por Luciana Vianna Pereira.
O que há em comum entre esses três temas? Simples. O fato de que as decisões, a vida humana, as decisões políticas e de governo, passam a ser pautadas mais pelo risco, pela ameaça, pela dúvida, do que pela certeza científica, pelos fatos e pela verdade.
Ulrich Beck fez um alerta que, muitas vezes, passa despercebido àqueles que citam sua teoria na atualidade, que seria o “risco” de que a sociedade de risco caminhasse para uma sociedade que clama por mais leis, mais controle, mais Estado, mais rigor, o que, em suas palavras, poderia ser o caminho fácil para o ressurgimento de um “totalitarismo ‘legítimo’ da defesa diante do perigo, que com a incumbência de evitar o pior, acaba provocando, como todos sabem ser praxe, algo pior”[1].
Para quem lê sua obra “Sociedade de Risco Mundial”, especialmente no capítulo sobre o terrorismo, é difícil não fazer a comparação imediata com o fenômeno global “corona vírus”.
Para além de ser uma questão de saúde pública, é preciso que esse fenômeno seja estudado sob a perspectiva sociológica e antropológica.
O que faz com que uma doença se espalhe (antes de fisicamente) psicologicamente, se tornando o único tema sobre o qual o mundo discute e o que faz com que uma doença se torne o único problema para o qual a “opinião pública” demanda solução é definitivamente algo a ser estudado.
Por mais que Ministérios da Saúde e a própria Organização Mundial de Saúde alertem para outras doenças com taxas de letalidade e índices de contágio superiores e que também demandam a cooperação das comunidades, como o sarampo, por exemplo, o fenômeno “corona vírus” tomou conta e se tornou pauta única. Não se fala mais da necessidade de vacinação contra o sarampo, sobre a vacina contra a gripe comum, mas todos acompanham incessantemente a “corrida científica” para encontrar a solução – remédio ou vacina – contra o corona vírus.
Nem a ameaça de uma crise econômica global decorrente da paralisação das atividades desempenhadas por milhões de pessoas parece conter o movimento de “enfrentamento e combate” contra esse “inimigo comum”.
Evidente que não se quer aqui menosprezar a doença ou encorajar condutas irresponsáveis pelos cidadãos. Muito pelo contrário. Cremos que se essa difusão do medo pode trazer algo de bom para a sociedade, que seja a preocupação com o outro, o cuidado com os vizinhos, o reaproximar da comunidade, pela certeza de que temos coisas em comum e que vale a pena compartilhar.
Entretanto, é preciso chamar a atenção para a necessidade de se lançar um olhar atento sobre os efeitos colaterais das medidas de contenção do vírus, para evitarmos (enquanto sociedade) dar o recado claro aos mal-intencionados espalhados pelo mundo, de que reagimos com mais veemência à ameaças bem midiatizadas e difundidas do que a fatos concretos, danos reais e a esse elemento tão fora de moda que é a “verdade”.
Se há algo de bom nessa midiatização exacerbada do problema que seja o crescimento do olhar solidário, para com os idosos, os mais frágeis e vulneráveis.
Se a crise resultará em um “ressurgimento da pólis”, como Ulrick Beck trata em seu “A metamorfose do mundo”[2] ou no reconhecimento dos “pequenos pelotões” de Edmund Burke[3], a demandar o cuidado com os mais próximos, com a família, os vizinhos, os amigos, e assim, indiretamente resultar num cuidado de todos com todos e num movimento de cooperação e numa ética de responsabilidade, de uns com os outros, não se sabe.
Mas uma coisa é certa, propositalmente ou não, justificadamente ou não, estamos vivendo um grande experimento social em que um risco ou uma ameaça de dano impõe medidas severas de restrição aos direitos humanos mais básicos, medidas estas que tem sido aplaudidas mundo afora.
O que virá daí, veremos, mas o momento atual é um marco histórico na forma como vemos e entendemos o risco e talvez também na forma como se compreende e faz política global.
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Notas:
[1] BECK, Ulrich – Sociedade de risco: Rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Editora 34, 2011. ISBN 978-85-7326-450-0, p. 97-98.
[2] BECK, Ulrich – A metamorfose do mundo: novos conceitos para uma nova realidade. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 2018, p. 236.
[3] BURKE, Edmund – Philosophical Enquiry into the Origin of our ideas of the sublime and the beautiful. Oxford University Press, 2008, revisitado por SCRUTON, Roger. Filosofia Verde: como pensar seriamente o planeta. São Paulo: É Realizações, 2016.