição de direitos.”

Ao Estado caberá demonstrar que o acusado poderia se motivar, previsivelmente, pela legalidade e atuar em conformidade com o Direito, a revelar o seu estado anímico em relação ao caso concreto.

O mesmo há de se dizer, pelas razões previamente trazidas a baila, em relação ao exercício do poder de polícia administrativa, quando dirigido a aplicação de qualquer penalidade ao acusado de ilícito ambiental.

Em matéria ambiental, será dever do Estado demonstrar a materialização do fato, assim como, o grau de culpabilidade do acusado, sob pena de responsabilização objetiva, o que não se admite, como demonstrado.

Ao agente de fiscalização incumbirá a demonstração, de forma pormenorizada, a conduta do fiscalizado, de modo a demonstrar sua culpabilidade, sob pena de não restar demonstrada a tipicidade da conduta pretensamente ilícita.

E aqui, com máxima vênia e cautela, ousa-se discordar, nesta perspectiva, do Douto Professor Édis Milaré[9], para quem compete ao acusado, em sua defesa o ônus de excluir os pressupostos da responsabilização administrativa. Diz Milaré que:

“Em sua defesa, é ônus do autuado excluir um ou ambos os pressupostos da responsabilidade administrativa ambiental, demonstrando a licitude de sua conduta e/ou comprovando que não teve qualquer participação, direta ou indireta, na atividade contrária à legislação ambiental.

Isso porque, conforme referido anteriormente, a responsabilidade administrativa, imputada a partir de um ato presumidamente legal (com relação a seus fundamentos) e verdadeiro (com relação aos fatos nele descritos), importa a inversão do ônus da prova, cabendo ao suposto infrator elidir essa presunção relativa de legitimidade, através da produção probatória em sentido contrário.”

Uma vez que seja dever do Estado a materialização da conduta ilícita e a formação da culpa, isto é, que o agente atuou com dolo ou culpa, defender a inversão do ônus da prova, sob o argumento de presunção de legitimidade dos atos da Administração Pública, é afirmar que os elementos da responsabilidade administrativa podem ser presumidos pelo Estado, a exemplo do dolo, o que não se admite em qualquer sistema acusatório, especialmente em terras brasileiras, em que resta consagrada a presunção de inocência.

Leciona mais uma vez Fábio Medina Osório[10] que “a presunção de inocência é uma garantia plenamente vigente no processo sancionador, cuja análise resulta, portanto, imperiosa.”

Em um contexto analógico, acerca da impossibilidade de presunção do dolo, por exemplo, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem assentado que:

“PENAL. HOMICÍDIO. ACIDENTE DE TRÂNSITO. EMBRIAGUEZ. PRESUNÇÃO SIMPLÓRIA DE DOLO EVENTUAL. IMPOSSIBILIDADE SEM MAIORES DEMONSTRAÇÕES QUE LEVEM A CONCLUIR PELO ELEMENTO VOLITIVO. IMPETRAÇÃO NÃO CONHECIDA. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO PARA RESTABELECER A DECISÃO DO JUÍZO SINGULAR. 1 – Não descritos na denúncia elementos que demonstrem o dolo, ainda que na forma eventual, não se pode ter por escorreito o acórdão que encampa acusação nesses moldes deduzida. 2 – A embriaguez, por si só, sem outros elementos do caso concreto, não pode induzir à presunção, pura e simples, de que houve intenção de matar, notadamente se, como na espécie, o acórdão concluiu que, na dúvida, submete-se o paciente ao Júri, quando, em realidade, apresenta-se de maior segurança a aferição técnica da prova pelo magistrado da tênue linha que separa a culpa consciente do dolo eventual. 3 – Impetração não conhecida, mas concedida a ordem de ofício para restabelecer a decisão de primeiro grau que desclassificou a conduta para homicídio culposo de trânsito.” (STJ – HC: 328426 SP 2015/0153353-7, Relator: Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, Data de Julgamento: 10/11/2015, T6 – SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 25/11/2015)

A presunção de validade dos atos da Administração Pública deve ser conformada aos contornos constitucionais, a exemplo da presunção de inocência, que no caso impedem, consequentemente, a presunção de culpabilidade do acusado. Modelo jurídico que se estende sistematicamente ao Direito Administrativo Sancionador e, naturalmente, a apuração de ilícitos ambientais, deve ser pautado em observância aos princípios constitucionais que fundamental o modelo acusatório vigente.

