sábado , 27 abril 2024
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Deferência administrativa na gestão ambiental: a recente Recomendação 02 do Conselho Nacional do Ministério Público

por Marcelo Kokke e Marcos André Bruxel Saes.

 

O processo administrativo ambiental brasileiro vivencia uma verdadeira crise de gestão quanto aos limites e atribuições não somente dos órgãos ambientais, mas principalmente da possibilidade de intervenções dos órgãos de controle e dos próprios limites de atuação do Poder Judiciário. A dinâmica de aplicação do Direito Ambiental brasileiro leva a uma inversão do primado de discussão da relação entre Poder Judiciário e atos administrativos. Se as construções de meados do século XX discutiam em si a ocorrência do controle judicial dos atos administrativos, o desafio constitucional brasileiro contemporâneo é estabelecer limites à esfera de atuação própria da gestão pública.

O quadro de instabilidade que marca o debate dos limites de atuação tanto dos órgãos de controle, em especial, do Ministério Público, quanto do Poder Judiciário é particularmente ímpar na matéria ambiental. Essa instabilidade é principalmente abordada sob um duplo viés.

De um lado, há um contexto de ações judiciais, em especial, ações penais, ações civis públicas e ações de improbidade administrativa, que visam não discutir uma decisão administrativa, uma licença ambiental, ou um licenciamento. Visa-se atribuir uma responsabilidade pessoal, penal ou cível, a um gestor, a um analista, a um servidor público pelo fato de ter emitido um ato administrativo ambiental ou uma avaliação técnica em contrariedade à perspectiva de correção sustentada pelo órgão de controle. Em outras palavras, se há várias possibilidades de decisão técnica ou de gestão, mas o técnico ou o gestor do órgão ambiental escolhe uma inadequada sob a perspectiva do Ministério Público ou de outro órgão de controle, passa aquele a ser alvo de retaliações pessoais punitivas. Acaba por se confundir divergência científica ou mesmo pluralidade de opções técnicas para a tomada de uma decisão com ilegalidades e até mesmo crimes. Coloca-se no mesmo grupo dos servidores que agem contrariamente à lei aqueles que apenas e tão somente possuem entendimento técnico divergente dos órgãos de controle.

Alguns casos são emblemáticos. No ano de 2016, o Ministério Público Federal ingressou com denúncia penal em face de Presidente do IBAMA e de Diretor de Licenciamento do IBAMA por decisões de gestão ambiental relativas à Usina Hidrelétrica de Jirau. O fato também gerou uma ação de improbidade, autos n. 2009.41.00.004.242-4. Desimportante se restou no caso, para fins de acusação, o fato de estarem as decisões administrativas motivadas, assim como em segundo plano ficou a questão em si do licenciamento ambiental. O trâmite do processo penal de autos n. 729-84.2016.4.01.3400 resultou em sentença absolutória, por inexistência de justa causa.

De igual forma, também a ACP por Improbidade Administrativa n. 5007287-84.2018.4.04.7101/RS, proposta contra nada menos que 10 servidores do órgão ambiental federal foi julgada improcedente. Isso porque entendeu o juízo que nenhuma das ações dos técnicos teria violado os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade. A divergência entre o órgão ambiental e o MP residiu no fato de que a Licença Prévia foi expedida tendo como condicionantes a apresentação de novos estudos para a fase da LI. Isso, que na verdade é opinião/decisão técnica, foi entendido como ato ímprobo pelo Parquet. Felizmente, como dito, a pretensão de responsabilização dos servidores restou julgada improcedente.

Sob outro viés, há um leque de ações civis públicas propostas não com o objetivo em si de cumprimento da norma ambiental, mas sim com o intento que seja afastada a opção de gestão ambiental, legítima, em prol de outra, vista pelo Ministério Público como mais adequada. Nessa linha, há uma busca pelo autor da ação civil pública não de fazer cumprir as normas ambientais propriamente ditas, mas uma busca de prevalecer determinada posição de mérito administrativo, dentro do leque de discricionariedade técnica existente dentre as várias alternativas científicas ou técnicas.

Há aqui também casos referenciais. Na ação civil pública de autos n. 57067-42.2016.4.01.3800, o pleito em si desenvolvido é alterar a categoria de uma unidade de conservação, opção definida tanto pelo Poder Legislativo quando pelo Poder Executivo quando de sua criação. Em outra demanda, o Ministério Público pleiteou que javalis, fauna sinantrópica nociva, invasora e tecnicamente reconhecida como geradora de malefícios sociais e ecológicos, não fossem submetidos à eutanásia.

