Por Nelson Tonon e Pedro Henrique Reschke *
Foi publicada, nesta segunda-feira (10/05/2021), a decisão do Superior Tribunal de Justiça sobre o tamanho da área que deve ser preservada às margens de cursos d’água em área urbana consolidada (1). Essa controvérsia chegou ao STJ porque há duas leis contraditórias sobre a matéria. Segundo a Lei de Parcelamento de Solo Urbano, de 1979, a distância é de 15 metros; para o Código Florestal, de 2012, essa distância varia de 30 a 500 metros, dependendo da largura do curso d’água.
O STJ decidiu pela prevalência do Código Florestal de 2012, fixando tese jurídica nestes termos:
Tema 1010/STJ: Na vigência do novo Código Florestal (Lei n. 12.651/2012), a extensão não edificável nas Áreas de Preservação Permanente de qualquer curso d’água, perene ou intermitente, em trechos caracterizados como área urbana consolidada, deve respeitar o que disciplinado pelo seu art. 4º, caput, inciso I, alíneas a, b, c, d e e, a fim de assegurar a mais ampla garantia ambiental a esses espaços territoriais especialmente protegidos e, por conseguinte, à coletividade.
A sessão de julgamento ocorreu em 28/04/2021, mas agora, com a publicação da decisão, é possível entender mais detalhadamente quais foram os fundamentos adotados pelo STJ.
A Corte superou o conflito normativo pelo critério da especialidade, entendendo que o Código Florestal é mais específico do que a Lei de Parcelamento do Solo Urbano e, por isso, prevalece. Esse argumento técnico acabou se misturando com argumentos de ordem constitucional, pois o STJ entendeu que o Código Florestal, por trazer metragem protetiva maior, representa a norma que melhor tutela o meio ambiente (em termos constitucionais, melhor garante o direito de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado constante no art. 225 da CRFB/1988).
Além disso, a decisão não trouxe nenhuma regra sobre modulação dos efeitos (possibilidade de estabelecer data futura ao julgamento para que os efeitos do decidido comecem a valer na prática). Então, a decisão pode inclusive atingir fatos pretéritos e já consolidados.
Tendo em vista este cenário, entendemos que, com todo o respeito, faltou sensibilidade dos julgadores da Corte em relação ao que se entende propriamente por “meio ambiente” e aos efeitos práticos (também ao “meio ambiente”) que poderão ser causados pela decisão.
No direito ambiental brasileiro (2), a conceituação de “meio ambiente” não se limita ao seu aspecto natural (meio ambiente natural, traduzido em efetiva natureza), mas compõe também seus aspectos construídos/artificiais, erigidos pelo ser humano ao longo do tempo (meio ambiente artificial, construído).
Dessa maneira, entende-se que uma decisão judicial bem ajustada em matéria ambiental é aquela que bem concatena todas as facetas afetas ao “meio ambiente” e, assim, de fato compatiliza o desenvolvimento econômico-social com a preservação da qualidade do meio ambiente e do equilíbrio ecológico (literalidade do primeiro dos objetivos da Lei da Política Nacional do Meio ambiente – Lei n. 6.938/1981, art. 4º, I).
A decisão do STJ merece reparos basicamente por não zelar satisfatoriamente pelo exposto acima.
Levando ao pé da letra o Código Florestal, como quer o STJ, cidades como Manaus estariam integralmente em área de APP, por estarem às margens de rios de grandes dimensões, que exigiriam a preservação de faixa de 500 metros.
Ao se contrastar uma realidade local como essa (que é reproduzida também em vários municípios de norte a sul do país) com o decidido pelo STJ – tanto ao firmar entendimento que o Código Florestal seria, no entender dos julgadores, o mais adequado ao meio ambiente, quanto em não estipular qualquer modulação dos efeitos do decidido – entende-se, respeitosamente, que a decisão poderia ter composto todos os direitos e matérias envolvidas de maneira mais adequada.
De todo o modo, o STJ invariavelmente já tomou sua decisão quanto ao assunto e, agora, basta debruçar-se ao seu conteúdo e guiar os trabalhos (tanto jurídicos quanto empresariais, construtivos) levando em conta o disposto no acórdão. Nesta linha, vale destacar que ao menos a tese foi editada levando em consideração apenas casos “na vigência do novo Código Florestal (Lei n. 12.651/2012)”, abrindo espaço para que em situações ocorridas antes da vigência do atual Código Florestal ainda se possa discutir, administrativa e/ou judicialmente, pela prevalência das regras da Lei do Parcelamento do Solo Urbano (afastamento de 15 metros).
Enfim, fazendo-se referência à célebre frase atribuída ao economista e ex-ministro da Fazenda Pedro Malan, parece que, no Brasil, realmente até o passado é incerto. Mesmo assim, a todos os juristas e empreendedores é preciso de extrema atenção e diligência ao decidido pelo STJ, tanto para empreender novos projetos às margens de curso d´agua quanto para tentar regularizar empreendimentos já existentes nesses espaços.
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Nelson Tonon é advogado do escritório Saes Advogados. Especialista em DireitoProcessual Civil pelo CESUSC.3
Pedro Henrique Reschke é advogado do escritório Saes Advogados. Mestre em Direito Processual Civil pela UFSC. Doutorando em Direito Processual Civil pela USP.
Notas
1 – O conceito de área urbana consolidada encontra-se atualmente no art. 16-C, § 2º, da Lei n. 9.636/1998 (conforme alteração efetuada pela Lei n. 13.465/2017, que dispõe sobre a regularização fundiária rural e urbana). Neste sentido, considera-se área urbana consolidada aquela: I – incluída no perímetro urbano ou em zona urbana pelo plano diretor ou por lei municipal específica; II – com sistema viário implantado e vias de circulação pavimentadas; III – organizada em quadras e lotes predominantemente edificados; IV – de uso predominantemente urbano, caracterizado pela existência de edificações residenciais, comerciais, industriais, institucionais, mistas ou voltadas à prestação de serviços; e V – com a presença de, no mínimo, três dos seguintes equipamentos de infraestrutura urbana implantados: a) drenagem de águas pluviais; b) esgotamento sanitário; c) abastecimento de água potável; d) distribuição de energia elétrica; e e) limpeza urbana, coleta e manejo de resíduos sólidos.
2 – De acordo com a própria legislação ambiental brasileira (Lei n. 6.938/1981, a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, art. 3º, I) associada à melhor doutrina, há quatro facetas do “meio ambiente”: “a) meio ambiente natural: ou também chamado de físico, constituído pelo solo, água, ar, flora, fauna. b) meio ambiente cultural (art. 215 e 216 da CRFB/1988): integrado pelo patrimônio histórico, artístico, arqueológico, paisagístico e turístico. c) meio ambiente artificial (arts. 182 e 183 da CRFB/1988): consubstanciado no conjunto de edificações (espaço urbano) e equipamentos públicos (ruas, praças, áreas verdes etc.) d) meio ambiente do trabalho (arts. 7º, XXII e 200, VIII da CRFB/1988): integra a proteção do homem em seu local de trabalho, com observância às normas de segurança. Abrange saúde, prevenção de acidentes, dignidade da pessoa humana, salubridade e condições de exercício saudável do trabalho”. (THOMÉ, Romeu. Manual de direito ambiental. 9. ed. Salvador: JusPODIVM, 2019, p. 197-198).
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Assista a Sessão de Julgamento do STJ (a partir dos 30 minutos).