Por Luciana Vianna Pereira e Juliana Lobato
Enquanto surgem e proliferam iniciativas de comercialização de créditos de carbono via token, uma preocupação se torna recorrente nos mercados mais sofisticados e entre compradores mais exigentes: como assegurar que os tokens realmente representam um (ou uma parte) de um crédito de carbono e que este mesmo crédito não está sendo comercializado em outra plataforma, por outra entidade?
Em novembro de 2021, a maior organização responsável por padrões e metodologias de créditos de carbono do mercado voluntário, a Verra, se manifestou acerca de uma prática que vinha se propagando entre diversas entidades, gerando bastante polêmica.
A prática consistia na geração de instrumentos criptográficos, feita por terceiros, associados a um crédito de carbono VCU (Verified Carbon Unit). Na prática, um crédito de carbono era dividido em pequenas partes representadas por tokens, o que permitiria a pulverização da comercialização e a venda de créditos de carbono por pequenos valores, permitindo a compensação de viagens aéreas, terrestres, compensações de gastos em supermercados, restaurantes, a compensação de pequenos eventos, encontros, etc.
No entanto, o que os vendedores da solução “créditos de carbono tokenizados” não contavam aos seus compradores era que essa atividade estava se dando através de VCUs canceladas ou aposentadas, ou ainda, mantendo uma parte do crédito tokenizado permanentemente ativo, resultando num crédito quase totalmente consumido, mas não aposentado nem cancelado.
Ao identificar tais problemas, a Verra proibiu a prática, já que isso poderia levar ao uso ou emissão dupla do crédito certificado, tendo em vista que o ato de aposentadoria representa o consumo total do benefício ambiental do crédito. Em diferentes ocasiões, a Verra emitiu avisos de advertência ao mercado, expressando que não administrava essas atividades criptográficas feitas por terceiros e não assumia, portanto, qualquer responsabilidade pelos tokens, os quais não eram verificados, licenciados ou autorizados pela Verra.
Mais tarde, em meados de 2022, ao perceber a necessidade de encontrar uma solução para a possibilidade de representação dos créditos de carbono em tokens (inteiros ou fracionados) e por reconhecer as possíveis oportunidades que os instrumentos criptográficos podem apresentar para os mercados ambientais e sociais, a Verra divulgou uma possível solução para dar transparência e rastreabilidade ao processo de “tokenização” de créditos “vivos” em contas no Registro Verra, de forma a evitar fraudes e a defender a integridade ambiental.
O nomeado processo de “imobilização” consistia no bloqueio ou congelamento, na conta de registro Verra do titular, do crédito associado a um token ou instrumento criptográfico correspondente.
Dessa forma, o VCU permaneceria “imobilizado” até que os tokens (também nomeados pela Verra de “Carbon Tokens”) fossem consumidos, de maneira que, após o consumo, tanto o VCU, como os tokens, sejam “queimados” e aposentados. Ainda, o crédito imobilizado poderia ser “reativado” com a queima do instrumento criptográfico correspondente que não obteve o consumo de seu benefício ambiental, hipótese que poderia se dar por diversas necessidades.
Nesse contexto, a Verra disponibilizou uma consulta pública sobre a abordagem proposta de permitir a “tokenização” de VCUs não consumidas por meio desse novo processo de imobilização, e delineou uma série de potenciais riscos sobre os quais solicitou sugestões e opiniões das partes interessadas.
A consulta, que foi aberta em agosto de 2022 e ficou disponível por três meses, buscou comentários sobre medidas para vincular de forma responsável as VCUs aos instrumentos de criptografia, bem como acerca das verificações de conhecimento do cliente (KYC), das alterações a serem implementadas nos Termos de Uso do Verra Registry e de uma possível criação de diretrizes e regras para evitar fraudes associadas ao processo de “tokenização”.