O avanço das esferas de controle e do próprio Poder Judiciário sobre matérias em si objeto da gestão administrativa resultou tanto em linhas de autocontenção quanto em linhas legislativas e judiciais de enfrentamento e exposição de limites. Não se coloca aqui crítica aos órgãos de controle em si. As funções exercidas pelo Ministério Público e outros agentes de controle são de ímpar relevância para o Estado Democrático de Direito. O ponto de crítica é justamente o excesso, e por sua vez a necessidade de fixar limites. Limites esses que, quando extrapolados, podem justamente ter o resultado oposto da função precípua do Ministério Público, a de ser fiscal da correta aplicação da lei e, assim, promover a justiça.

Um dos principais diplomas legais que expressou a tentativa de estabelecer freios a excessos foi a Lei n. 13.655/2018, que alterou a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. O artigo 28 da norma veio a determinar que o agente público somente deve responder por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro. Ações penais, cíveis ou administrativas que visem antes de tudo punir pela discordância da opção técnica ou de gestão adotada são ilegítimas. Essas ações somente geram a ineficiência do Estado, o medo de decidir e afastam bons profissionais de cargos de gestão.

O Supremo Tribunal Federal julgou o tema dos limites da responsabilidade dos agentes públicos na ADI 6421. Embora a ação verse sobre a Medida Provisória n. 966/2020, relativa ao combate e resposta ao COVID19, sua ratio decidendi é de ampla aplicação em matéria ambiental. Reconheceu-se que a responsabilidade do agente público pode sim ser limitada às hipóteses de erro grosseiro e dolo, quando houver violação clara de normas e critérios científicos e técnicos, bem como dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção, plenamente materializados e concretos em sua aplicação, sob pena de difusão do law of fear, do Direito do Medo.

Esse julgamento do Supremo é extremamente importante a fim de diferenciar, por exemplo, o servidor inábil, do corrupto. E na seara ambiental, em que as divergências e correntes técnicas são quase o dia a dia de quem milita na área, é imprescindível separar o agente corrupto ou que age contrariamente ao ordenamento jurídico do agente que possui convencimento técnico. A sugestão de uma alternativa tecnológica (de contenção de poluentes, por exemplo) ou locacional pela equipe técnica que realiza um estudo ambiental e a definição das mesmas pelos servidores públicos é uma decisão técnica e jamais deveria ser objeto de ações criminais ou de improbidade.

Em relação ao conteúdo da decisão de gestão ambiental, ascende no Brasil, com certa dosagem de atraso, a aplicação da Doutrina Chevron. Adotada em ampla aplicação nos Estados Unidos e na dinâmica jurídica ocidental como um todo, a Doutrina Chevron firma por um limite de ingresso do Judiciário, não podendo haver invasão se a opção administrativa foi motivada e está amparada dentro do leque interpretativo técnico e legal. A decisão deve se restar com o órgão habilitado constitucional e legalmente para proferir sua posição de gestão regulatória e de aplicação administrativa. A limitação é compreendida pelo Supremo Tribunal Federal dentro do conceito de doutrina da deferência administrativa, e foi matéria de deliberação na ADI 4874, em mais um precedente de controle abstrato.

A gravitação de realização dos limites de resguardo da gestão administrativa encontrou recentemente um outro referencial. Em 19 de junho de 2020, o Conselho Nacional do Ministério Público editou a Recomendação Conjunta Presi-CN n. 2. A Recomendação visa estabelecer unidade, coerência e reconhecimento de limites para a atuação do Ministério Público. A Recomendação sustenta que a independência funcional do Ministério Público precisa ser conciliada com o respeito pelas atribuições alheias, assim como reconhece que “a efetivação das políticas públicas se dá exclusivamente por atos administrativos de gestão e não por atos judiciais ou de controle”. Acrescenta, ainda, “que a função ministerial é de controle e não de execução, e a decisão administrativa é parte fundamental da cadeia de execução da política pública”.

A Recomendação do Conselho Nacional do Ministério Público estabelece bases para que as ações civis públicas, ações penais e ações de improbidade mantenham-se em suas calhas institucionais, legítimas e necessárias para o cumprimento das determinações constitucionais, sem que se transformem em vias indiretas de invasão da gestão administrativa. Embora tenha somente caráter orientativo, a Resolução possui marca determinante na autocontenção reconhecida pelo CNMP e nas decorrentes interpretações judiciais dos limites de judicialização que irá acarretar.

