por Marcel Edvar Simões.
O assunto tratado neste artigo configura tema antigo, mas que precisa ser revisitado, além de bem compreendido por todos aqueles que tenham que lidar com o Direito Imobiliário, o Direito Registral e o Direito Ambiental[1]. Podemos iniciar como uma questão singela, um caso prático: suponha-se um imóvel de tipo chácara, situado no bairro da Vila Maria, em São Paulo, destinado à criação de gado leiteiro e/ou cultivo de frutas e legumes. Pergunta-se: esse imóvel é rural ou urbano? Na realidade, esta é apenas a pergunta básica na matéria, à qual se segue uma miríade de outros questionamentos:
(i) Esse imóvel poderá ser objeto de usucapião especial urbana? Ou poderá ser objeto de usucapião especial rural (pro labore)?
(ii) Esse imóvel pode ser objeto de locação regulada pela Lei do Inquilinato? Pode ser objeto de arrendamento rural?
(iii) Em virtude da titularidade desse imóvel, deverá ser pago ITR ou IPTU?
(iv) Esse imóvel tem que ser inscrito no Cadastro Ambiental Rural (CAR)?
(v) Esse imóvel pode ser objeto de reforma agrária?
A nosso ver, à luz do sistema jurídico brasileiro atual, as respostas às questões (i) a (v) teriam que ser: esse imóvel não pode ser objeto de usucapião especial rural (podendo ser, eventualmente, objeto de usucapião especial urbano); pode ser objeto de arrendamento mercantil (e não do contrato de locação da Lei do Inquilinato); sobre esse imóvel, a princípio, deveria incidir o IPTU mas, segundo o entendimento do STJ, sobre ele incide ITR; esse imóvel tem que se inscrever no CAR; e, finalmente, ele pode ser objeto de reforma agrária. Essas respostas podem ser todas justificadas com apoio em normas do ordenamento ou interpretações doutrinárias e jurisprudenciais mais ou menos bem delineadas; paradoxalmente, porém, a resposta à questão-base (se o imóvel é urbano ou rural), não se mostra tão singela.
Com efeito, a distinção entre imóvel rural e imóvel urbano não é adotada por todos os países. Inexistem essas figuras no Direito alemão, por exemplo. O Direito brasileiro, como é cediço, acolhe a dualidade, mas não se mostra tarefa simples distinguir os imóveis rurais dos urbanos, em razão de existir uma profusão de leis que trabalham com critérios distintos para a fixação da natureza de um imóvel.
Há dois critérios fundamentais utilizados na legislação brasileira e identificados pela doutrina para efetuar a distinção: o critério da localização e o critério da destinação.
Pelo critério da localização é rural o imóvel situado fora do perímetro urbano, cuja fixação cabe ao município. Portanto, a diferenciação se faz por exclusão: é rural o imóvel que não é urbano.
Já o critério da destinação estabelece que, qualquer que seja sua localização, será rural o imóvel que tenha finalidade econômica de exploração agrícola, pecuária, extrativa ou agroindustrial.
A legislação brasileira utiliza os dois critérios de forma oscilante.
O art. 181 (relativo à usucapião especial urbana) e, ainda mais claramente, o art. 191 da Constituição Federal (relativo à usucapião especial rural ou pro labore) utilizam o critério da localização[2], ao utilizarem expressões como “área urbana” e “área de terra em zona rural”.
Já o art. Art. 4º, I, da Lei n.º 4.504/1964 (Estatuto da Terra) se vale do critério da destinação, com uma redação que serve como base para diversos outros diplomas que se valem do mesmo critério[3].
O art. 1º, § 2º, da Lei n.º 9.393/1996, para efeitos da cobrança do ITR, também adota o critério da localização[4], embora o STJ tenha entendimento diferente, isto é, no sentido de que para o fim de tributação deve valer o critério da destinação econômica do imóvel, com base no art. 15 Decreto-Lei n.º 57/1966, o qual aquela corte considera vigente[5].
O art. 3º da Lei n.º 6.766/1976 (Lei de Parcelamento do Solo) se vale do critério da localização[6].
O art. 4º, I, da Lei n.º 8.629/1993 (que dispõe sobre a regulamentação dos dispositivos constitucionais relativos à reforma agrária) recorre ao critério da destinação[7].
A Lei n.º 8.245/1991 (Lei de Locação de Imóveis Urbanos) utiliza o critério da destinação para fins de delimitação dos bens objetos dos contratos de locação que regula (atinentes à locação de imóveis urbanos para fins residenciais ou comerciais), o que se denota em virtude de interpretação doutrinária majoritária (baseada em interpretação sistemática com o Estatuto da terra e com o instituto do arrendamento rural).
Por fim, a Instrução Normativa MMA n.º 2, de 05 de maio de 2014 (que define os procedimentos gerais do Cadastro Ambiental Rural – CAR) se baseia no critério da destinação – trazendo a conclusão de que, para fins de inscrição no CAR, imóvel rural é aquele destinado à atividade rural[8].
Mas e no que tange à chamada questão básica: afinal, quando um imóvel poderá ser chamado, em termos gerais, de urbano ou rural no Brasil? É possível apresentar nesse passo algumas conclusões.
É bem verdade que o critério mais aceito entre os civilistas para a distinção entre imóveis rurais e urbanos é o da destinação, vale dizer, são imóveis rurais os que se destinam a fins agrícolas (lavoura) ou pecuários, quer se encontrem dentro ou fora dos limites urbanos, como, por exemplo, as chácaras de culturas agrícolas (como aquela apresentada no exemplo concreto no início deste artigo) – cf. art. 4º da Lei n. 4.504/1964; são urbanos os reservados à moradia, ao comércio, à indústria. A localização, dentro ou fora do perímetro urbano, é apenas um primeiro elemento, um indício, de que o imóvel é ou não urbano.
