Cúpula estende Kyoto até 2020.
As negociações climáticas terminaram um capítulo em Doha, no Qatar, e têm à frente um desafio muito maior: chegar a um acordo global em 2015 que resolva o problema a partir de 2020. No sábado à noite, quando se encerrou a COP18, isso parecia difícil e distante. Não há dinheiro, não há vontade política e não há liderança.
"Será duro", confidenciou a comissária do Clima europeia, Connie Hedegaard, a Kumi Naidoo, diretor-executivo do Greenpeace nos últimos minutos do encontro em Doha. À imprensa, instantes depois, ela disse que "agora vamos ter que construir o futuro regime. Temos que ver como podemos deixar o que é velho para trás".
A negociação climática chegou a uma fase crítica. O Protocolo de Kyoto entrou em seu segundo período de compromisso. Isso garante um arcabouço legal para o futuro e estimados 18% de redução nas emissões de gases-estufa em 2020 em relação aos níveis de 1990. Estudos científicos dizem que é preciso chegar a algo entre 25% e 40% nas próximas décadas, mas esses números não estão sobre a mesa. O financiamento a uma economia de baixo carbono é o tema-chave da transição e não avança.
Em Doha os negociadores conseguiram apenas prolongar a atuação de um plano de trabalho para discutir o assunto. Dinheiro de curto prazo para que países mais pobres e vulneráveis possam se adaptar aos impactos da mudança do clima não foi acertado como um compromisso dos países ricos. Não há um caminho claro para que se chegue aos US$ 100 bilhões ao ano para enfrentar o problema a partir de 2020, como promessa feita pelos governos na conferência de Copenhague, em 2009. Ao ser negociado a partir do ano que vem, o novo acordo, que pretende finalmente reunir todas os países na mesma moldura, terá que resolver as pendências que estão aqui: quem paga a conta, quem corta mais, quem faz os maiores esforços, como se ajudam os mais pobres, como transferir tecnologias limpas, como financiar tudo isso.
Os representantes dos governos, em Doha, começaram a falar com mais frequência sobre a necessidade de se ter mais recursos privados para as questões do clima. "Todos sabem que os governos não vão conseguir solucionar esse desafio sem recursos do setor privado", disse o embaixador André Corrêa do Lago, chefe dos negociadores brasileiros em Doha.
"Não vamos conseguir resolver o problema da mudança do clima sem grandes quantidades de dinheiro tanto em mitigação dos gases-estufa como em adaptação", diz Jennifer Morgan, diretora do programa de clima e energia do World Resources Institute, um think tank de pesquisa nesse campo com base em Washington. É preciso direcionar a economia para uma produção mais limpa e menos emissora, com mais fontes de energia renovável e menos dependente dos combustíveis fósseis. "Isso tem que acontecer em todos os lugares", diz ela.
"Se quisermos ficar nos 2ºC de aquecimento da temperatura temos que ter dinheiro público e dinheiro privado", diz Samantha Smith, a coordenadora da iniciativa de clima e energia do WWF. São os governos, diz ela, que têm que providenciar recursos para que seja possível se adaptar aos impactos do clima fazendo obras caras de infraestrutura. "E também é preciso dinheiro público para estimular que a economia se volte a atividades e fontes de baixo carbono."
A busca por novas fontes de recursos para financiar a transição à economia de baixo carbono vem sendo feita nos últimos anos. Há iniciativas para criar uma taxa de carbono e também para taxar as emissões aéreas e marítimas, mas há forte oposição dos governos em tomar tais medidas. "Esse processo não vai a lugar nenhum sem a liderança dos chefes de governo", diz Martin Kaiser, especialista em clima do Greenpeace. "Se essas conferências continuarem como "business as usual", ou seja, com tudo como sempre foi, irão acabar com a sua reputação."
Carlos Rittl, coordenador do programa de mudança do clima do WWF-Brasil diz que há "um abismo moral" entre o que dizem os cientistas e o que vem sendo negociado nas conferências do clima. "Esse é um processo multilateral que é falho, mas o relógio está girando e é preciso que os governos liderem e assumam esse problema", diz ele. "Continuamos com compromissos vagos, metas sem ambição e sem dinheiro."
"Temos que ter lideranças nacionais fortes que implementem políticas públicas e vejam que a mudança do clima é um grande risco para todos nós", diz Jennifer Morgan, do WRI. "Os chefes de Estado deveriam dizer que esse é o desafio da nossa geração e enfrentar o problema."
Texto final da conferência foi aprovado sem consentimento da delegação russa
Contrariando o princípio de que conferências multilaterais sob o chapéu da ONU têm de tomar decisões com base em consenso, a COP 18, em Doha, foi concluída com discordância da Rússia. O país não queria o texto do Protocolo de Kyoto com restrições ao uso do "ar quente" (créditos excedentes de redução de emissões) no segundo período de compromisso e estava seriamente bloqueando as negociações.
Depois de várias consultas às delegações, reuniões de grupo e bilaterais terem concluído que a versão proposta ontem pela manhã poderia ser aprovada, e no momento em que o presidente da COP, Abdullah Bin Hamad Al-Attiyah, estava para abrir a plenária, a Rússia disse que era contra. O processo ficou paralisado por horas e parecia que poderia colapsar. De repente Al-Attiyah, num estilo fanfarrão, reconvocou a plenária e começou a adotar, um a um, os textos propostos.
"Fomos bem sucedidos em transformar dois dias em um. Ouvi todos os grupos, até limpei meu ouvido para ouvir bem", brincou arrancando gargalhadas da cansada plenária. Depois ele explicou em coletiva de imprensa que captou o "sentimento da plenária" e concluiu que havia um acordo geral sobre os documentos. Em resumo, o desejo de um único país não poderia comprometer o consenso dos demais.
Oleg Shamanov, chefe dos negociadores russos, esbravejou e tentou ainda na plenária inverter a situação, mas só ouviu do presidente que seu protesto seria incorporado ao documento. "É lamentável, decepcionante, a atitude do presidente em ignorar o que dissemos", disse depois à imprensa. A Rússia tem o maior volume de "ar quente" entre os países que participaram do Protocolo de Kyoto: cerca de 7 bilhões de toneladas de carbono, o equivalente às emissões de um ano dos Estados Unidos.
Para praticamente todos os demais países, seu uso para abater emissões ou vender como crédito para quem precisa reduzir emissões seria ameaçar a integridade ambiental de Kyoto. Tanto que houve na plenária um compromisso formal de União Europeia, Japão, Liechtenstein, Mônaco, Noruega e Suíça de não comprarem nenhum "ar quente". A venda foi autorizada, mas num volume limitado.
Fonte: Agências de Notícias