sábado , 20 abril 2024
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A súmula 613 de STJ e a negação do fato consumado

por Antonio Fernando Pinheiro Pedro.

 

A Súmula 613 do STJ é negacionista. Reforça uma convicção, não produz Justiça.

 

Ita diis placuit  é uma locução latina tradicional da antiga Roma que significa “assim aprouve aos deuses”. Era como os romanos se referiam a um fato consumado.

Diz-se consumado o que foi realizado ou se perfez inteiramente, estando, assim, TERMINADO. Trata-se de uma realidade material irremediável, cuja alteração implicaria em circunstâncias diversas. Daí a sentença romana  “assim aprouve aos deuses”.

A consumação também pode ser satisfativa, em função de algo que  desenvolveu efeitos, aspectos e qualidades em sua inteireza, sejam elas boas ou más – uma beldade consumada ou um idiota consumado.

No direito, fato consumado traduz situação material sedimentada,  consolidada juridicamente pelo decurso do tempo, pela incidência legal ou por amparo em decisão judicial. Desconstituí-lo implicaria circunstancialmente na fragilização de valores protegidos pelo Estado de Direito, tais como a  segurança jurídica, a estabilidade das relações sociais e, por conseguinte, o bem comum.

O fato consumado, portanto, constitui não só a essência do direito em face da Justiça, como forma a base sobre a qual nossa sociedade é construída.

No entanto, a Súmula n. 613 do Superior Tribunal de Justiça, recentemente editada, guarda a seguinte redação:

“Não se admite a aplicação da teoria do fato consumado em tema de Direito Ambiental”.  

Com todo o respeito, a Súmula 613 reforça uma convicção, não produz Justiça.  Para tanto é necessário fazer-se um resgate do fenômeno do fato consumado e contextualizá-lo no mundo do direito, pois um “descarte” sumulado de tamanho laconismo, esconde todo um universo de complexidades.

 

O fato consumado é uma verdade, não uma teoria

 

Jesus  nos dá a medida bíblica dessa experiência no direito. Ante o fato consumado do adultério, permitiu à adúltera livrar-se do apedrejamento sem que, de fato, negasse a ocorrência do ilícito.

O filho de Deus cobrou dos apedrejadores o reconhecimento dos próprios pecados, pondo-se na situação do outro ante a falta praticada. Todos entenderam de não aplicar a sanção, e o fizeram ante o fato consumado, examinado face ás próprias circunstâncias. Uma mensagem que transcende estéticas de poder, regimes e eras.

Reconhecer o que foi consumado é ato humano. É um exercício de resignação e humildade ante a verdade e seus fatos. O dom da inteligência, de por-se na situação do outro e, assim, compreender a função transformadora do tempo na vida dos  direitos. Esse reconhecimento envolve as qualidades humanas esperadas de quem, no exercício da autoridade, julga.

A isso chama-se senso de justiça.

Não é de hoje, portanto, que o direito trabalha com o binômio verdade material versus verdade formal.

Diz-se, no direito,  que a verdade é a judicial. Essa verdade é caracterizada por ser contextual, qualquer que seja o âmbito de pesquisa em que é obtida, e funcional, no sentido de compor os valores presentes na sociedade em nome de quem a Justiça é administrada. Seja no processo penal, seja no civil, a verdade a ser alcançada é a processualmente válida.[1]

Lecionava o professor Barbosa Moreira que  a verdade seria uma só e interessaria a qualquer processo, embora pudesse a justiça cível renunciar à sua reconstituição completa, em atenção a outros valores de igual dignidade.[2]

Há, no fundo, uma necessidade inquisitorial na busca da verdade, ainda que a bondade inserta no refúgio da formalidade recomende negá-la. O conflito revela um anseio atávico por justiça, embora esta possa estar oculta em um jogo de máscaras.

Victor Hugo nos revela o dilema da justiça ante a verdade em seu magnífico romance Os Miseráveis. Nele, o impiedoso e persecutório inspetor Javert, cujo senso de justiça é desumano, lamenta a incapacidade do Prefeito Madeleine de decidir puni-lo com a demissão do cargo – afinal ele havia levantado uma suspeita contra uma autoridade superior. Javert reage à decisão do prefeito com um famoso lamento crítico: “Meu Deus! Ser bom é fácil, difícil é ser justo” (Mon Dieu ! c’est bien facile d’être bon, le malaisé, c’est d’être juste). O mais impressionante no caso, como se sabe, é a verdade:  Javert suspeitara que o prefeito era o criminoso Jean Valjean – o herói do romance –  um indivíduo que aprendera a ser justo, piedoso e humano. E ele realmente era…

Voltando ao livro dos livros: “Consummatum est” , ou “tudo está consumado”, foram as últimas palavras de Jesus ao morrer na cruz (João 19:30). A força transformadora desta sentença, proferida há dois mil anos, sentimos na alma até hoje.

