Por Marcus Lima
A subordinação administrativa do setor de licenciamento ambiental municipal a uma pasta de outro tema constitui uma ilegalidade? Oferecer o serviço de licenciamento ambiental ao empreendedor no âmbito de uma Secretaria de Desenvolvimento Econômico representa “conflito de interesses”?
A dúvida surgiu a partir da publicação em 29 de janeiro de 2021 de uma medida que gerou polêmicas e questionamentos por parte de juristas e técnicos da área de meio ambiente.
De acordo com o Decreto 48.480, o serviço de licenciamento ambiental passará a ser realizado pela Subsecretaria de Controle e Licenciamento Ambiental, em uma nova “pasta” chamada de Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Inovação e Simplificação. O decreto transfere também todos os cargos efetivos e em comissão, vagos e ocupados, com seus respectivos ocupantes e encargos, da Coordenadoria de Controle Ambiental, atualmente na Secretaria de Meio Ambiente para a subsecretaria da SMDEIS.
Em nota enviada pela Prefeitura ao Jornal O Eco, a transferência do serviço não significa “afrouxamento das exigências das licenças concedidas” e a medida teria como objetivo “dar segurança jurídica, eficiência e integrar todo o processo de licenciamentos em um único órgão da Prefeitura”.
As críticas à essa alteração na organização administrativa da prefeitura do Rio, levantam dúvidas não apenas quanto à sua legalidade, mas também quanto ao risco de um possível “esvaziamento” da área ambiental no município. Passemos a analisar esses 2 aspectos.
Inicialmente, cabe analisar a questão da legalidade, uma vez que não sendo legal a medida, não se justificaria sequer analisar a sua conveniência e oportunidade, ou sua eficiência.
A missão delegada à administração pública para efeito de defesa e preservação do “meio ambiente ecologicamente equilibrado para as presentes e futuras gerações”, foi estabelecida pela nossa lei maior, a Constituição Federal de 1988, em seu Artigo 225. Segundo a carta magna, para a consecução dessa missão, o poder público foi incumbido das seguintes tarefas, dentre outras, no exercício do poder de polícia ambiental:
– exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade;
– controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente;
– sujeitar os infratores, causadores de danos ao meio ambiente, pessoas físicas ou jurídicas, a “sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados”.
Por outro lado, a Política Nacional de Meio Ambiente, regulamentada pela Lei 6.938/81, ao elencar os seus objetivos principais, não por acaso, iniciou pela seguinte determinação:
I – a compatibilização do desenvolvimento econômico-social com a preservação da qualidade do meio ambiente e do equilíbrio ecológico; (Art. 6º)
Analisando a questão levantada na mídia quanto a existência de conflito de interesses entre o tema da preservação ambiental, e o do desenvolvimento econômico, é possível concluir, por força apenas dessa normativa, que este conflito não deverá existir. Compatibilizar significa tornar compatível, adaptar, e não entrar em confronto. Esse deveria ser o objetivo a ser perseguido pelo gestor ambiental público, em respeito ao que determina a Lei 6.938/81.
Por outro lado, é necessário entender que existem pré-requisitos legais para o exercício do poder de polícia administrativo, em especial no que diz respeito à fiscalização e ao licenciamento ambiental. Estas regras estão organizadas na Lei Complementar 140, em vigor desde dezembro de 2011, e que assim prevê como condições para o município, ou mesmo qualquer outro ente federativo, estar legitimado para licenciar:
Art. 5o O ente federativo poderá delegar, mediante convênio, a execução de ações administrativas a ele atribuídas nesta Lei Complementar, desde que o ente destinatário da delegação disponha de órgão ambiental capacitado a executar as ações administrativas a serem delegadas e de conselho de meio ambiente.
Parágrafo único. Considera-se órgão ambiental capacitado, para os efeitos do disposto no caput, aquele que possui técnicos próprios ou em consórcio, devidamente habilitados e em número compatível com a demanda das ações administrativas a serem delegadas.
Não há, portanto, no texto da Lei Complementar, qualquer alusão à necessidade de um órgão ambiental capacitado ser, ou estar vinculado a uma “Secretaria de Meio Ambiente”. Aliás, diversos são os casos de municípios no Estado do RJ que não possuem Secretaria específica de meio ambiente. Muitos optam por unir temas diferentes (que para o observador incauto podem até parecer conflitantes), tais como agricultura (uma atividade econômica) e meio ambiente. Ou ainda, turismo (outra atividade econômica) e meio ambiente.
O próprio município do Rio, na gestão que se encerrou em 31/12/2020, o serviço de licenciamento ambiental estava subordinado à uma “super-secretaria” chamada de “Infraestrutura, Habitação e Conservação”. Isso porque o então prefeito Marcelo Crivella, havia extinto por decreto[1] a então Secretaria de Conservação e Meio Ambiente, que já agregava serviços como o asfaltamento de ruas. Mas isso não foi tão severamente questionado na época.
