por Franco Cristiano da Silva Oliveira Alves.
A sociedade contemporânea, arrimada em tecnologias de comunicação de amplo alcance quanto ao seu conteúdo e velocidade, tem coletado, processado dados e produzido informações a uma ordem exponencial sem precedentes na história humana. Estima-se que mais de 90% dos dados produzidos pela humanidade tenham origem somente nos últimos dois anos, conforme afirmam estudos realizados pela Allianz Global Investors[1].
Os números deverão continuar em crescimento quase desmesurado pela próxima década, em função de novas tecnologias fundamentadas em sensoriamento, como veículos autônomos, robôs domésticos, assistentes inteligentes e dispositivos wearables que vão, por exemplo, detectar inúmeros dados sobre as condições biofísicas de seus usuários, sobremodo, para uso de diagnósticos médicos preditivos. Em 2020, espera-se, que o número deverá alcançar a marca de 40 trilhões de Gibabytes em dados gerados[2]; um volume de dados nunca visto na história humana.
É fato que a disponibilização de dados em alta volumetria, velocidade e variedade, culminou com a fadiga dos processos decisórios, considerando que todo processo decisório é baseado em dados, ainda que eventualmente realizado de forma aleatória. A sociedade e mais especificamente as organizações públicas ou privadas passaram a experimentar cotidianamente sintomas de infotoxication, isto é, sintomas de infotoxicação, de overdose informacional, cujos efeitos reativos são justamente a desinformação e a tomada de decisões baseadas em parâmetros falsos, ilusórios, enviesados.
Como forma de cura a infotoxicação, se passou a exigir a migração de modelos aleatórios ou meramente estruturados de decidir com fundamento em dados de baixa consistência, para modelos sistematizados e analíticos, dando vazão a conceitos como Big Data e Data Science. Espera-se, a partir desse novo paradigma, que a sociedade de um modo geral e as organizações, deixem de tomar decisões aleatórias ou quando muito estruturadas em procedimentos lineares e lentos, para alcançar uma cultura analítica de dados que envolvam pessoas, alta tecnologia e cultura de análise de dados em rede, visando alcançar um direcionamento decisório fundamentado na análise de dados em tempo real, em modelagem neural, através de processos abertos e cooperativos na troca de dados, criando a cultura do que se tem chamado Data Driven, isto é, uma cultura organizacional em que os centros decisórios são dirigidos por analise sistematizada de dados.
O desenvolvimento de uma cultura organizacional baseada em dados, portanto, emerge como a oportunidade de que decisões sejam tomadas de forma mais célere, democráticas, consistentes e responsáveis nos mais diversos campos da atuação humana. Há, potencialmente, a substituição, ainda que parcial, dos vieses cognitivos inerentes a cada indivíduo ou grupo (opinião pessoal), geralmente baseados em suas limitações neurocognitivas, como crenças e outros modelos mentais, por modelos sistematizados, padronizados, abertos, clusterizados, capazes de favorecer a tomada de decisões límpidas, mais éticas, precisas e eficientes.
E neste ponto, não se desconhece que à margem do uso de tecnologias sustentadas em Inteligência Artificial, como machine learning e deep learning, os modelos decisórios analíticos estão amplamente aptos a favorecer o conceito de Inteligência Aumentada, isto é, de ampliação da inteligência humana com inspiração em um modelo mais realístico, mais transparente, como dito, honesto e de boas tecnologias; o que é capaz de melhorar significativamente o potencial neurocognitivo dos indivíduos.
Diagnosticar e decidir melhor, com base em análise de dados pode propiciar que indivíduos sejam capazes de ver o mundo como ele é de fato, e não como é imaginado segundo os mais diversos interesses pessoais, quando não, midiáticos. Assim, ao lado da Inteligência Artificial caminhará de forma expansiva a nominada Inteligência Aumentada, sobremodo, fazendo uso dos mais avançados conhecimentos em neurociência comportamental.
Na mesma linha de raciocínio, o desenvolvimento de uma cultura analítica de dados, pode favorecer significativamente o conceito de sustentabilidade, enquanto pilar de desenvolvimento socioeconômico para a próxima década. O uso deste novo paradigma pode viabilizar a produção de informações baseadas em dados obtidos em tempo real sobre o meio ambiente, sobre o bem-estar das pessoas, sobre o desenvolvimento de atividades potencialmente poluidoras e direcionar decisões interventivas rápidas, precisas, proporcionais, baseadas em evidências, em contrapartida ao modelo atual, não analítico, que quando muito, produz decisões generalistas, obscuras, ineficientes e personalíssimas.