Logo, um resumo dos comentários recebidos por diversas partes interessadas, como grupos industriais, proponentes de projetos, compradores corporativos e organizações ambientais, foi divulgado pela organização em janeiro de 2023. De início, o documento traz algumas respostas acerca de possíveis medidas para associar as VCUs a instrumentos de criptografia. Dentre as sugestões, estão a incorporação de metadados nos tokens de carbono sobre a VCU subjacente e seu respectivo projeto, bem como o uso de ferramentas digitais que permitam um monitoramento contínuo do projeto gerador de crédito a partir dos tokens. Também, colocou-se a possibilidade de a Verra participar diretamente da emissão dos tokens ou de vincular seu registro ao do emissor de tokens de carbono aprovado, por meio de ferramentas de blockchain, podendo, ainda, registrar todas as transações de forma pública.
Sobre o projeto de imobilização em si, embora alguns entrevistados não tenham se mostrado a favor, a grande maioria considerou a proposta e diversas ações foram sugeridas, como: o desenvolvimento de uma plataforma criada pela própria Verra para a emissão e transferência de tokens; a implementação de uma ferramenta que permita um fluxo de dados entre as duas plataformas (Verra Registry e plataforma de emissão de tokens); uma conta especializada criada no registro da Verra para manter as VCUs imobilizadas; e uma função que permita declarações públicas, feitas pela Verra no blockchain, em relação a cada token.
Posteriormente, buscou-se, ainda, avaliar a possibilidade de fornecer a reativação de VCUs imobilizadas, ponto que deixou as respostas bem divididas. Aqueles que foram contra, consideraram que a reativação não era exigida pelo mercado e poderia ser um mecanismo difícil de ser realizado. Também, foi destacado que tal artifício seria arriscado por poder importar a volatilidade dos instrumentos criptográficos para o mercado de VCUs. Por outro lado, os apoiadores entendem que, em determinadas circunstâncias, pode-se haver a necessidade de mercado para a reativação de uma VCU subjacente, como nas hipóteses de falhas técnicas ou quando não surgir a demanda esperada para os tokens de carbono.
No que diz respeito as verificações de conhecimento do cliente (Know Your Client – KYC), foi possível dividir as respostas dos entrevistados em duas categorias. A primeira consiste na aplicação de verificações corporativas para averiguar questões como a situação financeira da plataforma de cripto, o envolvimento de entidades sancionadas, bem como para executar verificações gerais contra a lavagem de dinheiro. Já a segunda categoria abrangeria os processos e operações técnicas, incluindo a execução de auditorias de segurança cibernética, a coleta de informações sobre os atributos ESG do blockchain e da própria plataforma, averiguação de licenças das autoridades locais para operar negociações de tokens e análise da própria política KYC da plataforma de cripto.
Nesse sentido, foi majoritário o entendimento de que as verificações KYC devem ser aplicadas às entidades que recebem tokens de carbono recém-emitidos e àquelas que solicitam a reativação de VCUs. Embora um grupo tenha defendido a aplicação para todas as entidades que detenham tokens de carbono, incluindo os detentores intermediários, a Verra destacou que as verificações em detentores intermediários seriam possíveis apenas se o blockchain restringisse as transações a titulares de contas na plataforma.
Com relação aos usuários de tokens de carbono, ou seja, as entidades que usam de fato o crédito e o aposentam, presumiu-se que esses precisariam possuir contas no Verra Registry e, portanto, passariam pelas verificações usuais da Verra. Por fim, quanto aos beneficiários, em cujo nome os tokens são queimados e os VCUs são retirados, alguns entrevistados acreditam que esses detentores não deveriam estar sujeitos às verificações KYC, já que a própria Verra Registry não os inclui em suas verificações.
Por último, foi oportunizado aos entrevistados que sugerissem possíveis alterações textuais aos termos de uso do Registro Verra, principalmente no que diz respeito às medidas antifraude relacionadas à associação de instrumentos criptográficos de terceiros com VCUs, a fim de abordar os possíveis riscos e de reger a tokenização de VCUs.