Por óbvio que a força  dos fatos luta continuamente contra as amarras da forma e o senso identitário de justiça. É físico, é  biológico e também jurídico.

Desta forma, o fato consumado não é mera doutrina no mundo dos direitos – é uma verdade que insiste em gritar, ainda que formalmente se pretenda ignorá-la.

 

O fato consumado, a arte e a práxis

 

No campo do direito objetivo, a boa forma dinamicamente não oprime e, sim, conduz.

Explico:

O Estado busca  direcionar os fatos jurídicos orientando os atos humanos que os perpetram. Aplica aos seus atores o costume e a lei.

Dessa atividade, a ciência jurídica extrai deontologicamente os princípios que deverão reger a construção do arcabouço legal e sua aplicabilidade –  disso resulta o Direito Material.

Essa atividade é pura arte.

Arte se origina etimologicamente do vocábulo latino ars, que significa técnica ou habilidade – manifestação humana comunicativa muito antiga. Nesse sentido, podemos conceituar o Direito como ARTE,  fruto da capacidade  humana de abstrair, arquitetar uma estrutura de regras e segui-las conscientemente.

O direito, como arte, se manifesta sobre o FATO. Expressa a qualidade humana de sentir o meio, observar, analisar e aprender, para então abstrair. O resultado dessa abstração no direito se expressa no meio social, da mesma forma que a arte da engenharia se expressa no meio físico. Ambas transformam, modificam e firmam uma estética.

O fato consumado, nesse contexto – é tratado pela conformação estética do Estado,  em função das circunstâncias do meio.

O fato consumado é sempre uma exceção – reconhecível pela prática do direito, justamente porque expressa a possibilidade, em regra, do direito transformar os fatos. Essencialmente, fato consumado é parte integrante da práxis no direito.

Mas, o que é a práxis?

Karl Marx informa que o materialismo “esquece que as circunstâncias são transformadas precisamente pelos seres humanos”, enquanto o idealismo “esquece que o educador tem ele próprio de ser educado”. Para mudar a humanidade, o idealista educador busca introduzir suas ideias de cima para baixo, de fora para dentro; enquanto o materialista  pretende alterar as circunstâncias na base das coisas.  O resultado é que tanto o materialismo quanto o idealismo reproduzem uma estrutura desigual e, neste ponto,  Marx introduz seu conceito revolucionário de práxis como sendo “a coincidência da transformação das circunstâncias com a atividade humana”[3].

Reconhecido o fato consumado como uma circunstância possível, admite-se doutrinariamente o seu manejo no processo de práxis jurisprudencial como uma exceção a ser reconhecida. Cumpre ao julgador, dotado das qualidades indicadas no início deste artigo, aplicar a lei ou compreender sua limitação material ante a realidade  dos fatos, para  conferir segurança jurídica ao meio sem descurar da eficácia da norma – ou mesmo para resguardá-la.

Essa práxis jurisprudencial é essencial à doutrina que reconhece o fato consumado. É a pedra de toque que diferencia a hermenêutica da exegese.

 

Reconhecer o fato é hermenêutico e deontológico

 

A diferenciação entre Hermenêutica e Exegese remonta à teologia e ao direito canônico, e possui profunda implicação para a justiça.

A hermenêutica analisa o sentido que o texto tem para a atualidade, enquanto a exegese procura estudar o sentido que se pretende atribuir ao texto. A hermenêutica considera o cenário posto para a norma e dispõe regras para sua interpretação e aplicação, enquanto a exegese busca extrair, desse entendimento, o escopo da norma.[4]

Na ocorrência de um conflito hermenêutico envolvendo o reconhecimento de um fato consumado, a práxis transcende a exegese. A busca pela segurança jurídica pode recomendar uma excepcional manutenção de algo que contraria o sentido da norma – até mesmo para resguardá-la.

Daí porque há dificuldade exegética em se reconhecer um fato consumado à luz da aplicação  teleológica da norma vulnerada.

A aplicação teleológica da norma legal quase sempre traduz postura ética utilitarista. O utilitarismo sustenta que o que é correto só pode ser definido a partir das consequências que uma dada ação produz.

