“A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) concedeu ordem de habeas corpus a um homem acusado de praticar crime ambiental. O colegiado acolheu os argumentos da defesa de inépcia da denúncia por ausência de norma complementadora que indicasse as espécies de animais proibidas.
O caso aconteceu em Mato Grosso. Um homem foi denunciado pela prática do crime previsto no artigo 34, III, da Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/98), por ter transportado espécimes de peixes em período no qual a pesca seria proibida.
No pedido de habeas corpus, foi alegada a inépcia da denúncia por ausência de norma complementadora, tendo em vista que o dispositivo que incrimina a pesca em períodos proibidos é norma penal em branco. Para a defesa, a denúncia deveria ter apresentado a norma complementadora para conceituar e discriminar quais espécimes seriam provenientes da coleta, apanha e pesca proibidas.
O relator, ministro Nefi Cordeiro, votou pela concessão da ordem. Segundo ele, é entendimento pacificado no STJ de que na imputação de crime previsto em norma penal em branco, ou seja, cuja descrição da conduta necessita de complementação por outra norma, exige-se que a denúncia indique qual legislação ou ato normativo constitui o respectivo complemento.
‘O referido crime, por se tratar de norma penal em branco, deve ser complementado pela legislação que oferece parâmetros para a pesca autorizada, sob pena de tornar inepta a denúncia por impossibilitar a defesa adequada ao acusado’, concluiu o relator.
A turma, por unanimidade, determinou o trancamento da ação penal”.
HABEAS CORPUS Nº 304.952 – MT (2014⁄0244323-7)
RELATOR |
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MINISTRO NEFI CORDEIRO |
IMPETRANTE |
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ABADIO BAIRD E OUTROS |
ADVOGADO |
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ABADIO BAIRD E OUTRO(S) |
IMPETRADO |
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MATO GROSSO |
PACIENTE |
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JADIR RIBEIRO DA SILVA |
RELATÓRIO
O EXMO. SR. MINISTRO NEFI CORDEIRO (Relator):
Trata-se de habeas corpus substitutivo, impetrado em favor de Jadir Ribeiro da Silva, em face da 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso que, por unanimidade, denegou a ordem de writ lá impetrado.
Extrai-se dos autos que o paciente foi denunciado pela prática do crime previsto no art. 34, III, da Lei de Crimes Ambientais, por ter “transportado espécimes de peixes em período no qual a pesca seria proibida.”
Requer o impetrante, em síntese, o trancamento da ação penal nº 0000442-53.2010.8.11.0027, por ser a denúncia inepta em razão da ausência de indicação da norma complementadora do tipo penal descrito no art. 34, III, da Lei de Crimes Ambientais.
A liminar foi indeferida. (fl. 205)
O Ministério Público Federal manifestou-se pelo não conhecimento do habeas corpus. (fl.221⁄223)
Em 02⁄02⁄2016, a defesa protocolou manifestação em que requer: a) efetiva análise de mérito, não obstante tenha o Ministério Público afirmado que a impetração tem seu seguimento prejudicado pela aceitação da proposta de suspensão condicional do processo; b) concessão de pleito cautelar tendente a sobrestar a ação penal de origem até o julgamento do mérito do writ.
Informações de 16⁄02⁄2016, obtidas no sítio eletrônico do Tribunal de Justiça do Mato Grosso, dão conta que os autos encontram-se conclusos para decisão desde 11⁄02⁄2016, tendo sido homologada a proposta de suspensão condicional do processo em 03⁄09⁄2014, a qual está sendo regularmente cumprida.
É o relatório.
HABEAS CORPUS Nº 304.952 – MT (2014⁄0244323-7)
VOTO
O EXMO. SR. MINISTRO NEFI CORDEIRO (Relator):
Ressalvada pessoal compreensão diversa, uniformizou o Superior Tribunal de Justiça ser inadequado o writ quando utilizado em substituição a recursos especial e ordinário, ou de revisão criminal (HC 213.935⁄RJ, Rel. Ministro GILSON DIPP, QUINTA TURMA, DJe de 22⁄8⁄2012; e HC 150. 499, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, DJe de 27⁄8⁄2012, assim alinhando-se a precedente do Supremo Tribunal Federal (HC 104.045⁄RJ, Rel. MINISTRA ROSA WEBER, PRIMEIRA TURMA, DJe de 6⁄9⁄2012).