E volta-se aqui, a ponto ainda fundamental, para a melhor compreensão da responsabilidade administrativa ambiental, é saber que tipificações sancionatórias, abarcam, por regra, apenas os fatos praticados de forma dolosa, sendo necessário que a norma preveja, expressamente, a punição do ilícito na modalidade culposa, como restará demonstrado adiante.

O agente que atua com culpa, isto é, por falha em um dever de cuidado previsível, como a negligência, imprudência e imperícia, somente poderá ser punido nestas circunstâncias, se a norma, sem contornos, fizer previsão de que o fato será punido na modalidade culposa. Do contrário, reafirma-se, somente poderá ser punido o agente, que atuar de forma dolosa, seja na modalidade direta ou eventual.

IV – DA CARACTERIZAÇÃO DO DOLO E DA CULPA NO DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR

 

Assim como no Direito Penal a caracterização dos elementos subjetivos do tipo no Direito Administrativo Sancionador é tema tormentoso e, naturalmente, deverá considerar os fatores do caso concreto, para que se aprecie com melhor acurácia a presença ou do dolo ou da culpa. Desafio que cresce em dificuldade, quando se pretende verificar a presença destes elementos em matéria de ilícito ambiental.

Nada obstante, cabe lembrar que na lição consagrada de Eugênio Pacelli[11], a existência do dolo se situa no mundo das intenções, que exige a junção e a compreensão de diversos vetores lógicos para aferir o animus do agente frente ao ilícito que se materializou do ponto de vista objetivo. Por consequência, a prova do dolo deve ser deduzida a partir dos elementos concretos e das circunstâncias cabalmente provadas, sobremodo, pela inadmissibilidade de presunção do dolo, como comentado em linhas anteriores.

No âmbito do Direito Administrativo Sancionador, especialmente em matéria ambiental, caberá ao Estado demonstrar, necessário mediante as devidas diligências de investigação, que o reputado infrator atuou de forma livre e consciente ou, ainda, que correu, que aceitou o risco de produzir um resultado razoavelmente previsível.

Em relação a comprovação da culpa, caminha-se aqui no sentido de que somente aquele que viola um dever de cuidado previamente estabelecido por Lei, poderá ser responsabilizado na modalidade culposa. Reafirma-se, que por regra, somente a modalidade dolosa poderá ser punida, salvo se o ordenamento jurídico fizer previsão expressa de punição, aos que violam um dever de cuidado.

Punir, como regra, quem atua com culpa, é sustentar que a figura do dolo não existe ou que será tratada com a mesma intensidade da atuação culposa; o que não parece equânime a luz dos critérios de justiça do Estado Democrático de Direito, como será exemplificado em tempo próprio.

Dessume-se, portanto, que ao Estado, nas hipóteses previstas em Lei, caberá a prova de que o agente infrator, mediante a necessária coleção de provas, violou um dever de cuidado na forma de negligência, imprudência ou imperícia. Sempre, sem perder de vista, que a violação de um dever somente poderá ser assim considerada, nas hipóteses em que o dito infrator condições mínimas de prever o resultado e optar por caminho diverso, em um contexto de razoabilidade.

Consoante ao que diz o Parecer n.º 00004/2020/GABIN/PFE-IBAMA-SEDE/PGF/AGU, recebido como Orientação Jurídica (OJ), ao tratar da apuração da responsabilidade subjetiva de infratores da legislação ambiental:

“(…) para caracterização de um dos tipos de culpa, que pressupõe negligência, torna-se necessário analisar se o administrado adotou todos os deveres de cuidado que a situação exigia, podendo-se concluir, desde logo, que na responsabilidade subjetiva é devida a responsabilização administrativa daquele que, mesmo sem intenção de fazê-lo, comete infração ambiental por não adotar medidas pré-concebidas de cuidados nas suas ações.”