Um ato de fiscalização, não se baseará na perspectiva enviesada do analista ambiental, mas no conjunto de dados geofísicos e operacionais da atividade sob fiscalização, que serão obtidos e processados por meio de sistemas padronizados capazes de considerar inúmeras variáveis, que certamente seriam desprezadas ou potencialmente distorcidas pelo agente de fiscalização.
A própria Agenda 2030 da ONU, pode experimentar elevado nível de maximização de resultados em relação as suas ODS’s, em função da propagação e adoção de uma cultura analítica de dados, como suporte a modelos decisórios mais responsáveis.
Veja-se, a título ilustrativo, que para acabar com a fome, a própria agenda 2030, propõe dobrar a produtividade agrícola, o que somente será possível pela adoção de processos decisórios baseado na análise de dados, visando a implementação de práticas agrícolas resilientes, que aumentem a produtividade, sem perder de vista as mudanças climáticas, as condições meteorológicas extremas, secas, inundações e outros desastres, sobremodo, por meio da melhora de processos decisórios quanto ao uso solo.
O cumprimento desta específica ODS, portanto, revela a necessidade de adoção de processos decisórios arrimados em dados consistentes e dinâmicos, que permitam ao produtor agrícola, por exemplo, atuar minuciosamente no tratamento das diversas variáveis potencialmente capazes de interferir na produtividade de seu plantio. Um modelo decisório baseado na cultura analítica de dados permite, intervenções cirúrgicas e, consequentemente, melhor aproveitamento dos diversos recursos envolvidos no meio produtivo, a exemplo do momento adequado de se promover a colheita de grãos em cada setor de uma propriedade.
A mesma agenda pleiteia um modelo de urbanização inclusivo e sustentável, o que somente será possível pela adoção de modelos de planejamento e gestão integrados e participativos, que levem em consideração as mais diversas variáveis do ambiente urbano, para que políticas públicas sejam desenvolvidas de forma eficiente e, sobremodo, de forma transparente em favor do bem estar das pessoas.
Veja-se que os mais diversos indicadores das ODS’s são, de fato, valores de alta complexidade, que somente podem ser alcançados através de uma camada densa e sistematizada de análise de dados. A título de novo exemplo sabe-se que o indicador 9.1.1[3] mede a proporção da população rural em um país que pode acessar convenientemente a rede de estradas em todas as estações do ano. Embora existam dados para medir esse indicador na Grã-Bretanha, a mesma métrica é difícil de ser obtida na maioria dos países pobres. O trabalho com repositórios de dados geográficos extraídos do Open Street Map, do Global Roads Inventory Project e da Global Human Settlement Layer, por outro lado, tem permitido a expansão deste modelo de análise de dados por diversos outros países, inclusive, com maior déficit tecnológico[4].
A implementação de uma cultura organização baseada em dados, pode propiciar o desenvolvimento de produtos mais sustentáveis, a rastreabilidade de resíduos para fins de aplicação de logística reversa, dentre outras inúmeras possibilidades.
A título ilustrativo, os inúmeros estudos atualmente arquivados, apartados, em repouso nos mais diversos órgãos ambientais, poderiam compor um Data Lake[5], isto sé, um repositório de dados abertos publicamente, propiciando a construção de relatórios diversos, por diversas entidades, em tempo real, substituindo o modelo atual de monitoramento de condicionantes ambientais, atualmente estáticos e de baixa eficiência, por um modelo dinâmico, que possibilite intervenções em tempo real.
Um empreendimento sob instalação poderia, rapidamente, ter acesso ao conjunto de informações ambientais alojadas no Data Lake, o que dispensaria a realização de estudos redundantes, mas, quando muito, a complementação dos estudos já depositados no repositório.
Veja-se que o modelo atual de gestão de impactos ambientais, assim como os modelos de gestão de riscos, são baseados na coleta antecedente de dados, segundo a visão e o viés cognitivo de especialistas, de forma cíclica, lenta, estática, isolada, obscura, praticamente fundamentada quase em aleatoriedade, o que se repete na determinação de planos de ação, que notadamente alcançam rápida obsolescência e ineficiência. Estes modelos se substituídos por um modelo baseado na cultura analítica de dados, pode propiciar a produção de ferramentas mais preditivas, transparentes, mitigando a ocorrência de acidentes ambientais ou, ainda, reduzindo os seus impactos.