Nada impede, contudo, que, de ofício, constate a Corte Superior a existência de ilegalidade flagrante, abuso de poder ou teratologia, o que ora passo a examinar.
De início, na petição datada de 02⁄02⁄2016 (fl. 252⁄258), requer a defesa sejam desacolhidos os argumentos do Ministério Público Federal no sentido de estar prejudicado owrit em razão da homologação da proposta de suspensão condicional do processo.
Com razão a defesa.
Entende essa Corte que a superveniente homologação de proposta de suspensão condicional do processo não acarreta a prejudicialidade do writ que pretende o trancamento da ação penal por inépcia ou justa causa, tendo em vista a possibilidade de se retomar o curso da ação penal caso descumpridos as condições impostas. Nesse sentido:
PROCESSUAL PENAL. EMBRIAGUEZ AO VOLANTE. RECEBIMENTO DA DENÚNCIA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL POR FALTA DE JUSTA CAUSA. SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO ACEITA E HOMOLOGADA. PREJUDICIALIDADE DO PEDIDO DEDUZIDO EM HABEAS CORPUS. IMPOSSIBILIDADE.
1 – Recebida a denúncia, a superveniente suspensão condicional do processo, aceita pelo réu e homologada pelo juiz, não importa em falta de interesse de agir e prejudicialidade do habeas corpus impetrado com o objetivo de trancar a ação penal por falta de justa causa. Precedentes desta Corte.
2 – Recurso ordinário provido para, anulando o acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, determinar àquele Pretório que julgue o mérito da impetração, conforme entender de direito.
(RHC 62.036⁄SP, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 25⁄08⁄2015, DJe 11⁄09⁄2015)
RECURSO EM HABEAS CORPUS. EMBRIAGUEZ AO VOLANTE. ART. 306 DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO. PEDIDO DE TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. MATERIALIDADE DELITIVA. ETILÔMETRO. CALIBRAGEM. CERTIFICAÇÃO DE VALIDADE PELO INMETRO. RECURSO NÃO PROVIDO.
1. O fato de o acusado ter aceitado a proposta de suspensão condicional do processo não constitui óbice ao conhecimento do pretendido trancamento da ação penal, porquanto o recorrente permanece submetido ao cumprimento das condições impostas por ocasião da concessão do benefício que, se descumpridas, acarretam a retomada do curso da ação penal.
2. O trancamento da ação penal em sede de habeas corpus, por ser medida excepcional, somente é cabível quando for demonstrada, de maneira inequívoca, a atipicidade da conduta, a absoluta falta de provas da materialidade do crime e de indícios de autoria ou a existência de causa extintiva da punibilidade, o que, a toda evidência, não é o caso dos autos.
(…)
6. Recurso ordinário em habeas corpus não provido.
(RHC 35.258⁄MS, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 16⁄12⁄2014, DJe 03⁄02⁄2015)
É a hipótese dos autos, em que a homologação da aceitação da proposta de suspensão condicional do processo não prejudica a análise de inépcia da denúncia.
No mérito do presente writ, requer a defesa o trancamento da ação penal por inépcia da denúncia “por ausência de norma complementadora“, tendo em vista que “(…) o legislador, ao dispor a respeito do tipo penal trazido no art. 34, III, da Lei de Crimes Ambientais deixou, ao alvedrio de norma diversa, a complementação da elementar do tipo ‘espécimes provenientes da coleta, apanha e pesca proibidas’, tratando-se, pois, sem qualquer dúvida, de uma norma penal em branco (…)“. (fl. 7)
A extinção da ação penal por falta de justa causa ou por inépcia formal da denúncia situa-se no campo da excepcionalidade. Somente é cabível o trancamento da ação penal por meio do habeas corpus quando houver comprovação, de plano, da ausência de justa causa, seja em razão da atipicidade da conduta supostamente praticada pelo acusado, seja da ausência de indícios de autoria e materialidade delitiva, ou ainda da incidência de causa de extinção da punibilidade.
