Sarah Bueno Motter e Giovani de Oliveira, da EcoAgência
As margens são um limite. Até onde o Dilúvio vai, até onde ele pode ir. Balizado pelo concreto humano, o arroio que corta a capital faz parte da rotina da cidade. Em suas margens, estão os congestionamentos e a ansiedade de Porto Alegre. Nas suas beiradas, está, na hora do rush, o stress de querer chegar rápido ao outro lado da cidade e não conseguir a velocidade pretendida. A poluição que corre dentro do Dilúvio também passa nos seus limiares, os quais são contaminados pela exaustão da sociedade perante sua rotina.
As margens do Dilúvio transbordam o vazio de nossa civilização que corre apressada sem nem saber o motivo. Que deixa à sua margem aqueles que não têm o capital e as oportunidades iguais, aqueles que não têm o carro, aqueles que não têm a casa. Esses ficam às margens.
As bordas também refletem as novas tendências. O desejo da ciclovia, do transporte limpo. Elas falam de um novo caminho que a cidade “quer” abrir. Um caminho para o sustentável.
Mas a sustentabilidade não caminha junto da miséria e da desigualdade e ela não é parceira do descaso. A sustentabilidade não está nas aparências. Ela não é balizada por frágeis mudanças sem conteúdo maciço, sem a pretensão de uma metamorfose. Ela não parte do nada e não chega a lugar nenhum. Ela não se inaugura com uma quadra de ciclovia, ela é uma estrada inteira.
A água, quando cai no Dilúvio, faz o barulho característico dos riachos, aquele som que muitas vezes queremos levar para casa, comprando uma fonte de decoração. O barulho é tão bonito e característico, mas o concreto afasta a cidade da natureza, que suja de nossos resíduos, continua seu caminho. As margens do Dilúvio são uma síntese do que somos. Os carros, os excluídos, a sujeira, os “novos caminhos” e a natureza que teima e vive entre o cinza da ambição humana.
O Dilúvio é o símbolo de uma sociedade precária, individualista e agressiva. Como muitas das crianças que moram embaixo de suas pontes, suas águas são agredidas desde o começo de sua vida. Já em sua nascente, na Lomba do Sabão, o arroio é violentado pela ocupação irregular da área. Famílias, sem condições de moradia, ocupam um local protegido por lei, e jogam seus dejetos nas águas do Dilúvio. Pessoas violentadas pela sociedade do ter, sem espaço para tentar ser, violentam também o arroio e invadem seu espaço.
Espaço que cada vez existe menos. Espaço cada vez mais ocupado pelo lixo, espaço que nós não temos mais. O espaço que poderia ser de lazer, de contato com a natureza em meio à cidade, torna-se um espaço do qual fugimos. Não a toa, algumas pessoas defendem que se cubra o Dilúvio. Defendem uma grande tampa de concreto, que não cure a ferida, mas nos impeça de ver ou sentir.
Mas incrivelmente, violentado do começo ao fim, o Dilúvio segue vivo, suas águas são a moradia de peixes, pescados por improváveis gaivotas porto-alegrenses. E suas margens, costeadas pelo cinza, ainda conservam um verde, que insiste em se manter vivo.
(EcoAgência)