Teleologicamente, o correto pressupõe prévia definição do bem a ser alcançado. Os atos serão corretos se resultarem em um estado de coisas possível de ser obtido também por outros meios. As regras serão corretas se estiverem em conformidade com outras, cujo estado de coisas resultante seja tão bom quanto. Nesse sentido, os fins podem suplantar os meios.

Já a deontologia sustenta outra ética. O correto é moralmente bom em si mesmo, emana da natureza humana e do pacto social. O conforto ético prevalece sobre a preocupação utilitarista com as consequências resultantes da decisão. Isso ocorre por se entender possível realizar o bem como um valor absoluto. Se definimos o que é correto, extrairemos o que é seguro para todos. A finalidade não prevalece sobre os meios se não houver conforto moral absoluto. A experiência e a maturidade deverão determinar a melhor hipótese.

A circunstância da verdade contida no reconhecimento de um fato consumado, portanto,  é  deontológica.

O fenômeno será tratado conforme apresentado à decisão do julgador.  Ante o fato consumado, a combinação de elementos éticos recomendará, sobretudo,  senso de justiça.

 

Fato consumado e a tutela de interesses difusos

 

Atualmente, toda essa gama de valores tem sido desafiada pela intrínseca conflituosidade dos interesses e direitos difusos – mormente quando tutelados pela sociedade livre, aberta e democrática.

A gestão dos conflitos identitários demanda postura democrática – deontologicamente ancorada. Essa postura será necessária para o enfrentamento do ativismo judicial,  de grupos em busca de reconhecimento, de protagonismos afrontosos a valores tradicionais, na afirmação de soberania ante demandas por autonomias  e, sobretudo, na preservação do equilíbrio entre ecologismos de toda ordem e o direito ao desenvolvimento social e econômico em bases sustentáveis.

Interesses difusos são intrinsecamente conflituosos. Portanto, nunca haverá unanimidade para a resolução de conflitos dessa natureza.  A motivação do ato da autoridade e a legitimação obtida no processo de resolução do conflito constituem, portanto, requisitos essenciais para a validade da decisão a ser adotada pelo Poder Público.[5]

É fato que o Estado moderno, em crise, ainda não encontrou uma fórmula definitiva para tutelar direitos difusos e interesses difusos ainda não consolidados (e que, no entanto, também demandam tutela pelo direito).  Nesse tracking  implementador da tutela legal, não é raro observar-se tutelas de segurança e resoluções excepcionais de conflitos que terminam por ferir direitos e garantias fundamentais – e o fazem a pretexto de priorizar a aplicação da “nova” norma de tutela em função de um interesse público… difuso.

Há uma postura ideológica bastante complexa e mesmo agressiva, dos agentes implementadores,  na tutela de algo intrinsecamente conflituoso. Não é raro, portanto, que esse esforço de implementação ocorra teleologicamente, visando adaptar a realidade à norma – com sacrifício de direitos e risco para a segurança jurídica.

O fato consumado não comporta um  mero exercício teórico – pois é uma verdade que demanda reconhecimento. No entanto, nossas cortes superiores, imbuídas na implementação conflituosa de uma tutela de conflitos intrínsecos,  tem tratado de espancar o fenômeno do fato consumado como se fosse uma invenção doutrinária; e o fazem de forma sistemática – em nome de um utilitarismo tão  “politicamente correto” quanto arrogante.

A pirâmide da arrogância que contamina as estruturas corporativas no Brasil, de fato é uma doença. Ela produz monstruosidades de toda ordem, incluso a negação do fato consumado perpetrada pelo STJ e STF em nome de um “ecologismo afirmativo”, pouco eficaz e nada democrático.

Há que se por um fim a esse comportamento de risco, para a democracia e para o direito.

Reconhecer o fato consumado é garantir a manutenção de situação consolidada pelo tempo, especialmente quando não é possível o retorno ao status quo ante. Portanto, reduzir uma verdade a um ramo doutrinário abstrato é negar  o fato.

No campo das assimetrias que envolvem a tutela dos interesses difusos em relação ao equilíbrio ecológico, torna-se evidente o esforço de se implementar uma visão prevalente do direito ambiental sobre o estado  real das coisas – visando transformá-las a partir  de uma aplicação teleológica da norma.

Isso pode parecer meritório. No entanto, engessa o horizonte da justiça e restringe ideologicamente a jurisprudência. Revela também, uma substituição da estrutura legal dinâmica pela unilateralidade ideológica do aplicador da norma, ao caso concreto.