Em outras palavras, além de demonstrar a materialização da conduta violadora do dever de cuidado, caberá ao Estado a prova do nexo de causalidade entre a conduta e o resultado previsto na norma fixadora das infrações ambientais, sob pena de caracterização da culpa.

 

V – ESPECIFICIDADES DA RESPONSABILIZAÇÃO SUBJETIVA EM MATÉRIA AMBIENTAL

 

Desafio, não se desconhece, é trazer ao microssistema do Direito Ambiental, a configuração do dolo e da culpa, nos fatos considerados como potenciais ilícitos ambientais. Meritório, deste modo, o entalhamento dos elementos da culpabilidade, dolo e culpa, sob uma perspectiva do Direito Ambiental.

O dolo, como definido no Código Penal, se refere a ação ou omissão do agente que teve a intenção de produzir o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo. Dolo, assim, é a vontade de concretizar as particularidades objetivas do tipo penalizador; sendo “o elemento nuclear e primordial do tipo subjetivo”, como leciona Zaffaroni[12].

Em consonância com a Teoria da Vontade, adotada pelo sistema penal brasileiro, age dolosamente o agente que pratica a ação de forma consciente e voluntaria (dolo direito) ou assume o risco (por isso previsível – dolo eventual) de produzir o resultado.

O dolo, portanto, se situa na consciência, conhecimento do fato que constitui a ação típica, antijurídica e a vontade ou a assunção do risco de que o fato se materialize.

A culpa, ao seu turno, é o comportamento voluntário e desatencioso, voltado a um determinado objetivo, lícito ou ilícito, embora produza resultados naturalmente antijurídicos.

Na culpa o agente não deseja o resultado, mas dispensa o seu dever de cuidado frente a eventos previsíveis e que podem potencialmente ser evitados, como leciona Nucci[13]; se manifestando na forma de negligência, imprudência ou imperícia.

No que diz respeito a responsabilidade administrativa ambiental, parece ser crível dizer que, abstratamente, a imputação de qualquer penalidade ao agente considerado infrator, pode ocorrer de forma dolosa (em sua modalidade direta ou eventual) ou culposa (culpa comum ou consciente), na medida em que o art. 70 da Lei n.º 9.605/98 é claro ao prescrever que se “considera-se infração administrativa ambiental toda ação ou omissão que viole as regras jurídicas de uso, gozo, promoção, proteção e recuperação do meio ambiente.”

O que não dispensa, contudo, a necessidade de que cada tipo sancionatório específico traga consigo, a previsibilidade de punição para as hipóteses de culpa, como anteriormente delineado, em homenagem ao princípio da legalidade.

Inexistindo a previsão expressa de punição na modalidade culposa, somente a conduta dolosa estará sujeita as mãos punitivas do Estado, mesmo no âmbito do Direito Administrativo Sancionador, a exemplo do que traz, analogicamente, o art. 54 da Lei n.º 9.605/98, ao prescrever como crime ambiental o ato de “causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora: Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa. § 1º Se o crime é culposo: Pena – detenção, de seis meses a um ano, e multa.

O que não ocorre no art. 55, que prevê apenas modalidade dolosa, ao dizer que é ilícito “executar pesquisa, lavra ou extração de recursos minerais sem a competente autorização, permissão, concessão ou licença, ou em desacordo com a obtida: Pena – detenção, de seis meses a um ano, e multa.”, sem qualquer menção a sua modalidade culposa.

A título de exemplo, parece ser possível imaginar que aquele que lança efluente líquido sem tratamento em corpo hídrico, seja de forma dolosa ou culposa, estará potencialmente sujeito a eventuais penalidades administrativas, se a norma punitiva administrativa, assim como no art. 54 da Lei n.º 9.605/98, determinar o ilícito na modalidade culposa.