A Lei Complementar 140 determina que um órgão ambiental para ser considerado “capacitado” deve “possuir técnicos próprios ou em consórcio, devidamente habilitados e em número compatível com a demanda das ações administrativas a serem delegadas”, e segundo as informações divulgadas pela Prefeitura do Rio de Janeiro[2], a proposta não é transferir apenas as atribuições de uma pasta para a outra, mas também todos os cargos “efetivos e em comissão, vagos e ocupados, com seus respectivos ocupantes e encargos”. Sendo isso efetivamente cumprido, estaria, em nosso entendimento, atendida a Lei Complementar, não havendo, portanto, qualquer violação do Princípio da Legalidade.
A fim de esgotar o tema da legalidade ou não dessa mudança, analisemos as previsões legais da Lei da Política Nacional de Meio Ambiente, quanto à restrições ou impedimentos que possam obstar essa medida. Nesse sentido, cabe entender a proposta de criação do SISNAMA, o Sistema Nacional de Meio Ambiente.
O Sistema Nacional de Meio Ambiente (SISNAMA) foi criado pela Lei 6.938/81 como sendo o conjunto de “órgãos e entidades da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios, bem como as fundações instituídas pelo Poder Público, responsáveis pela proteção e melhoria da qualidade ambiental”. Lá também não há referência à necessidade desses “órgãos” terem status hierárquico de “Secretarias”, até mesmo porque tal determinação em uma Lei Federal, seria uma evidente afronta à autonomia dos entes federados para se organizarem administrativamente de forma independente. Assim está estruturado o SISNAMA:
I – órgão superior: o Conselho de Governo, com a função de assessorar o Presidente da República na formulação da política nacional e nas diretrizes governamentais para o meio ambiente e os recursos ambientais
II – órgão consultivo e deliberativo: o Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA), com a finalidade de assessorar, estudar e propor ao Conselho de Governo, diretrizes de políticas governamentais para o meio ambiente e os recursos naturais e deliberar, no âmbito de sua competência, sobre normas e padrões compatíveis com o meio ambiente ecologicamente equilibrado e essencial à sadia qualidade de vida;
III – órgão central: a Secretaria do Meio Ambiente da Presidência da República, com a finalidade de planejar, coordenar, supervisionar e controlar, como órgão federal, a política nacional e as diretrizes governamentais fixadas para o meio ambiente
IV – órgãos executores: o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade – Instituto Chico Mendes, com a finalidade de executar e fazer executar a política e as diretrizes governamentais fixadas para o meio ambiente, de acordo com as respectivas competências;
V – Órgãos Seccionais: os órgãos ou entidades estaduais responsáveis pela execução de programas, projetos e pelo controle e fiscalização de atividades capazes de provocar a degradação ambiental
VI – Órgãos Locais: os órgãos ou entidades municipais, responsáveis pelo controle e fiscalização dessas atividades, nas suas respectivas jurisdições
Com base no dispositivo acima, e a estruturação estabelecida para o SISNAMA, os municípios estão enquadrados como “órgãos locais”. Ou seja, em mais uma oportunidade, o legislador que poderia ter atribuído a estes órgãos a categoria de “Secretarias”, deliberadamente não o fez, o que nos leva ao entendimento que um órgão ambiental, membro do SISNAMA pode perfeitamente não ter o status de uma Secretaria, e por conseguinte, poderia estar inserido no organograma administrativo de um município, sob qualquer denominação.
Encerrando a análise da legalidade da medida ora questionada, passemos a analisar a transferência de todo um setor de controle ambiental para a Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Inovação e Simplificação, sob um ponto de vista prático e operacional. Para isso, inicialmente precisamos entender a natureza jurídica de uma licença ambiental, e sua relevância dentro de um sistema maior de controle ambiental onde outros instrumentos também exercem o seu papel.
Embora nem todos os juristas sejam uníssonos quanto à natureza jurídica de uma licença ambiental, é praticamente majoritária a visão que defende tratar-se de ato vinculado da administração pública. Ou seja, sendo atendidas todas as exigências e parâmetros legais quanto à atividade potencialmente poluidora, não há como o agente público negar a concessão da licença ao seu requerente. Ao contrário do que seria a natureza jurídica de uma autorização, por exemplo, ou outros instrumentos da administração pública.
Para compor e definir quais são as exigências e parâmetros a serem cumpridos por qualquer atividade potencialmente poluidora, seja esta um empreendimento industrial, ou imobiliário, geração de energia, ou obras civis de infra-estrutura, existem leis ordinárias, resoluções do CONAMA, além de portarias e normas técnicas emitidas por órgãos ambientais. Todos com caráter de lei e quem devem ser cumpridos a qualquer custo. Sob pena inclusive de responsabilização criminal, não apenas de quem praticou a ação, mas também do agente público que porventura a tenha autorizado em desrespeito à essas normas.
É exatamente essa obrigação acima, de cumprimento dessas normas, que vai subordinar o desenvolvimento econômico. Não o contrário. Não é o analista ambiental, não é o secretário de meio ambiente, não será o secretário de desenvolvimento econômico e nem tampouco o prefeito de uma cidade que terá poderes para subverter essas normas e parâmetros.