Nesse esforço mental  pretensamente exegético, o prevalecer da vontade implementadora sobre o fato consumado beira o dilema freudiano entre a realidade psíquica e realidade material. Verdadeira cegueira deliberada.

“Faz diferença se o que o paciente me relata aconteceu de fato ou não?” A partir da psicanálise, não é difícil chegar à resposta mais óbvia a esta pergunta:  “Não, uma vez que no inconsciente a diferença entre realidade e fantasia é ignorada”.[6]

Se essa resposta, no campo da psicologia, traz embutida uma desconsideração pela diferença entre duas realidades de fato distintas; no campo do direito ela nos transporta para o paraíso das ficções jurídicas,  que jamais resolverão o inferno dos conflitos jurídicos assimétricos.

Considerada assim realidade,  “a teoria do fato consumado incide apenas em casos excepcionalíssimos, nas quais a inércia da Administração ou a morosidade do Judiciário deram ensejo a que situações precárias se consolidassem pelo decurso do tempo“, como decidido em acórdão do STJ, no AgRg no RMS 34.189/GO, Rel. Min. Castro Meira – Segunda Turma, em julgamento realizado em 26 de junho de 2012. “Tal teoria tem valia em hipóteses extremas, de modo a não eternizar liminares indevidas e a não gerar expectativas de definitividade em juízos proferidos em cognição não exauriente, apenas em razão da demora do Judiciário”, decidiu  também o STJ, em EDcl na MC 19.817/SP – na verdade buscando expiar no fato consumado a culpa pela notória morosidade da justiça tupiniquim.

O processo de transposição da realidade para a ficção jurídica tornou-se claro com a redução do fato consumado a uma “teoria”, á qual atribuiu-se crescente excepcionalidade, até constituir-se em uma negação seletiva da verdade.

 

O fato, os ecologismos e a realidade legalmente admitida

 

O processo  de segregação do reconhecimento do fato consumado é liberticida. Revoga a mais importante passagem bíblica para a instituição da Justiça: “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará!” (João 8,32)

O problema porém não é apenas bíblico ou restrito ao confinamento de uma realidade à jaula doutrinária. O esforço de segregação do fato consumado  está na origem da confusão que se faz entre a restrição imposta ao reconhecimento deontológico de sua ocorrência e o respeito constitucionalmente devido ao ato jurídico perfeito – outro fato juridicamente consolidado.

Como se sabe, o ato jurídico perfeito é aquele  emanando de agente capaz e com objeto lícito, que obedeceu a forma prescrita ou não defesa em lei e se entendeu consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou.  O fenômeno juridicamente consagrado, no entanto, é completamente relativizado pela jurisprudência utilitarista, quando confrontado o instituto com a sucessão peculiar das normas legais de cunho ambiental.

Por conta da luta fratricida do ecologismo afirmativo contra o fato consumado, “virou moda” esferas administrativas, organismos de controle ou decisões judiciais negarem vigência aos institutos do direito adquirido e do ato jurídico perfeito,  ambos estatuídos no art. 5º, XXXVI da Carta de 1988.

Esse ecologismo conflituoso relativizou uma garantia pétrea; e o fez em prol de uma interpretação extensiva do bem jurídico ambiental. Algo preocupante, visto a natureza difusa, o  dinamismo e, não raro, a imprecisão do bem jurídico ambiental a ser tutelado.

O ato jurídico perfeito, aliás, antecede no tempo o próprio reconhecimento constitucional. Há muito encontra-se inserido no art. 6º, § 1º do Decreto-Lei nº 4.657 de 1942 – Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.

Por outro lado, não há qualquer excepcionalidade expressa na norma ambiental que retire essa prevalência da Lei de Introdução das Normas do Direito Brasileiro.

A Lei de Introdução forma a base que disciplina a implementação das normas legais no país. Ela nos remete à obrigação do magistrado decidir visando sempre, hermenêutica e exegeticamente, o bem comum:

“Art. 5o  Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”.

Recente alteração introduzida pela Lei Federal nº 13.655 de 2018 recomenda leitura atenta, principalmente dos “fabricantes de súmulas” instalados nos tribunais superiores do Brasil, em especial as seguintes normas – todas aplicáveis ao ora tratado neste artigo:

“Art. 20.  Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão. 

Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas.    

Art. 21.  A decisão que, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas.  