O artigo 2º da Recomendação é de relevante importância para a seara ambiental. A regra dispõe por recomendar aos membros do Ministério Público brasileiro, ao que abrange todas as ramificações da instituição, que, na fiscalização de atos de execução de políticas públicas, seja respeitada a autonomia administrativa do gestor e observado o limite de análise objetiva de sua legalidade formal e material. Além disso, diante da falta de consenso científico em questão fundamental à efetivação de política pública, é atribuição legítima do gestor a escolha de uma dentre as posições díspares ou antagônicas, não cabendo ao Ministério Público a adoção de medida judicial ou extrajudicial destinadas a modificar o mérito dessas escolhas.

A Recomendação incorporou em si a Doutrina Chevron, ou doutrinada da deferência administrativa, absorvendo em teor normativo o comando já explicitado pelo Supremo Tribunal Federal. As consequências em matéria ambiental não são poucas. Embora nenhum dos casos tenha sido em si posto em gatilho por um dissenso propriamente ambiental, mas sim por fatores ligados à saúde, os marcos fixam a concretização de uma nova fase na esfera jurídica brasileira. A gestão ambiental não pode ser contrastada por discordância quanto a uma opção legítima do gestor ou do técnico simplesmente porque ou o Poder Judiciário ou o órgão de controle pensam que poderia haver uma solução melhor.

A gestão ambiental e os gestores ambientais passam a deixar de ser confrontados para provar que a opção técnica ou de decisória foi a melhor para somente poderem ser questionados a comprovar que sua opção técnica ou decisória possui apoio interpretativo e técnico com base no plexo de variáveis existentes. Tem-se aqui um redesenho para o assentamento de papéis institucionais e afastar uma dimensão de medo, de insegurança que vem permeando a atuação dos órgãos ambientais brasileiros. Os órgãos de controle possuem um papel essencial no Estado Democrático de Direito, mas este papel não pode lhes converter em gestores de políticas ou opções de políticas públicas legítimas, mas conviventes com alternativas por sua vez também legítimas.

Trazendo apenas alguns exemplos para a seara ambiental nesse período de pandemia, parece-nos claro que é parte da gestão ambiental a eventual renegociação de condicionantes ambientais, desde que não afetem a necessária proteção ao meio ambiente. Assim, a suspensão de eventuais programas ambientais que para serem executados gerem necessariamente aglomerações, ou de algumas condicionantes que diante do novo cenário gerem onerosidade excessiva, parece-nos plenamente viáveis e dentro da seara de decisão do gestor público. De igual forma a realização de Audiências Públicas virtuais deve ser incentivada, desde que se utilizem todas as ferramentas necessárias e, assim, garanta-se a efetiva participação popular. Em ambos os casos, não há nenhum desrespeito à legislação ambiental, apenas decisões administrativas tomadas dentro da esfera de competência do gestor público. Decisões essas que, inclusive, devem ser tomadas por esses gestores que estão investidos de poderes justamente para isso. Caberá, nesses casos, aos órgãos de controle, a fiscalização da legalidade dessas medidas e não de seu mérito.

O gestor público e a decisão de gestão pública ambiental passam a ser questionadas não para se provarem a melhor opção, dado o claro caráter subjetivo e variável que o termo implica. Cabe-lhes agora demonstrar que suas opções decisórias e de gestão são amparadas tecnicamente e legítimas perante o ordenamento jurídico.

Tem-se, assim, um redesenho para o assentamento de papéis institucionais e para o afastamento de uma dimensão de medo e de insegurança que vem permeando a atuação dos órgãos ambientais brasileiros. Os órgãos de controle possuem um papel essencial no Estado Democrático de Direito, mas este papel não pode lhes converter em gestores de políticas ou opções de políticas públicas legítimas, mas conviventes com alternativas por sua vez também legítimas.

kokke
Marcelo Kokke – Pós-doutor em Direito Público – Ambiental pela Universidade de Santiago de Compostela – ES. Mestre e Doutor em Direito pela PUC-Rio. Especialista em processo constitucional
Pós-graduação em Ecologia e Monitoramento Ambiental. Procurador Federal da Advocacia-Geral da União. Professor da Faculdade Dom Helder Câmara. Professor de Pós-graduação da PUC-MG. Professor do IDP – SP. Membro da Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil e da União Brasileira da Advocacia Ambiental.
Marcos André Bruxel Saes: Advogado com atuação na área ambiental. Professor em diversos cursos de pós graduação. Presidente da Comissão de Direito Ambiental do IBRADIM.

 

Direito Ambiental

Confira o texto da RECOMENDAÇÃO CONJUNTA PRESI-CN Nº 2, DE 19 DE JUNHO DE 2020:

CNMP – Recomendação Conjunta PRESI-CN nº 2, de 19 de junho de 2020

Direito Ambiental

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