A flutuação das pontes de perigo de uma determinada atividade, assim como o seu respectivo plano de ação podem ser adequados de forma dinâmica, permitindo a maximização de recursos preventivos, bem como, a atuação preditiva para evitar impactos ambientais negativos.
A tomada de decisões e ações sobre sustentabilidade requere a compreensão do máximo de impactos potencialmente previsíveis, assim como, a adoção de medidas corretivas de ordem proativas, o que somente é viável, pela adoção de uma cultura baseada em análise de dados.
A Secretaria Geral da ONU, atenta a questão da cultura da análise de dados, possui um programa chamado Global Pulse que é uma iniciativa de inovação da entidade em ciência de dados. A Global Pulse visa promover a conscientização das oportunidades que o Big Data apresenta para o desenvolvimento sustentável e ação humanitária, através do desenvolvimento de soluções de análise de dados de alto impacto para que venham a ser utilizados por instituições públicas e privadas em larga escala, o que demonstra que o caminho da sustentabilidade percorre, inevitavelmente, a compreensão de uma nova cultura organizacional baseada em análise de dados, como forma de se obter melhores, mais responsáveis e mais eficientes decisões sobre as mais diversas questões ambientais.
O Pulse Satellite, por exemplo, é uma ferramenta para analisar imagens de satélite assistidas por redes neurais que buscam incorporar seres humanos em diferentes processos de análises, em diferentes estágios do processo, para permitir melhores resultados, inclusive, no que tange a movimentação de refugiados e a existência de infraestrutura para servir a estes grupos.[6]
A imagem a seguir compara estimativas de deslocamento populacional com base em dados de rede móvel, ainda que de forma anonimizada, contribuindo com os planos de suporte a populações em migração.
Há, por meio do Pulse Satellite, programas de monitoramento de pequenos agricultores, com o propósito de assegurar assistência técnica e fornecimento de insumos em tempo real para pequenas comunidades[7].
O Global Pulse porta, ademais, plataformas que permitem o gerenciamento de crises baseadas em riscos, em tempo real, tendo como amparo tecnologias de mineração de dados e construção de Big Datas, visando evitar ou mitigar impactos oriundos de desastres urbanos ou ambientais.[8]
Na indonésia autoridades fazem uso de dados geolocacionais obtidos em tempo real, para realizar o planejamento de políticas de trânsito em tempo real, de modo a obter melhor controle sobre aglomerações e emissões de atmosféricos em determinada hora do dia.
É pertinente concluir, portanto, que o desenvolvimento de uma cultura analítica baseada em dados, pelo uso de tecnologias como Inteligência Artificial, Inteligência Aumentada e os demais recursos inerentes a Data Science, serão indispensáveis a conquista da sustentabilidade, sobremodo, nos modos propostos pela Agenda 2030 e seus Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, com respectivas metas. Trata-se de um oceano ainda pouco explorado, cujo limites de aplicação inestimáveis em favor do desenvolvimento sustentável.
—
Notas:
[1] https://www.un.org/en/sections/issues-depth/big-data-sustainable-development/index.html
[2] Gantz, John and Reinsel. (2012). David. The Digital Universe In 2020: Big Data, Bigger Digital Shadows, and Biggest Growth in the Far East. EMC Corporation. Acesso em: jul. 2015. Disponível em: http://www.emc.com/collateral/analyst-reports/idc-the-digital-universe-in-2020.pdf
[3] https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2017/06/Documento-Tem%C3%A1tico-ODS-9-Industria-Inova%C3%A7%C3%A3o-e-Infra_11junho2017.pdf (Acesso em: junho 2020)
[4] https://datasciencecampus.ons.gov.uk/data-science-for-sustainable-development/ (Acesso em: junho 2020)
[5] Os Data Lakes são soluções de gerenciamento de dados híbridos, abertas, capazes de viabilizar a interação entre diversas fontes de dados em tempo real. Isso permite a troca de dados e informações geradas entre diversas organizações, maximizando o processamento de dados e a obtenção de informações. A organização que já detém um conjunto de dados analisados pode trocar com outra organização, dados igualmente analisados de seu interesse, viabilizando uma espécie de coprocessamento de dados entre as organizações. O que maximiza resultados e valoriza suportes baseados em Inteligência Artificial.
[6] https://www.unglobalpulse.org/microsite/pulsesatellite/#about-pulsesatellite
[7] https://www.unglobalpulse.org/microsite/pulsesatellite/#about-pulsesatellite
[8] https://www.unglobalpulse.org/project/real-time-data-for-faster-decision-making-in-times-of-crisis/