Parágrafo único.  A decisão a que se refere o caput deste artigo deverá, quando for o caso, indicar as condições para que a regularização ocorra de modo proporcional e equânime e sem prejuízo aos interesses gerais, não se podendo impor aos sujeitos atingidos ônus ou perdas que, em função das peculiaridades do caso, sejam anormais ou excessivos.      

Art. 22.  Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados.

§ 1º  Em decisão sobre regularidade de conduta ou validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, serão consideradas as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente.   

(…)

Art. 23.  A decisão administrativa, controladora ou judicial que estabelecer interpretação ou orientação nova sobre norma de conteúdo indeterminado, impondo novo dever ou novo condicionamento de direito, deverá prever regime de transição quando indispensável para que o novo dever ou condicionamento de direito seja cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais.

Art. 24.  A revisão, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, quanto à validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa cuja produção já se houver completado levará em conta as orientações gerais da época, sendo vedado que, com base em mudança posterior de orientação geral, se declarem inválidas situações plenamente constituídas.    

Parágrafo único.  Consideram-se orientações gerais as interpretações e especificações contidas em atos públicos de caráter geral ou em jurisprudência judicial ou administrativa majoritária, e ainda as adotadas por prática administrativa reiterada e de amplo conhecimento público.”

 

A lei é clara no sentido de determinar o reconhecimento às situações excepcionais, consumadas no tempo, e condições consentâneas – até mesmo em função da preservação da norma cuja aplicação  ao caso não a tornaria  eficaz.

 

Proibição de Retrocesso e negacionismo dos fatos

 

No campo de batalha das doutrinas ambientais, a luta entre biocentristas e desenvolvimentistas compõe um quadro político determinante para o comportamento errático da jurisprudência brasileira.

Não raro, o biocentrismo contido em certas decisões judiciais tem se descurado da lei, pretextando cumpri-la.

Posto isso, torna-se claro que a negação ao reconhecimento do fato consumado, contraria toda a marcha de dispositivos aprovados pelo Poder Legislativo e sancionados pelo Poder Executivo, nos últimos anos.

Essa atitude negacionista do fato consumado tem precedente na “criação” do malfadado princípio de vedação de retrocesso, sobre o qual já tive a oportunidade de abordar em extenso artigo.[7]

A celeuma sobre a “proibição de retrocesso” integrou a marcha do ativismo biocentrista contra a pacificação jurídica dos conflitos surgidos após a edição da Medida Provisória 2.166, de 2001 – um desastre normativo que praticamente criminalizou o uso produtivo da terra em solo brasileiro.  A pacificação adveio com a nova lei florestal 12.651, de 2012 – e foi em função dela que os ativistas biocêntricos utilizaram a doutrina da proibição de retrocesso, como um facho de luz ardente em favor da eternização dos conflitos contra o agronegócio.

No entanto, se já é complexo entender o  meio ambiente ecologicamente equilibrado numa relação econômico-social e físico-químico-biológica profundamente dinâmica, muito mais difícil seria aplicar o tal freio da “proibição de retrocesso” a algo que não se sabe se recua, desborda ou avança.

Tamanha “certeza principiológica” não resistiu a três questões:

 

1- Que meio ambiente é indisponível?  E em função do que e de quem ocorre essa indisponibilidade?

2- Sendo qualquer ecossistema, física e biologicamente dinâmico, que bem jurídico em causa nele pode se tornar ‘indisponível’?

3- Se o processo legislativo deve ser desprezado em nome de direitos adquiridos “em prol do meio ambiente”, que ambiente pretende-se tutelar contrariamente ao ambiente legal que nos mantém a todos – ou seja, o Estado Democrático de Direito?

 

Enfim, na ordem das teorias, maus argumentos constroem más decisões, e compete à deontologia jurídica e à velha e boa hermenêutica evitá-las.

Vencido e relativizado pelo Supremo Tribunal Federal, o proselitismo da vedação de retrocesso, trataram os biocentristas de se esmerar em construir uma nova frente de batalha. Concentraram o cenário no campo jurisprudencial para transformar o fato consumado no próximo vilão do direito ambiental.

O campo de batalha parece ter mudado da lei para a súmula. Porém, o negacionismo mantém o mesmo foco: descolar a norma do fato, visando alterar unilateralmente a realidade.