Assim narra a inicial acusatória (fls. 26⁄27):
“(…)
Em data de 25 de janeiro de 2010, por volta das 17h00min, no Mineirinho, nesta cidade, o denunciado JADIR RIBEIRO DA SILVA transportou espécimes de peixes em período no qual a pesca é proibida.
Na indigitada data, a Polícia Militar Ambiental realizava fiscalização na região do Mineirinho, nesta cidade, quando abordou o denunciado Jadir Ribeiro da Silva transportando 20 Kg (vinte quilogramas) de espécimes de peixe, como piau, piraputanga e tucunaré, conforme termo de apreensão de fls. 04.
Diante de todo o ocorrido, denuncio a Vossa Excelência JADIR RIBEIRO DA SILVA, como incurso no artigo 34, III, da Lei 9605⁄98.
Requeira que uma vez recebida e autuada esta, seja procedida a citação do denunciado para a oferta de defesa Preliminar escrita, nos termos do rito sumário do Código de Processo Penal, processado e, ao final, condenado, tudo nos termos do devido processo legal, ouvindo-se oportunamente as testemunhas abaixo arroladas.
(…)”
E assim se pronunciou o tribunal a quo sobre o tema: (fls. 77⁄80)
“(…)
Empós desvelado exame do acervo documental coligido aos autos, não nos foi dado lobrigar o constrangimento ilegal apontado na página capitular, impondo-se-nos, dessarte, manter a tramitação da ação penal movida contra o paciente.
Com efeito, o trancamento da ação penal, pela angusta senda do habeas corpus, apresenta-se como medida excecional, sendo factível se e quando de plano, sem um juízo de valoração das provas, restar evidenciada a atipicidade do fato, a absoluta ausência de indícios idôneos a fundamentarem a acusação ou uma das causas de extinção da punibilidade,requisitos, todos, invisosna hipótese em estima.
Da desvelada análise da peça acusatória, vislumbramos que esta descreve com clareza a conduta criminosa imputada ao recorrente, apresentando o fundamento jurídico, bem como elenca os meios de prova a serem produzidos e as testemunhas a serem inquiridas, em consonância com o regramento contido no art. 41 do CPP e de maneira suficiente ao pleno exercício do direito de defesa.
Releve-se, ademais, que a inicial acusatória é peça meramente técnica e deve primar pela concisão, limitando-se a apontar os fatos cometidos pelo autor, para que ele possa se defender, de sorte que só há falar em eventual inépcia da denúncia na hipótese em que demonstrada inequívoca deficiência a impedir a compreensão da acusação, em evidente prejuízo à defesa do acusado, o que não se verifica no caso em estima.
Desnecessária, portanto, a indicação de normas que complementem o tipo penal em tela [norma penal em branco, primariamente remetida], maiormente quando indicada com acurácia a classificação do delito.
Por conseguinte, à míngua de constrangimento ilegal, denegamos a ordem requestada.
Como se vê, a inicial acusatória, de fato, deixou de explicitar a norma complementadora do tipo penal do art. 34, parágrafo único, III, da Lei 9605⁄98.
Assim descreve o referido artigo:
“Art. 34. Pescar em período no qual a pesca seja proibida ou em lugares interditados por órgão competente:
Pena – detenção de um ano a três anos ou multa, ou ambas as penas cumulativamente.
Parágrafo único. Incorre nas mesmas penas quem:
I – pesca espécies que devam ser preservadas ou espécimes com tamanhos inferiores aos permitidos;
II – pesca quantidades superiores às permitidas, ou mediante a utilização de aparelhos, petrechos, técnicas e métodos não permitidos;
III – transporta, comercializa, beneficia ou industrializa espécimes provenientes da coleta, apanha e pesca proibidas.