Contudo, diante da variedade de normas acima apresentada, pareceria que essa afirmação categórica sobre um imóvel – se ele é, como categoria geral, urbano ou rural – se tornaria impossível, ou mesmo irrelevante. A identificação de um determinado imóvel como rural ou urbano dependeria do exame, no caso concreto, da norma legal incidente para aquele caso, para aquele problema específico que esteja em consideração – variando o critério adotado e a resposta do sistema quer se trate, por exemplo, de uma questão sobre usucapião ou sobre inscrição do imóvel no CAR. A classificação seria, assim, meramente casuística, variando de acordo com o quadrante do sistema em que nos encontremos.
Contudo, entendemos que, embora seja verdade que cada situação fática aqui mencionada apresenta sua própria hipótese normativa disciplinadora, a categorização conceitual de um imóvel como urbano ou rural pode sim ser feita no sistema jurídico brasileiro em termos genéricos, gerais, não ficando, assim, colocada de forma aberta – a despeito de a discussão não ser, propriamente, ontológica[9]. Destarte, a partir de uma perspectiva mais apurada, pode-se notar que, na verdade, há duas dicotomias subjacentes ao que parecia ser apenas uma: há a dicotomia imóvel rural vs. imóvel urbano (baseada no critério da destinação, e que norteia a resposta às questões ii, iii, iv e v supra), e há a dicotomia imóvel situado em zona urbana vs. imóvel situado em zona rural[10] (fundamentada no critério da localização, e que norteia, por exemplo, a resposta à questão i, bem como o tema do parcelamento do solo). Essa parece ser a categorização mais adequada e que consegue, ao final, acomodar razoavelmente as diversas normas jurídicas e hipóteses pertinentes à matéria.
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Notas:
[1] Merece destaque a abordagem do tema feita por Eduardo Sócrates Castanheira Sarmento Filho (Direito Registral Imobiliário. Curitiba: Juruá, 2017, vv. 1 e 2).
[2] Cf., nesse sentido José Carlos de Moraes Salles, Usucapião de bens imóveis e móveis. 7. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 28.
[3] “Art. 4º Para os efeitos desta Lei, definem-se:
I – ‘Imóvel Rural’, o prédio rústico, de área contínua qualquer que seja a sua localização que se destina à exploração extrativa agrícola, pecuária ou agro-industrial, quer através de planos públicos de valorização, quer através de iniciativa privada”.
[4] “Art. 1º O Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural – ITR, de apuração anual, tem como fato gerador a propriedade, o domínio útil ou a posse de imóvel por natureza, localizado fora da zona urbana do município, em 1º de janeiro de cada ano.
(…)
§ 2º Para os efeitos desta Lei, considera-se imóvel rural a área contínua, formada de uma ou mais parcelas de terras, localizada na zona rural do município.”
Apesar da clareza do dispositivo, o STJ tem considerado vigente o Decreto-Lei n.º 57/1966, cujo art. 15 privilegia o critério da destinação.
[5] “Art 15. O disposto no art. 32 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966, não abrange o imóvel de que, comprovadamente, seja utilizado em exploração extrativa vegetal, agrícola, pecuária ou agro-industrial, incidindo assim, sôbre o mesmo, o ITR e demais tributos com o mesmo cobrados.” (Revogação suspensa pela RSF nº 9, de 2005).
[6] “Art. 3º Somente será admitido o parcelamento do solo para fins urbanos em zonas urbanas, de expansão urbana ou de urbanização específica, assim definidas pelo plano diretor ou aprovadas por lei municipal.” Assim, cumpre ressaltar que, para efeitos de ordenação do solo, a competência para dizer se a terra está em zona urbana ou rural é do Município, conforme explicitado neste artigo, na Constituição Federal, no Decreto 271, e na Lei n. 7.803/1989.
[7] “Art. 4º Para os efeitos desta lei, conceituam-se:
I- Imóvel Rural – o prédio rústico de área contínua, qualquer que seja a sua localização, que se destine ou possa se destinar à exploração agrícola, pecuária, extrativa vegetal, florestal ou agro-industrial” (sem itálico no original).
[8] “Art. 2º Para os efeitos desta Instrução Normativa, entende-se por:
I – imóvel rural: o prédio rústico de área contínua, qualquer que seja sua localização, que se destine ou possa se destinar à exploração agrícola, pecuária, extrativa vegetal, florestal ou agroindustrial, conforme disposto no inciso I do art. 4º da Lei nº 8.629, de 25 de fevereiro de 1993, podendo ser caracterizado como:
a) pequena propriedade ou posse: com área de até 4 (quatro) módulos fiscais, incluindo aquelas descritas nos termos do inciso V do art. 3º da Lei nº 651, de 2012;
b) média propriedade ou posse: com área superior a 4 (quatro) até 15 (quinze) módulos fiscais;
c) grande propriedade ou posse: com área superior a 15 (quinze) módulos fiscais” (sem itálico no original).
[9] Em outras palavras: não se está propondo que seja absolutamente indispensável existir uma distinção geral no sistema entre imóvel urbano e imóvel rural, como duas categorias gerais contrapostas, como se isso fosse um dado ontológico, da natureza das coisas. As categorias “imóvel rural” e “imóvel urbano” são normativas, a partir do pensamento não tendo existência no mundo do ser.
[10] Trata-se, caso se prefira, de uma tricotomia: imóvel situado em zona urbana vs. imóvel situado em zona de expansão urbana vs. imóvel situado em zona rural.
Leia também:
– Imóvel agrário, mesmo localizado em área urbana, é devedor de ITR e não de IPTU
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