 

Negação do fato e a Súmula 613 do STJ

 

A aplicação prática do direito ao fato consumado abrange aquelas situações sedimentadas face à inércia do Estado, ensejando uma espécie de “direito adquirido” do jurisdicionado ante um estado de coisas incompatível com a segurança jurídica. Esse fato passa a ser  “tolerado”, ainda que eventualmente de forma precária ou até mesmo contra legem.

O fenômeno consta no  célebre acórdão de relatoria do Ministro Humberto Martins, no STJ, que assim entendeu sobre o tema:

“Impõe-se, no caso, a aplicação da Teoria do Fato Consumado, segundo a qual as situações jurídicas consolidadas pelo decurso do tempo, amparadas por decisão judicial, não devem ser desconstituídas, em razão do princípio da segurança jurídica e da estabilidade das relações sociais. Recurso especial conhecido em parte e improvido.” (REsp 709.934/RJ, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 21/06/2007, DJ 29/06/2007, p. 531, grifos nossos)

A “teoria do fato consumado” passou a ser arguida como tese de defesa nos Tribunais em diversas situações, como por exemplo, para processos envolvendo concursos públicos, ingresso em universidades, colação de grau, etc. Porém, ganhou espaço no  Direito Ambiental justamente em função da profusão de normas e entendimentos legais, cuja dinâmica de produção raramente compatibiliza o avanço da sua implementação com a realidade dos fatos.

É certo que muitos passaram a utilizar a teoria para buscar amparar situações ilegais – como edificações terminadas sob embargos administrativos e/ou judiciais precariamente aplicados, ou construções ocorrentes áreas que legalmente jamais permitiram a atividade. No entanto, a jurisprudência quase sempre soube se produzir para segregar o materialmente justo da mera alegação.

De certa maneira, ainda que de forma excepcionalíssima, os Tribunais vinham aceitando a tese, a fim de em determinados casos salvaguardar situações  fáticas consolidadas no tempo.

Ocorre que o conflito serviu como mote para que ocorresse o engessamento jurisprudencial – para o qual se fez uso, no STJ,  de referências escolhidas a dedo, teleologicamente, sem qualquer prudência deontológica. A propósito, se o criador do sistema de súmulas no Supremo Tribunal Federal, o saudoso Ministro Victor Nunes Leal, estivesse vivo, com certeza morreria…

O Poder Judiciário não pode, por razões ideológicas, ditar o comportamento da Administração Pública e negar vigência a normas e institutos que visam adequar a letra da lei à realidade dos fatos no Brasil. Muito menos impedir que magistrados e tribunais jurisdicionados apliquem a Justiça ás causas que devem tutelar.

Esse paradoxo tornou-se evidente no campo do direito ambiental.

A reatividade do Direito Ambiental gerou um raciocínio negacionista  para além de cartesiano, baseado em premissas  idealizadas que lastreiam silogismo bastante frágil. Esse raciocínio encontra-se elencado em várias peças jurisprudenciais e doutrinárias e, com poucas alterações, segue um mesmo diapasão, abaixo reproduzido, senão vejamos:

“a) Conquanto não se possa conferir ao direito fundamental ao meio ambiente a característica de direito absoluto, é possível destacar que figura entre os direitos indisponíveis, devendo-se acentuar a imprescritibilidade de sua reparação, visto tratar-se de bem de uso comum do povo (art. 225, caput, da Constituição);

b) No âmbito do direito ambiental, inexiste direito adquirido a poluir ou degradar o meio ambiente, razão pela qual o fator tempo é incapaz de sanar ilegalidades ou irregularidades ambientais. Em outras palavras, décadas de produção de dano ambiental não conferem salvo-conduto ao poluidor para continuar a praticar atos proibidos ou a tornar legais práticas vedadas pelo legislador;

c) Desse modo, a adoção da teoria do fato consumado em matéria ambiental equivaleria à “perenização” de um suposto direito de poluir, o que vai de encontro ao princípio do meio ambiente equilibrado como bem de uso comum do povo, essencial à sadia qualidade de vida.”

Com todas as vênias devidas aos que desenvolveram o raciocínio, a sequência silogistica é uma das maiores bobagens já escritas em matéria ambiental. No entanto, esse raciocínio lastreia a Súmula n. 613 do Superior Tribunal de Justiça, que guarda a seguinte redação:

“Não se admite a aplicação da teoria do fato consumado em tema de Direito Ambiental”.  

A Súmula, observa-se,  tem a digital de um dos mais brilhantes juristas brasileiros da era moderna, o Ministro Antonio Herman Benjamin. No entanto,  se o brilhantismo lhe permitiu a primazia de moldar a jurisprudência, não constitui salvo conduto para torná-lo indene de críticas e muito menos lhe confere o dom da infalibilidade.