Impõe-se, in casu, a complementação da elementar do referido tipo penal para conceituar e discriminar quais seriam as “espécimes provenientes da coleta, apanha e pesca proibidas“.
Desse modo, o acórdão do Tribunal a quo diverge do entendimento desta Corte, segundo o qual o referido crime, por se tratar de norma penal em branco, deve ser complementado pela legislação que oferece parâmetros para a pesca autorizada, sob pena de tornar inepta a denúncia por impossibilitar a defesa adequada ao acusado:
CRIMINAL. HABEAS CORPUS. CRIME AMBIENTAL. ART. 34, PARÁGRAFO ÚNICO, INCISO III, DA LEI Nº 9.605⁄98. NORMA PENAL EM BRANCO. DENÚNCIA OFERECIDA SEM EXPOSIÇÃO DA NORMA INTEGRATIVA. INÉPCIA. ORDEM CONCEDIDA.
I. Denúncia oferecida pelo delito de comercialização de pescados proibidos ou em lugares interditados por órgão competente.
II. Tratando-se de norma penal em branco, é imprescindível a complementação para conceituar a elementar do tipo “espécimes provenientes da coleta, apanha e pesca proibidas”.
III. O oferecimento de denúncia por delito tipificado em norma penal em branco sem a respectiva indicação da norma complementar constitui evidente inépcia, uma vez que impossibilita a defesa adequada do acusado. Precedentes.
IV. Ordem concedida.
(HC 174.165⁄RJ, Rel. Ministro GILSON DIPP, QUINTA TURMA, julgado em 01⁄03⁄2012, DJe 08⁄03⁄2012)
RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. CRIME CONTRA O MEIO AMBIENTE (ARTIGO 34, PARÁGRAFO ÚNICO, INCISO II, DA LEI 9.605⁄1998). INÉPCIA DA DENÚNCIA. NORMA PENAL EM BRANCO. MENÇÃO À RESOLUÇÃO QUE NÃO GUARDA CORRESPONDÊNCIA COM O CASO CONCRETO. AMPLA DEFESAPREJUDICADA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. RECURSO PROVIDO.
1. O devido processo legal constitucionalmente garantido deve ser iniciado com a formulação de uma acusação que permita ao acusado o exercício do seu direito de defesa, para que eventual cerceamento não macule a prestação jurisdicional reclamada.
2. No caso dos autos, da leitura da exordial em tela, constata-se que os recorrentes foram denunciados pelo crime previsto no artigo 34, parágrafo único, inciso II, a qual, por se tratar de norma penal em branco, deve ser complementada pela legislação que fornece os parâmetros para a pesca autorizada.
3. Ao denunciar os recorrentes, o órgão ministerial afirmou que os pescados com eles encontrados extrapolariam os limites referidos no parágrafo único do artigo 2º da Resolução SEMAC 22⁄2010, que se refere a período de pesca posterior à data em que os fatos narrados na vestibular teriam ocorrido.
4. Verifica-se, assim, que a norma legal utilizada para complementar o artigo 34, parágrafo único, inciso II, da Lei 9.605⁄1998 não guarda correspondência com o caso concreto, o que revela a inaptidão da exordial formulada pelo Ministério Público para a deflagração de uma ação penal condizente com as garantias constitucionais.
Precedente.
5. Recurso provido para declarar a inépcia da denúncia ofertada contra os recorrentes nos autos da Ação Penal n. 0002397-67.2011.8.12.0024.
(RHC 40.133⁄MS, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 18⁄02⁄2014, DJe 26⁄02⁄2014)
Desta feita, tendo em vista a inépcia da denúncia por ausência de indicação da norma complementadora, deve ser trancada a ação penal, restando prejudicado o pleitocautelar de suspensão da ação penal.
Ante o exposto, voto por não conhecer do habeas corpus, mas, de ofício, conceder a ordem, a fim de trancar a ação penal por inépcia da denúncia.