O mesmo parecer ser possível dizer em relação a quem opera em desconformidade com as condicionantes de sua licença ambiental, a exemplo de resultados de automonitoramento, que possam revelar a emissão de efluentes atmosféricos em desconformidade com a legislação aplicável. É razoável dizer que somente a conduta dirigida a este resultado será passível de punição, salvo, se previsto o ilícito na modalidade culposa, isto é, como decorrência da violação de um dever de cuidado objetivo.

Exemplo prático dessa hipótese em matéria administrativa é o que parece trazer o Decreto n.º 47.383/17 de Minas Gerais, que ao estabelecer diversas hipóteses de ilícitos ambientais colaciona o seguinte contexto em seu art. 112, Anexo I:

É possível verificar, claramente, que norma faz previsão para a hipótese de dolo, como regra, e a hipótese de culpa, da qual poderá resultar a redução da multa eventualmente aplicada à metade.

Veja-se que em relação a outra hipótese da mesma norma do Estado de Minas Gerais, o legislador parece ter feito a opção de punir, exclusivamente, a modalidade dolosa, sobremodo, face a dificuldade hipotética de materialização do ilícito na modalidade culposa:

Pede-se escusas para discordar do que leciona, acerca do tema, o eminente Eduardo Fortunato Bim[14] para quem “a matriz sancionatória administrativa dispensa a necessidade de previsão dolosa, contentando-se com a simples culpa”.

 Ao que parece para o douto jurista, bastaria a simples violação a um dever de cuidado, para que a imputação de responsabilidade administrativa sancionatória ao acusado. Pouco interessaria a causa da conduta, bastando o resultado, para a aplicação da penalidade; o que não parece ser compatível com o modelo acusatório brasileiro, reconhecidamente subjetivista, isto é, que leva em consideração as causas da ação apontada como ilícita.

Conforme informa o próprio emérito jurista em seu texto, o berço do Direito Administrativo Sancionador contemporâneo, a Alemanha, não dispensa a previsão de dolo e admite a punição culposa, apenas quando prevista expressamente em Lei. Cenário que deve ser refletido nas terras brasileiras, que consagrou o princípio da legalidade, como mencionado, afastando qualquer tipo de presunção em matéria punitiva.

Importante trecho do voto condutor do enaltecido EREsp no 1318051 do Superior Tribunal de Justiça (STJ) parece mitigar qualquer dúvida a este respeito ao afirmar que “a aplicação de penalidades administrativas não obedece à lógica da responsabilidade objetiva da esfera cível (para reparação dos danos causados), mas deve obedecer à sistemática da teoria da culpabilidade, ou seja, a conduta deve ser cometida pelo alegado transgressor, com demonstração de seu elemento subjetivo, e com demonstração do nexo causal entre a conduta e o dano.”

Diante da clara submissão do Direito Administrativo Sancionador a Teoria da Culpabilidade, parece ser inviável que a Lei venha a punir por regra a culpa simples e, excepcionalmente, o dolo; na medida em que é a vontade livre e consciente, a base primária da indicada teoria; parecendo ser razoável a aplicação analógica do art. 18, Parágrafo Único do Código Penal.

O exemplo a seguir, da mesma forma extraído do Decreto n.º 47.383/17 de Minas Gerais, parece revelar cristalina hipótese em que somente a prática comprovada do dolo, parece ser passível de punição:

Não parece ser razoável dizer que a modalidade culposa das condutas acima apresentadas, venha a configurar a antijuridicidade exigida pela norma; sendo desproporcional a hipotética punição do produtor rural que perde a chave do cadeado de uma porteira, inviabilizando a pronta entrada dos agentes de fiscalização na propriedade.

Apenas aquele que dolosamente obsta e dificulta a atuação fiscalizadora do Estado, estará sujeito a persecução penal administrativa. Não parece ser razoável ou viável no caso, punir o acusado na modalidade culposa.

VI – CONCLUSÃO

Diante das razões estabelecidas ao longo do texto, a luz do que entendeu o Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao Direito Administrativo Sancionador, em matéria ambiental, deve prevalecer o regime de responsabilização subjetiva do acusado.

Por decorrência, o respeito as garantias individuais frente ao acusado de cometer ilícitos ambientais, ainda que em sede administrativa, é medida que se impõe para afastar práticas inapropriadas como a inversão do ônus probatório, a presunção de culpabilidade.