Em alentado artigo recentemente publicado, o Procurador de Justiça gaúcho, Lenio Luiz Streck afirmou que:

 “Exercer a crítica no direito é uma tarefa difícil. Principalmente em terrae brasilis. Por aqui, normalmente é magister dixti. Mormente se quem disse é ministro de Corte Superior. Não conseguimos construir ainda uma cultura em que as decisões judiciais – em especial as do Supremo Tribunal Federal – sofram aquilo que venho denominando de “constrangimentos epistemológicos”. O que é “constrangimento epistemológico”? Trata-se de uma forma de, criticamente, colocarmos em xeque decisões que se mostram equivocadas, algo que já chamei, em outro momento, de “fator Julia Roberts”, em alusão à personagem por ela interpretada no filme Dossiê Pelicano, que, surpreendendo o seu professor em Harvard, afirma que a Suprema Corte norte-americana errou no julgamento do famoso caso Bowers v. Hardwick. No fundo, é um modo de dizermos que a “doutrina deve voltar a doutrinar” e não se colocar, simplesmente, na condição de caudatária das decisões tribunalícias.”[8]

Assim, é preciso estimular  a crítica doutrinária como afirmação do direito, e permitir a franca legitimação do livre debate jurídico e institucional –  o oxigênio que mantém vivo o Estado Democrático de Direito, sem o qual não há justiça.

Voltando à crítica, nas palavras do Min. Herman Benjamim, a “teoria do fato consumado em matéria ambiental equivale a perpetuar, a perenizar suposto direito de poluir, que vai de encontro, no entanto, ao postulado do meio ambiente equilibrado como bem de uso comum do povo essencial à sadia qualidade de vida”  (in STJ, AgInt nos EDcl no REsp n. 1.447.071).

O problema de tal raciocínio é que o mesmo possui viés absolutamente utilitarista. Renega a deontologia, rasga a práxis e refoge ao senso de justiça.

Como leciona o vetusto Chiovenda, “o juízo é um prius, o silogismo um posterius. Não se silogiza para julgar mas para demonstrar como se julgou.” Logo, o esforço doutrinário em causa – ao se transferir para o campo jurisprudencial, resume-se à triste figura do esforço mental carregado de boas e utilitaristas intenções ideocráticas.[9]

Imersa nesse conteúdo tóxico, a súmula 613 do STJ  não resiste a um mero exercício de raciocínio lógico.

Se compete à justiça julgar casos concretos, aplicando o direito à situações materiais, fáticas, e havendo lei introdutória ao direito brasileiro que obriga o reconhecimento do fato para aplicar deontológica e exegeticamente uma norma legal, como pode uma súmula afastar o reconhecimento de um fato, determinado pela lei, em função da disciplina jurídica em causa?  Como pode fazê-lo “em tese”,  e independente do caso concreto apresentado à tutela?

Com todo o respeito, a Súmula 613 reforça uma convicção, não produz Justiça.

Da interpretação literal do texto sumular,  o juízo ver-se-à impedido de reconhecer situações genericamente consolidadas ou consumadas face ás circunstâncias, em matéria ambiental, com risco de fragilizar direitos, pessoas e bens.  Verdadeira cegueira deliberada.

 

Conclusão

 

A Súmula, tal como redigida, não somente é inconstitucional como absolutamente ilegal.

Como acima já exposto, o engessamento jurisprudencial pretendido pela súmula nega vigência aos institutos do direito adquirido e do ato jurídico perfeito, estatuídos no art. 5º, XXXVI da Carta de 1988 e confronta os artigos 6º,  23 e 24 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Pior, descumpre todo o teor da regra geral de hermenêutica e exegese, prevista no artigo 5º do mesmo diploma.

A Lei  nº 13.465 de 2017, de Regularização Fundiária, um alento no campo da resolução dos conflitos sociais, também desautoriza a citada súmula. Afinal, núcleos urbanos informais, nos termos do art. 11, II e III, da referida norma, nada mais são que situações jurídicas consolidadas pelo decurso do tempo – fatos consumados demandando tutela do Estado.

Para desespero da doutrina biocentrista, o Supremo Tribunal Federal, além de relativizar a construção pretensamente principiológica da “vedação de retrocesso”,  reconheceu a efetividade da Lei Florestal (Lei nº 12.651 de 2012), resgatando a segurança jurídica e restabelecendo o Estado de Direito no campo e na cidade. Com efeito, os instrumentos de conformidade e regularização dispostos no diploma legal, remetem a situações consolidadas e, portanto, não podem ser confrontados com uma súmula negacionista dos fatos e do direito.

