EcoD
Ele já devolveu um carro que ganhou de presente de uma doutoranda, que achava que ele não andava de automóvel por falta de dinheiro. Ele também já foi atropelado ao andar de bicicleta, no Jardim Europa, em São Paulo, quando uma mulher quis aproveitar o farol fechado para entrar na contramão. Ah! E uma professora certa feita lhe falou: “por favor, não venha mais assim, isso pega mal, você não pode, olha o seu prestígio…”
Mas nada disso abalou a militância do médico patologista Paulo Saldiva, professor de patologia pulmonar na Faculdade de Medicina da USP e coordenador do Laboratório de Poluição Atmosférica da universidade. Em entrevista ao EcoD, ele defende a sustentabilidade no transporte, observa que a poluição deixa de ser tratada como problema de saúde pública e critica o que chama de “racismo ambiental”.
Em novembro de 2012, Saldiva, que é um dos cientistas brasileiros mais respeitados na Organização Mundial da Saúde (OMS), será um dos 16 palestrantes do TEDx FMUSP – Cidades Saudáveis. Três anos atrás, ele já havia ministrado palestra de destaque no TEDx São Paulo, cujo vídeo está disponível na EcoD TV.
EcoD – Por que a poluição atmosférica não é tratada como problema de saúde pública aqui no Brasil?
Paulo Saldiva – A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OECD) fez uma projeção sobre alguns problemas que afetam o mundo atualmente em relação as próximas décadas. Ela diz que os casos de malária e diarreia, por exemplo, vão cair, mas os índices de poluição irão subir. E em quais lugares do mundo o problema será maior? Na África, no Oriente Médio, na Ásia e na América Latina. Como o material particulado é proveniente da queima inadequada de combustível (você vê isso quando o bico do gás está desregulado e as partículas ficam no fundo da panela), nós podemos observar que as tecnologias menos desenvolvidas estão justamente nessas regiões. Os países ricos conseguem controlar a poluição.
Mas eu me recordo de uma entrevista que o senhor concedeu a Rádio CBN, na qual apontava que o Brasil era o quarto maior emissor mundial de ozônio (proveniente do diesel), atrás apenas da República do Congo, Angola e Bolívia. Economicamente, o Brasil supera de longe esses países. Não falta então vontade política?
Eu diria que falta coragem política, porque existem soluções e as pessoas sabem o que tem que ser feito. Quando você ouve algo como restrição a veículos, esbarrarmos em pontos como falta de apoio para seus partidos, suas campanhas, ou seja, falta de votos nas cidades onde a opinião pública é voltada para a cultura dos carros. No Brasil, nós produzimos veículos híbridos (ônibus, inclusive), elétricos, inventamos o BRT, fazemos trem, metrô, diesel mais limpo, matriz energética relativamente limpa – podemos fazer o que quisermos.
EcoD – E o que não temos?
PS – Coragem política de fazer o certo, mesmo que esse “certo” não seja popular – pelo menos no primeiro momento. Hoje o transporte coletivo é ineficiente e não é estimulante. Um ônibus, em uma velocidade de 10 km/h, como vemos andar em São Paulo, vai motivar a quem usá-lo? Os carros também trazem consigo uma mensagem de poder e status que antes era associada ao cigarro. Não tenho nada contra o carro. A questão é a falta de mobilidade para ele.
EcoD – O senhor já se deslocava para à USP de bicicleta, em 1972…
PS – Sim, mas tenho carro. Ele fica na garagem. Costumo usá-lo para viajar. Vou para o trabalho até hoje de bicicleta. Hoje eu vim de ônibus, porque está chovendo. Meus filhos usam o transporte coletivo. Minha esposa vai para o trabalho à pé. Berlim tem mais carros por habitante do que São Paulo, mas ninguém lá usa o automóvel para fazer tudo, em todos os lugares, todos os dias. Em 2011, fui atropelado pela primeira vez, em 40 anos que uso a bicicleta. Uma mulher quis aproveitar o farol fechado para entrar na contramão e me pegou. Uma vez uma de minhas doutorandas me deu um carro. Para ela, o único motivo pelo qual eu não ia para a faculdade de carro era falta de dinheiro (risos). Devolvi o presente.
EcoD – Concorda que as leis são muito frouxas no que diz respeito a eficiência do transporte?
PS – Somente agora, com essa nova lei de regulação automotiva, haverá isenção de imposto para quem tiver motor mais eficiente. Porque até a última redução de IPI [Imposto sobre Produtos Industrializados] não havia qualquer discriminação sobre quem fazia o certo e quem não fazia. Faltava um prêmio para quem fosse além do que estabelece a lei, que no Brasil tem um histórico permissivo.
Nós temos as soluções, temos a sensação de desconforto, pois ninguém está feliz com a falta de mobilidade urbana em sua cidade, mas falta tomar a iniciativa. Botarmos na prática temas impopulares como o pedágio urbano, corredores exclusivos para ônibus nas ruas.
EcoD – O estímulo a compra de veículos de passeio e a hegemonia do petróleo também dificultam. O que o senhor pensa sobre isso?