Assim, dentre as alterações propostas, estão: a exigência de declaração expressa do proponente do projeto de que está disposto a emitir tokens e a permitir um link entre a plataforma e o Registro Verra para as transações de “carbon tokens”; o comprometimento do proponente de não emitir nenhum token de carbono que não seja por meio da plataforma aprovada vinculada à Verra; a garantia, pelo proponente, de que as reduções de emissão não possam mais ser transacionadas e se tornem propriedade do comprador, após a transação de tokens; a declaração de que apenas tokens que tenham VCUs como ativos garantidores sejam considerados válidos para negociações na plataforma aprovada e que as VCUs imobilizadas não poderão ser usadas para reivindicar atributos ambientais subjacentes.
Ainda, com o objetivo de resolver possíveis situações de negociações errôneas ou fraudulentas, aconselhou-se à Verra a inclusão de uma cláusula estabelecendo que registro da Verra terá prioridade sobre a plataforma aprovada em casos de conflito e que a Verra é a única autoridade capaz de reativar VCUs imobilizadas. Finalmente, no que diz respeito à aprovação de uma entidade como plataforma de tokenização autorizada, foi sugerido a observância de alguns requisitos, como ser pessoa jurídica, aceitar os termos de uso, fornecer informações de identificação suficientes e ter capacidade de monitorar as transações. Nesse sentido, entendeu-se, também, que a Verra poderá, a seu critério, recusar-se a aprovar uma criptomoeda ou entidade como uma plataforma autorizada.
O relatório da consulta pública foi divulgada em janeiro de 2023, porém, até o momento, ainda não tivemos maiores novidades sobre o caso ou uma solução definitiva para os carbono tokens.
Não é demais lembrar que foi também em janeiro desse ano que teve início uma outra – e igualmente importante – polêmica envolvendo a integridade dos créditos da Verra pela comparação entre metodologias aprovadas pela entidade.
Ocorre que, por administrar um dos maiores padrões de certificação de redução de emissões, as decisões e entendimentos emitidos pela Verra sobre a tokenização de compensações de carbono devem ser observados com atenção e podem afetar toda a lógica e o funcionamento do mercado voluntário de créditos de carbono.
Se por um lado a discussão é necessária e a possibilidade de tokenização dos créditos de carbono permitirá a real pulverização do mercado e a ampliação do volume de participantes do mercado, por outro, ainda é preciso tomar muito cuidado com a forma como a tokenização vem sendo realizada.
Não custa lembrar que as plataformas que comercializam créditos tokenizados recebem comissão por cada venda. O mínimo que o comprador pessoa física e que opta por comprar créditos de carbono para compensar sua viagem de táxi ou o jantar com amigos ou as compras que faz no supermercado é a certeza de que, de fato, está comprando um produto que existe. E se é para neutralizar sua pegada individual de carbono, é preciso ter a certeza de que o crédito ou a parte do crédito comprado será devidamente aposentado.
É necessário criar estruturas confiáveis para implementar a tokenização dos créditos de carbono com segurança, transparência e de forma consistente e coordenada com o registrador do crédito de carbono, como é o caso da Verra.
O fenômeno da tokenização já começou. Agora, é preciso assegurar que o comprador receberá pelo que pagou.
Luciana Vianna Pereira é advogada em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Autónoma de Lisboa, pós-graduada em Direito Ambiental Brasileiro, pela PUC-Rio, e em Gestão Ambiental, pela COPPE-UFRJ. Especialista em Direito Ambiental, Societário e Contratual, com mais de 18 anos de atuação, professora de cursos de especialização sobre ESG e autora de diversos artigos sobre direito ambiental e sustentabilidade. Atualmente, é Assessora Especial na Secretaria de Planejamento e Gestão do Estado do Rio de Janeiro e integra a equipe responsável pelo projeto “Economia Verde – Nova Fronteira”.
Juliana Lobato é graduanda em Direito pela Universidade Federal de Alagoas e estagiária no escritório L. Vianna Pereira Advocacia. É membro da Comissão de ESG do Instituto de Direito Ambiental e faz parte, atualmente, do Grupo de Trabalho de Clima e Energia da Cátedra Jean Monnet da ESPM.
Gostou do conteúdo? Então siga-nos no Facebook, Instagram e acompanhe o nosso blog! ! Para receber notícias ambientais em seu celular, clique aqui.
Leia também:
https://direitoambiental.com/uhe-belo-monte-essencial-para-o-brasil/