Atenção para os conflitos oriundos  do descontrole territorial e da ausência de planejamento incorridos pelo Poder Público. Desde sempre, empreendimentos  submetidos a aprovação e licenciamento – implantados parcialmente e surpreendidos por alterações normativas no ordenamento do território em que se inserem; alterações jurisprudenciais sobre uma mesma ocupação espacial –  consolidada por extensão de entendimento anterior em conflito similar; a  absoluta perda de função ambiental conferida legalmente a determinada área;  ou, o que tem ocorrido e muito – a revisão de entendimentos do Ministério Público decorrentes da alteração do plantonista no cargo e a  revisão imposta a orientações consolidadas administrativamente no órgão licenciador, por força de decisão judicial ou revisão político-ideológica induzida, compõem um quadro que não pode ser ignorado.

Tratam-se de conflitos que de forma alguma podem ser desconsiderados pela cegueira jurisprudencial e pelo negacionismo induzidos por uma Súmula, que determina  ao julgador ignorar o fato consumado em função da disciplina jurídica à qual a matéria está afeta.

Verdades recobertas pela excepcionalidade, não podem ser simplesmente ignoradas ou extirpadas do ordenamento jurídico porque em determinado momento um sodalício resolveu banir o fato consumado após classificá-lo como teoria jurídica.

Nem se diga que a Súmula veio meritocraticamente “coibir o desenfreado uso dos recursos naturais ainda existentes no Brasil”. Isso é pura falácia que usa um inexistente e nunca alegado “direito de poluir” como contraponto para um falso dilema.

Como ditou Esopo, “todo tirano usa faz uso de um pretexto justo, para exercer sua tirania”.  Assim ocorre, infelizmente, com a Súmula 613 – uma venda e uma mordaça ideológica, que nega um fato em nome de uma doutrina.

 

Notas: 

[1] FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO, Antonio Magalhães; GRINOVER, Ada Pellegrini. “As nulidades no processo penal”, Ed. Malheiros, 1994, pag. 114.

[2] MOREIRA, José Carlos Barbosa, “A constituição e as provas licitamente obtidas”, in Revista de Processo, São Paulo, n. 84, out./dez., 1996, pag. 152.

[3]  MARX, Karl, “Teses Sobre Feuerbach”, in Obras Escolhidas de Marx e Engels, Editorial Avante, 1982, T1, pag. 1-3.

[4] OLIVEIRA, Manfredo A. de. (org.). Correntes fundamentais da ética contemporânea. Petrópolis, RJ: Vozes 2000, p.99-117.

[5] PEDRO, Antonio Fernando Pinheiro, “A Grande Revolução Digital”, in Blog “The Eagle View”, visto em 7 de março de 2019, in https://www.theeagleview.com.br/2013/06/a-primavera-digital.html

[6] VERSIANI, Estela Ribeiro, “A realidade ‘ora-psíquica-ora-material’ em Freud”, in Ágora (Rio), vol. 4, no.1, Rio de Janeiro Jan./Junho 2001.

[7] PEDRO, Antonio Fernando Pinheiro, “Princípios de Direito, Principiologismos e Vedação de Retrocesso Ambiental – O totalitarismo das ‘boas intenções’ contra o Estado Democrático de Direito”, in Blog “The Eagle View”, visto de 7 de março de 2019, in https://www.theeagleview.com.br/2015/10/ativismos-principiologismos-e-vedacao.html

[8] in CONJUR (17/11/2011), disponível em: https://www.conjur.com.br/2011-nov-17/ministro-fux-presuncao-inocencia-regra-nao-principio 

[9] PEDRO, Antonio Fernando Pinheiro, “Princípio demais… Lei de Menos”, in Blog “The Eagle View”, visto em 7 de março de 2019, in  https://www.theeagleview.com.br/2014/02/principio-demais-lei-de-menos.html

(* o artigo foi originalmente publicado no Blog “The Eagle View”, em 07/03/2019)

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Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Integrante do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB e Vice-Presidente da Associação Paulista de Imprensa – API. É Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal e responsável pelo blog The Eagle View. Participou da equipe de consultores encarregada de propor os parâmetros da gestão ambiental para o Governo Bolsonaro, no período de transição.

 

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