Por outro lado, restará ao Estado acusador, a cabal demonstração de que o agente atuou de forma dolosa ou culposa, neste último caso, quando a Lei assim fizer previsão, a exemplo do que ocorre na apuração dos próprios crimes ambientais. Sem a previsão da modalidade culposa, não parecer lícita a aplicação de qualquer pena ao acusado por negligência, imprudência ou imperícia, na medida em que o ordenamento não admite a responsabilização pelo simples resultado, o que é típico do modelo de responsabilização objetiva, afastado pelo Superior Tribunal de Justiça, como enaltecido.

Ausente a demonstração de que o acusado, portanto, tenha atuado de forma dirigida, intencional ou que tenha assumido o risco de produzir o resultado, dentro de um parâmetro normal de previsibilidade ou que tenha, ainda, faltado com o dever objetivo de cuidado, com consequências igualmente previsíveis (quando a lei prever), não poderá o fato ser considerado típico em sua dimensão subjetiva e, portanto, punível.

Ao agente de fiscalização, por consequência, caberá revelar a materialização do fato reputado ilícito pela norma, e, reafirma-se, apresentar o estado anímico do infrator, como o respectivo nexo de causalidade, a quem cabe por designo constitucional, a presunção de inocência, mesmo em matéria administrativa sancionatória ambiental, até que se prove o contrário.

Notas:
[1] STJ, EREsp no 1318051, 1a Turma, Min. Rel. Mauro Campbell Marques, DJ 08.05.2019. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGeneric&termo=EREsp%201318051>. Acesso em 10.11.2020.

[2] Le sanzioni amministrative, apud COSTA JR.; DENARI, 2000, p. 9.

[3] OSÓRIO, Fábio Medina. Direito administrativo sancionador. 2.ed. São Paulo: RT, 2005. p.120.

[4] LOZANO JUNIOR, José Júlio. Prescrição penal. São Paulo: Saraiva, 2002. p.2.

[5] ALTAMIRA, Pedro Guillermo. Policía y poder de policía: derecho penal administrativo, derecho penal disciplinario, poder de policía comunal. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1963.

[6] AGUADO I CUDOLÀ, Vicenç. La presuncion de certeza em el derecho administrativo sancionador. Madrid: Editorial Civitas, 1994. p.19-20.

[7] Curso de Direito Administrativo, 17ª ed., Malheiros, pp. 746/747

[8] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal: Parte Geral e Parte Especial. 2008, p. 238

[9] MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente. Revista dos Tribunais. São Paulo, 2015. p. 409.

[10] OSÓRIO, Fábio Medina. Direito administrativo sancionador. 2.ed. São Paulo: RT, 2005. p.385.

[11] Curso de Processo Penal. 21. ed. São Paulo: Atlas, 2017.

[12] ZAFFARONI, Eugênio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro, 2002. p. 457

[13] NUCCI, Guilherme de Souza. Op. Cit. 2008., p. 218

[14] BIM, Eduardo Fortunato. O mito da responsabilidade objetiva no Direito Ambiental Sancionado. Revista de Direito Ambiental. RDA 57/33. 2010.

Franco Cristiano da Silva Oliveira Alves – Ex-Superintendente Regional de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da SUPRAM-TM, da Secretaria de Estado de Meio Ambiente (MG). Diretor de Compliance e Sustentabilidade – SPBR Governança Compliance & Sustentabilidade. CEO do Oliveira Alves Direito Ambiental, Urbanístico e Imobiliário. Diretor de Compliance do Instituto Brasileiro de Direito e Sustentabilidade. É advogado, especialista em Direito Público (Newton Paiva), especialista Geoprocessamento (PUC/MG), pós-graduando em Meio Ambiente e Sustentabilidade (FGV), Certificado em Data Science (PUC/RS), Certificado em Compliance e Gestão de Riscos ESG (PUC/RJ). Colaborador do Portal www.direitoambiental.com.
Ana Beatriz Gomes Santos. Advogada. Pesquisadora em Direito Ambiental.

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