PS – Veja que paradoxo. Para instalar uma indústria na região metropolitana de São Paulo, o empresário precisa comprar um abatimento de emissões. Por isso que o ABC tem muitos corredores de ônibus elétricos – porque é a forma mais em conta de se reduzir emissões. E para vender carros, não deveria ter certo tipo de controle? Só porque é fonte de individual não é passível de regulação? Quando você compra algum derivado de petróleo, a qualquer hora do dia, ele não varia o preço, pois é regulado e subsidiado. Com transporte elétrico, você paga a tarifa de pico às 18h, é que nem chuveiro elétrico. Com ônibus a etanol, vai haver a variação de acordo com a safra, não tem estoque regulador. Há um conflito de mercado. E a Petrobras é do governo. O governo defende esse mercado. Isso ocorre em todo o mundo, praticamente.
EcoD – Resolver o problema da poluição também soluciona o da mobilidade?
PS – Não, necessariamente. Se tivermos 100% da frota de veículos elétricos, resolvemos bastante a questão da poluição, mas não a da mobilidade. Não cabem tantos carros na cidade, que tem uma dinâmica de uso e ocupação do solo, cuja porção central é cada vez mais cara, o que faz com que as pessoas de menor posse se desloquem para a periferia. Em São Paulo, o produto passageiro x quilômetro percorrido para ir ao trabalho é o maior do mundo. A capital está extremamente povoada na porção central, onde tem os empregos, e extremamente povoada na periferia, na qual há um caos viário. Isso não vai resolvido com transporte individual.
EcoD – O senhor comparou São Paulo, recentemente, a um paciente obeso, com artérias entupidas, insuficiência renal e bronquite crônica. Diagnóstico pessimista, hein (risos)?
PS – Não. Eu sou otimista em relação a doenças, porque ninguém muda para melhor ou repensa seus hábitos se não tiver algum tipo de problema antes. Já vi gente que passou a comer menos depois que ficou obeso ou diabético, por exemplo. As doenças costumam fazer as pessoas sair da zona de conforto. Como estamos insatisfeitos, talvez estejamos criando as bases para melhorar a cidade. Eu sinto isso. Vi que existe uma explosão imobiliária nas regiões da linha do metrô e observei que as pessoas gostariam de morar ali, desde que o transporte coletivo tenha qualidade.
EcoD – Mas não há o risco de a quantidade de pessoas extrapolar os limites do meio de transporte?
PS – Sim. Este é um problema que pode acontecer. Bons corredores de ônibus, como os de Bogotá (COL) e Xangai (CHI), levam 45.000 passageiros por hora (metade da capacidade do metrô), mas você faz isso em um décimo do tempo. Poderíamos ter ônibus articulados, movidos a combustíveis mais limpos, estações modernas, com pequenos comércios, plantio de árvores nos corredores (porque ninguém gosta de estética feia). Enfim, estímulos para que as pessoas se perguntem: “Por que eu vou sair com meu carro e ficar preso no trânsito?”. Mas é preciso coragem para fazer isso e suportar a pressão inicial da opinião pública.
EcoD – Como o senhor define o que chama de “racismo ambiental”?
PS – É o que vemos no mundo hoje. Quem é forte economicamente precisa fazer com que seus negócios ampliem ainda mais. E para isso não consideram nenhum aspecto moral e ético.
Grandes economias exploram o planeta e produzem sem parar, enviando os artigos mais poluidores e de menor qualidade para as sociedades mais pobres. O ônibus velho que não pode rodar no corredor 9 de Julho desaparece no ar? Não, ele vai para a periferia ou para cidade de menor porte. Isso é segregar. É racismo ambiental. Temos que repensar o modelo em que vivemos. Ter noção dos limites.
EcoD – De volta às bikes, que são uma paixão sua, o senhor há de convir que falta espaço nas cidades para elas. Embora o Código Nacional de Trânsito assegure o direito das bicicletas transitarem nas vias, boa parte das pessoas tem a ideia de que só os carros podem…
PS – É verdade. O nosso conceito de ciclovia é para lazer de domingo… Mas isso está melhorando. Quando uma pessoa morre atropelada na periferia, não aparece na foto. Mas na Av. Paulista nós tivemos dois casos envolvendo mortes de jovens que serviram para melhorar o respeito ao ciclista. É preciso regrar a convivência entre motoristas e ciclistas, que haja respeito entre eles. Também é necessário que sejam criados espaços para as bicicletas, como fizeram em plena avenida central da Cidade do México. Sorocaba, em uma administração, construiu diversas ciclovias e ciclofaixas, fazendo com que 10% a 15% dos deslocamentos do município fossem feitos de bicicleta. Melhora a qualidade do ar para todos e a saúde dos ciclistas.
EcoD – Caetano definiu São Paulo como o “avesso, do avesso, do avesso”. Criolo vem agora é diz que “não existe amor em SP”. Qual é o seu diagnóstico para a cidade?
PS – Eu gosto muito de São Paulo. Sou patologista, não faço diagnóstico (risos). Acho que um diagnóstico constataria um tumor maligno, mas há a questão terapêutica. Tumor maligno a gente pode tratar e curar. Temos condições.
Relembre a palestra de Paulo Saldiva no TEDx São Paulo 2009:
(EcoD)