Enquanto os requerimentos de licença ambiental forem analisados sobe essa ótica, não há prejuízo para o controle ambiental, independente de em qual secretaria estarão lotados os servidores designados para essa tarefa.
Para finalizar, devemos tecer alguns comentários sobre o papel do licenciamento ambiental, em um sistema mais amplo de controle ambiental.
Importante que se tenha a dimensão do que é um sistema de controle ambiental. Principalmente, é importante esclarecer que, ao contrário do que o grande público parece entender, o licenciamento é apenas um dos inúmeros instrumentos de controle previstos na já mencionada Política Nacional de Meio Ambiente. Existe uma visão no âmbito da sociedade, no nosso entender uma visão distorcida, de que todos os problemas ambientais poderiam ser resolvidos na fase de licenciamento. Não se discute o zoneamento ecológico, muita defasagem existe ainda no aspecto dos parâmetros – a produtividade do CONAMA é ínfima diante da necessidade – e de modo geral, não se faz acompanhamento de licença em praticamente nenhuma parte do território nacional.
Não se deve perder de vista a importância da fiscalização ambiental, do monitoramento da qualidade ambiental, e em especial, do acompanhamento de cumprimento de condicionantes de licenças, eis que, danos ao meio ambiente tem origem em duas, e duas únicas possíveis situações: atividades potencialmente poluidoras “regulares” – as que possuem licença ambiental válidas, e aquelas que nem sequer abriram requerimento para atuar de forma regular perante os órgãos ambientais, e portanto vistas como “irregulares” ou “clandestinas”, passíveis de sanções administrativas e penais independente de terem causado dano, ou não.
Em nenhum dos casos acima, as atividades estão sob a gestão do setor de licenciamento ambiental do órgão. Se são regulares e já obtiveram licença, essas fazem parte da gestão dos setores de pós-licença e acompanhamento de condicionantes do órgão ambiental. Se não, são de responsabilidade do serviço regular de fiscalização rotineira. No caso da Prefeitura do Rio, entende-se que estes serviços continuam sob a gestão da Secretaria de Meio Ambiente.
Outro aspecto do ponto de vista prático que não parece estar sendo considerado, está relacionado com um outro Decreto emitido pela atual gestão municipal, mas que não foi objeto de críticas tão acaloradas. No dia 01/01/2021, no primeiro Diário Oficial do ano, foi publicado o Decreto 48.413, que institui no âmbito do licenciamento ambiental municipal, o instrumento da LAC – Licença Ambiental Comunicada. Essa espécie de licença, que já havia sido instituída no âmbito do licenciamento ambiental estadual[3], cria a possibilidade do “empreendimento ou atividades classificadas como de porte mínimo ou pequeno e potencial poluidor baixo” ser licenciado por meio de um procedimento auto declaratório. Assim dispõe o Decreto, em seu Artigo 1-A:
§ 4º A LAC será concedida, eletronicamente, após inserção da documentação exigida no sistema e preenchimento de termo de responsabilidade pelo empreendedor e responsável técnico, que ateste a veracidade das informações prestadas, nos termos do disposto no art. 1º.
§ 5º A Subsecretaria de Licenciamento Ambiental não realizará vistoria prévia nos casos de empreendimentos ou atividades sujeitos à LAC, sem prejuízo da fiscalização posterior por amostragem ou sempre que julgar
necessária.
Diante da implementação desse instrumento, o volume de trabalho dos analistas ambientais envolvidos com o licenciamento, diminuirá consideravelmente. Para aqueles que discordam do uso dessa espécie de licença, tal medida, em tese, esvaziaria muito mais uma Secretaria de Meio Ambiente do que propriamente a transferência de todo o corpo de analistas para outra Secretaria.
A bem da verdade, e levando-se em conta que pelo menos 80% dos processos de requerimento de licença ambiental de competência do município se encaixa nos critérios para a LAC, é possível afirmar que a diminuição do volume de serviço em um setor de licenciamento ambiental, permite inclusive que uma parte do contingente de técnicos que anteriormente atuavam analisando projetos e fazendo vistorias para eventual concessão de licenças ambientais seja remanejado para os setores de fiscalização e acompanhamento de condicionantes de licenças. Atividades que, conforme já analisamos, concentram potencial muito maior de identificação de danos ao meio ambiente. Ou seja, é possível aumentar o controle sobre os impactos ao meio ambiente, sem aumentar o contingente de servidores da área ambiental.
Naturalmente, resta observarmos se de fato é essa a intenção da prefeitura do Rio, que por enquanto não explicou de forma detalhada qual é a sua estratégia para aperfeiçoar o controle de atividades potencialmente poluidoras no território municipal. É sobre isso que a sociedade deve cobrar resultados.
Rio, 08/02/2021
—
Notas:
[1] Decreto 46.572 de 3 de Outubro de 2019
[2] Disponível em https://www.oeco.org.br/noticias/prefeitura-do-rio-transfere-licenciamento-ambiental-para-secretaria-de-desenvolvimento/
[3] Lei 46.890/2019 – Institui o Sistema Estadual de Licenciamento e Controle Ambiental